A Lei Maria da Penha, que neste mês completa 18 anos, foi um marco na proteção das mulheres contra a violência doméstica e familiar, estabelecendo mecanismos legais para coibir e prevenir agressões físicas, psicológicas e outras formas de abuso. No entanto, a aplicação dessas medidas, especialmente as protetivas de urgência, trouxe à tona uma nova faceta da violência doméstica: a violência indireta.
Essa forma de violência se manifesta quando o agressor, ao ser impedido de continuar a violência direta contra a vítima, busca formas alternativas de controle e manipulação, utilizando filhos, outros familiares, funcionários e o círculo social da mulher para continuar o ciclo de abuso. A violência interrompida antes de deixar marcas físicas muitas vezes abre espaço para que o agressor adote novas estratégias de perseguição e manipulação.
Após o deferimento das medidas protetivas de urgência, não é raro que esse instrumento, criado para proteger, se torne uma moeda de troca nas mãos de homens que insistem em controlar e manipular a mulher. Por meio de cobranças excessivas relativas à criação dos filhos, exposição dos filhos ao conflito, queixas sobre as dificuldades logísticas causadas pelas medidas protetivas, manipulação de babás e outros funcionários — muitas vezes utilizando comportamentos ameaçadores que exploram a relação de subordinação — e campanhas de difamação, os agressores buscam responsabilizar a mulher pelas violências que ela sofreu.
O autor da violência externaliza a culpabilização da vítima, que decidiu buscar ajuda, ao mesmo tempo em que minimiza as agressões que ele mesmo praticou. Nesse contexto, ele força o reconhecimento de sua própria vitimização e pressiona a vítima a revogar ou flexibilizar as medidas protetivas de urgência vigentes.
A pressão para “encerrar” os litígios não se restringe ao ambiente judicial, mas se estende ao círculo social e familiar da mulher. A vítima, já emocionalmente sobrecarregada, é frequentemente criticada por não ser considerada uma “boa mãe” por buscar medidas protetivas contra o pai de seus filhos, ou por não ser uma “boa dona de casa” ao delegar atividades a babás que se tornam alvo de violência. Além disso, a mulher também é vista de forma negativa por amigos e parentes, que a acusam de destruir a idealização social do relacionamento conjugal que possuía.
A assimetria de gênero é evidente. A mulher que busca proteger seus direitos é transformada em vilã, pois expõe o ciclo de violência doméstica que estava vivendo. Como mãe, ela enfrenta a ameaça de que insistir em medidas protetivas pode prejudicar a guarda ou o convívio com seus filhos, já que o agressor reforça as “dificuldades” impostas por essas medidas e promove acusações de alienação parental nos processos de família. Em muitos dos casos, o melhor interesse da criança ou adolescente é deixado de lado em favor dos desejos do agressor.
Mesmo com esse movimento de revitimização, o agressor muitas vezes continua a praticar violências indiretas sem enfrentar uma responsabilização formal, pois os atos persecutórios são frequentemente ocultos e individualmente lícitos. Como observa Rogério Donnini, "nem sempre é fácil provar os danos provocados pelo stalking, visto que, em certas situações, o agressor age no limite entre o lícito e o ilícito"1.
Na prática da advocacia criminal, existe um esforço hercúleo para demonstrar ao Judiciário que certos atos são parte de um comportamento de stalking. Essa dificuldade em responsabilizar o agressor reforça a parcialidade de gênero já presente nas relações sociais.
A vítima, isolada e privada até do convívio com familiares e amigos, se vê cada vez mais vulnerável, já que essas pessoas também podem se tornar alvo do stalker em sua tentativa de controlar a vítima. Esse isolamento é exatamente o que o agressor deseja: fazer com que a mulher se sinta amedrontada, incapaz e isolada2.
O ciclo de violência doméstica é perverso, muitas vezes comparável a uma Hidra de Lerna com múltiplos desdobramentos: violência psicológica, perseguição, ameaças, violência processual, entre outros. O sigilo em torno desse desconforto não pode mais persistir. É necessário que esse tema seja amplamente debatido para que essa iniquidade não continue sendo uma ferramenta para desqualificar a credibilidade da mulher que já é vítima.
1 DONNINI, Rogério. In: ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza (Coord.). Comentários ao Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2013, v. VIII: Dos atos unilaterais: dos títulos de crédito: da responsabilidade civil, p. 372.
2 AMIKY, L. G. Stalking. 2014. 119 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014. 119 p.