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Invalidade da cláusula non cedendo em face da Lei das Duplicatas

Artigo aborda a nulidade da cláusula non cedendo que limita a circulação de duplicatas, destacando a prevalência da livre cessão de créditos e a proteção jurídica das operações de securitização, conforme as Leis nº 13.775/2018 e nº 147/2014.

16/8/2024

As Leis cambiárias, em geral, proíbem a obstrução da circulação dos títulos de crédito. No entanto, grandes empresas frequentemente impõem aos seus fornecedores a condição de que os direitos creditórios decorrentes de negócios, mesmo representados por duplicatas, não sejam transferidos a terceiros sem o consentimento do pagador/Sacado. Este estudo aborda a cláusula non cedendo no direito brasileiro, destacando sua invalidade e a inaplicabilidade do art. 286 do Código Civil como exceção à regra da livre circulação de créditos. A correta interpretação desse dispositivo confirma a prevalência da livre cessão de créditos, e qualquer tentativa de vedar, limitar ou onerar a circulação de duplicatas deve ser declarada nula de pleno direito.

Cláusula non cedendo celebrado entre sacador e sacado que objetiva limitar a emissão e a circulação de títulos de crédito. 

Em determinadas operações de antecipação de recebíveis, sobretudo nas denominadas comissárias1, os FIDCs e as Securitizadoras se deparam com situações em que Sacado e Sacador (cedente do “contrato-mãe”2) da duplicata, formalizam contrato particular em que, por imposição do primeiro, não poderiam ser emitidas duplicatas das faturas/notas fiscais decorrentes da relação entre os contratantes, tampouco ser transferido o crédito (por endosso ou cessão) a terceiros.

Trata-se do assim chamado pacto non cedendo, condição contratual privada imposta pelo Sacado ao Sacador na assinatura de contratos de fornecimento, que tem o objetivo prevenir que seus créditos e ativos não circulem no mercado através de duplicatas.

O principal objetivo da cláusula non cedendo, portanto, é antieconômico, pois destinado a impedir a emissão de duplicatas para antecipação de recebíveis por suposta ineficácia erga omnes do título de crédito negociados com FIDCs e Securitizadoras, sustentando que se trata de uma obrigação incessível, já que o instrumento do qual se originou o crédito vedaria expressamente a cessão sem a anuência do Sacado, logo a operação se mostraria inexistente no plano da validade e eficácia.

É intuitivo, portanto, que um debate jurídico se centrasse na validade dessa cláusula.

Da ilegalidade da vedação à emissão e circulação das duplicatas - Art. 10 da lei 13.775/18.

Com o tempo, todavia, tanto o legislador quanto a jurisprudência passariam a entender melhor o sistema de securitização via antecipação de recebíveis empresariais, sua importância econômica e a necessidade de dar proteção jurídica aos contratos. Primeiro com a superação da ideia de risco assumido, que pelo entendimento anterior convertia a securitização em factoring; depois, com o reforço legislativo, a declarar a natureza antieconômica do pacto non cedendo, reafirmando que nenhum contrato privado se coloca acima do direito e da economia, especialmente quando restringem a circulação de riquezas, finalidade maior que deu azo ao surgimento das FIDCs (democratização do crédito e desmobilização de capital).

Diante desse contexto, o Congresso Nacional, amplamente apoiado pelo segmento de securitização de ativos empresariais, editou a lei complementar 147/14, que, dentre outras disposições, incluiu o art. 73-A na lei complementar 123/06, que passou a declarar a nulidade absoluta dos pactos privados que previnem ingresso no mercado ativos circulantes:

Art. 73-A.  São vedadas cláusulas contratuais relativas à limitação da emissão ou circulação de títulos de crédito ou direitos creditórios originados de operações de compra e venda de produtos e serviços por microempresas e empresas de pequeno porte.

Não obstante, ainda foi promulgada a lei 13.775/18 (art. 10 da Lei da Duplicata Escritural), justamente com vistas a expandir a eficácia da disposição contida no art. 73-A da lei complementar 123/06 (limitada a microempresas e empresas de pequeno porte) a todas as empresas, declarando de forma solene que são nulas de pleno direito quaisquer disposições privadas nas quais o sacado tente vedar, limitar ou onerar a circulação de duplicatas, superando de vez a equivocada interpretação, data venia, do art. 286 do CC, in verbis:

Art. 10. São nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que vedam, limitam ou oneram, de forma direta ou indireta, a emissão ou a circulação de duplicatas emitidas sob a forma cartular ou escritural. Grifei.

No plano do debate democrático, pode-se admitir questionamento à adequação política da norma, mas não se pode recusar sua imperatividade, cabendo ao Poder Judiciário fazer valer a determinação legislativa, sobretudo em razão dos nefastos efeitos antieconômicos provocados pela inobservância de legislação, que surge justamente com vistas a colocar uma “pá de cal” sobre o tema, visando prestigiar as operações realizadas no âmbito da securitização, pois servem de instrumento de circulação de renda atendendo preceitos públicos da economia e do mercado.

Na prática, com as alterações normativas, o debate que o tema invoca se tornou muito mais econômico do que jurídico, a divisar, de um lado; (a) o interesse particular de grandes empresas; e do outro (b) o interesse público na circulação de riquezas.

O referido dispositivo, que foi criado justamente para dar segurança jurídica às operações realizadas no setor de securitização de ativos e trazer efeitos positivos para a economia, não pode ser ignorado em benefício dos interesses privados de poucos grandes compradores/tomadores que, por conveniência, preferem evitar o trabalho e o desprazer de realizar o pagamento aos titulares do crédito (FIDCs/Securitizadoras), optando por continuar pagando ao credor original (Sacador).

As Securitizadoras e FIDCs são importantíssimos instrumentos para auxiliar empresas de diferentes portes com a antecipação de seu fluxo de caixa, não podendo ser surpreendidas com cláusulas de negócios jurídicos que não participaram para receber valor que claramente são credores, sob pena de extrema insegurança jurídica para o desenvolvimento de suas atividades.

E nem poderia ser diferente: a defesa do interesse econômico de um único agente devedor jamais se elevaria acima da importância econômica que a circulação de títulos de crédito exerce para toda economia.

A ampliação da oferta de crédito proporcionada pelos FIDCs e Securitizadoras beneficia diretamente milhares de sociedades empresárias dos mais variados portes com a melhoria e equilíbrio do seu fluxo de caixa, promovendo a desintermediação financeira e a ampliação da oferta de crédito com o reforço de canais de distribuição não bancários.

Foi apreciando esse conjunto de razões que o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já enfrentou a questão, no julgamento do agravo de instrumento nº 2176967-65.2020.8.26.000, ementado nos seguintes termos, a reforçar a nulidade de pactos privados que impedem a circulação de duplicatas, veja-se:

ANTECIPAÇÃO DA TUTELA – Suspensão de inscrição de nome em cadastro de inadimplentes – Inadmissibilidade – Duplicatas aparentemente que foram cedidas – Cláusula proibitiva de cessão que é nula por expressa disposição legal – Caso, ademais, em que há indícios de conhecimento da cessão pelo devedor e que não foi prestada caução nos autos – Requisitos legais presentes – Inteligência do art. 300 do Cód. de Proc. Civil - Decisão reformada – Agravo de instrumento provido.
(TJSP; Agravo de Instrumento 2176967-65.2020.8.26.0000; Relator (a): José Tarciso Beraldo; Órgão Julgador: 37ª Câmara de Direito Privado; Foro de São José dos Campos - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 06/10/2020; Data de Registro: 06/10/2020). Grifei.

E no julgamento da Apelação Cível nº 1064371-49.2020.8.26.0100 pela 15ª Câmara de Direito Privado:

(...) De se notar, ainda, que à época da celebração do negócio (21/05/2015 fl. 82), essa disposição contratual representava prática comum no mercado comercial e não havia qualquer impedimento legal.
Somente após o advento da lei 13.775/18 (art. 10), vigente a partir de 19/04/2019, passou a existir vedação legal de previsão contratual nesse sentido. (...) grifei.

Outras Cortes também já adotaram a mesma percepção, como é o caso do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que igualmente reconheceu a aplicabilidade do dispositivo em questão:

(...) Por esse motivo, quanto a esse aspecto em específico, a previsão contratual acerca da vedação à emissão de títulos para a cobrança de créditos passa a se sujeitar à legislação vigente à época de cada renovação do ajuste. E como já destacado, o art. 10 da Lei 13.775/2018, vigente a partir de 19/04/2019, prevê a nulidade absoluta e de pleno direito das cláusulas contratuais que vedem, limitem ou onerem, de forma direta ou indireta, a emissão ou a circulação de duplicatas emitidas sob a forma cartular ou escritural. (...)
(Acórdão 1358731, 07054414820208070001, Relator: MARIA IVATÔNIA, 5ª Turma Cível, data de julgamento: 28/7/2021, publicado no DJE: 12/8/2021. Pág.:  Sem Página Cadastrada.). grifei.

Dessa forma, o art. 286 do CC jamais poderia ser aplicado em casos envolvendo o endosso de duplicatas, em especial na operação de securitização de ativos empresariais em que atuam os FIDCs e Securitizadoras. Entretanto, ainda que se admitisse tal aplicação, o que se aceita somente por amor ao debate, não pairam dúvidas de que tal interpretação cai por terra com a edição da Lei Federal nº 13.775/2018, já que trata especificamente sobre o tema e, como se sabe, pelo princípio da especialidade (lex specialis derogat generali), merece prevalecer a norma especial em um conflito aparente (nesse caso, repita-se, inexistente).

Incidência da máxima res inter alios acta, allis nec prodest nec nocet.

O princípio pacta sunt servanda somente atinge as partes contratantes, não podendo vincular terceiros, como FIDCs e Securitizadoras. Essas operações, frequentemente documentadas apenas por notas fiscais e duplicatas, torna-se absolutamente irrelevante verificar se as partes celebraram uma avença. Perceba-se que não é obrigatório que para cada operação mercantil ou prestação de serviço as partes tenham que celebrar um contrato escrito. Aliás, na esmagadora maioria das vezes não há celebração de qualquer contrato solene.

Geralmente a prestação de serviços e a operação mercantil são documentadas tão somente pelos documentos fiscais (NFe, CTe, nota fiscal de serviços, etc.), de modo que, existindo o contrato particular, o FIDC e a Securitizadora só podem ter acesso a este se lhe for apresentado. O que na prática jamais ocorre, pois as operações de securitização de recebíveis com sua antecipação à endossante se materializam através do endosso da duplicata lastreada na nota fiscal na qual o Sacado figura como tomador do serviço e/ou da mercadoria.

À espécie, se aplica outro princípio, também de origem românica, qual seja res inter alios acta, allis nec prodest nec nocet, ou seja, “os atos dos contratantes não aproveitam nem prejudicam a terceiros”, como decidiu o E. TJSP (TJ-SP - APL: 10126301420138260100 SP 1012630-14.2013.8.26.0100, Relator: Francisco Giaquinto, Data de Julgamento: 16/12/2015, 13ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/12/2015), em decisão ainda anterior à lei 13.775/18, tornando nulas de pleno direito tais cláusulas, justamente por não vincular terceiros.

Dessa forma, é impossível aos agentes de mercado saber se uma duplicata foi emitida em violação a um contrato privado. A lei 13.775/18 (art. 10) impede assimetrias de informação e oportunismos, protegendo os adquirentes de títulos de crédito de boa-fé. Assim, a cláusula non cedendo é nula de pleno direito e não pode ser oposta a FIDCs e Securitizadoras ou a qualquer terceiro de boa-fé.

______

1 A operação comissária é modalidade de antecipação de recebíveis em que a cedente transmite a propriedade dos direitos creditórios sem que o FIDC ou a Securitizadora notifiquem o devedor da cessão.

2 Trata-se do contrato que formaliza os procedimentos que os contratantes devem seguir na compra e venda de direitos creditórios. Nele estão detalhadas todas as informações sobre as partes envolvidas, incluindo o valor do crédito cedido, as condições de pagamento e demais cláusulas pertinentes.

Felipe do Canto Zago
Advogado atuante no setor de Securitização de Recebíveis (FIDCs e Securitizadoras), consultor jurídico da ABRAFESC (Associação Brasileira de Factoring, Securitização e Empresas Simples de Crédito) e sócio-diretor da FZ | Advogados Associados. Também atua como professor universitário e é mestre em Direito na área de Fundamentos Constitucionais do Direito Público e do Direito Privado e pós-graduado em Direito Empresarial pela PUC-RS.

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