A data de 15/8/24 marca a comemoração dos 50 anos das relações entre o Brasil e a China, seja por coincidência ou ação dos astros, no calendário lunar chinês este é um ano do Dragão, ser mitológico que possui uma conotação extremamente positiva, na cultura chinesa, representado oportunidades auspiciosas, para empreender novos desafios e perseguir metas ambiciosas.
É importante destacar que a história entre estes dois países é bem mais antiga, já no século XIX, o Brasil começou a despertar, para o fluxo migratório vindo da Ásia, com a primeira colônia de chineses se instalando no Brasil em 1812, vindo de Macau para plantar chá no Rio de Janeiro, a pedido do Rei Dom João VI1.
No influxo deste contexto, durante o reinado de Dom Pedro II, em 15/3/1879, foi enviada uma Embaixada Especial do Brasil à China, à época governada pelo Império da Dinastia Qing. Esta primeira Embaixada Brasileira rendou frutos maravilhosos, merecendo destaque, para o Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre o Brasil e a China, assinado na data de 5/9/1880.
Posteriormente em 1949, o Partido Comunista Chinês chegou ao poder, fundando a República Popular da China. No ano seguinte, em 1950, eclodiu a guerra da Coréia e, neste contexto, o governo de Getúlio Vargas que já havia assinado um acordo militar com os EUA, aliando-se à política externa norte americana, decidiu não reconhecer o Governo da China Popular, em contrapartida, reconheceu Taiwan como legítima República Chinesa2.
Neste momento há uma ruptura diplomática entre o Brasil e a China, que só viria a ser reestabelecida, em 1961, com a corajosa atitude de João Goulart3, então vice-presidente do Brasil, em aceitar um convite feito pelo próprio governo chinês, para que ele visitasse a China. A postura adotada naquele ano pelo presidente Jânio Quadros inaugurou a Política Externa Independente4, objetivando diminuir a dependência do Brasil, em relação aos EUA, buscando-se criar relações com outros países, para um desenvolvimento nacional independente das ideologias políticas da época.
A viagem de João Goulart recebeu o nome oficial de Missão Comercial do Brasil à República Popular da China e a sua comitiva brasileira foi recebida, pelo próprio Mao Tsé-Tung. Foi a primeira visita oficial de um chefe de Estado sul-americano a este país asiático, sendo que, nesta viagem, João Goulart discursou, no Congresso Nacional do Povo em Pequim5. Contudo, antes mesmo de João Goulart voltar ao Brasil o presidente Jânio Quadros havia anunciado sua renúncia e um período de instabilidade política intensa passou a recrudescer, no Brasil, neste período, culminando com o golpe militar de 1964.
No dia 3/4/64, dois dias depois do golpe militar, ocorreu algo muito deletério, para as relações sino-brasileiras que implicou, no rompimento das relações diplomáticas entre os dois países, trata-se da prisão e tortura de nove chineses no Brasil, dentre eles dois jornalistas, quatro membros de uma missão encarregada de organizar uma exposição de objetos chineses e três membros de uma missão comercial.
Após um ano de prisão, os nove chineses foram expulsos do país, esta prisão arbitrária foi noticiada na imprensa internacional como o primeiro caso de violação aos direitos humanos durante o regime militar. Ainda no mesmo ano de 1964, o Congresso Nacional rejeitou o acordo comercial e o Ajuste Interbancário assinados com a China durante a Missão Comercial de agosto/61, desta forma, interrompia-se, naquele momento as relações sino-brasileiras6.
Passada uma década, o cenário internacional havia mudado bastante, a guerra do Vietnã, se aproximava de seu fim e as tensões entre a China e a URSS aumentavam. Neste contexto Richard Nixon decidiu visitar a China, em 1972, estabelecendo uma diálogo com Mao Ze Dong7, reestabelecendo as relações sino-americanas, em bases não ideológicas, mas pragmáticas.
Um ano após esta visita, o mundo viveu o choque da primeira crise do petróleo, em 1973, que atingiu drasticamente a economia brasileira, reforçando a necessidade da política diplomática do pragmatismo responsável implementada pelo presidente Geisel.
Aplicando-se esta política, como uma retomada, da Política Externa Independente brasileira, o presidente Geisel decidiu reestabelecer as relações entre o Brasil e a China em 15/8/748. Neste ato oficial realizado em uma cerimônia dentro do Itamaraty, o Brasil anunciou a criação de Embaixadas nos respectivos países e reconheceu o governo da República Popular da China como governo legítimo e reconheceu Taiwan como parte inalienável do território da República Popular da China.
Outro marco expressivo foi a primeira visita de um chefe de estado brasileiro à China, em 1984, pelo então presidente João Batista Figueiredo, por ocasião da comemoração do decênio das relações sino brasileiras. Há um ponto do discurso de Figueiredo no Grande Palácio do Povo, em Pequim, que merece destaque, em especial, quando mencionou que os dois países podem construir prósperas relações mesmo tendo sistemas sociais e políticos diversos9.
A transição para a democracia cujo marco foi a eleição de Tancredo Neves, em janeiro de 1985, deu continuidade às relações diplomáticas com a China, tanto é que em novembro do mesmo ano o Primeiro-Ministro Zhao Ziyang e o presidente do Banco Central da China visitaram o Brasil10.
Por sua vez, a visita oficial do presidente Sarney à China em 1988, sedimentou o compromisso do Brasil, em manter fortes relações diplomáticas com o país, vale lembrar que nesta viagem o Presidente Sarney se encontrou com Deng Xiaoping, esta viagem rendeu muitos resultados, que merecem destaque, dentre eles a assinatura do acordo de CBERS - Cooperação para Pesquisa e Produção de Satélites Sino-Brasileiros de Recursos Terrestres.
Outro marco expressivo na retomada das relações entre os dois países foi a visita oficial do Presidente da China Jiang Zemin, ao Brasil em 1993, nesta ocasião foi declarado que as relações sino-brasileiras possuíam o status de Parceria Estratégica, estatuto que designa um grau avançado nas relações entre dois países.
É importante destacar que o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a ser considerado um Parceiro Estratégico pela China e uma das mais fortes expressões desta parceria foi o apoio que, desde 1995, o Brasil deu à entrada da China na OMC - Organização Mundial do Comércio, o que só veio a acontecer em 11/12/01.
O presidente Fernando Henrique Cardoso, por sua vez, fez questão de visitar a China, em 1995, como sua primeira viagem presidencial à Ásia. Seu governo defendeu a política externa da “autonomia pela integração”, com o pragmatismo como instrumento necessário e eficaz à defesa dos interesses do país, e a China não poderia deixar de receber a sua atenção.
Nos anos seguintes as relações sino-brasileiras, durante o governo do presidente Lula, passaram por um intensificação decisiva. A sua visita à China em 2004, fez nascer a COSBAN - Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação, mecanismo de cooperação copresidido pelos respectivos Vice-presidentes dos dois países. No âmbito legislativo em 2004 foi criado o grupo parlamentar Brasil China pelo insigne Senador Alberto Silva, semente que originou a forte diplomacia parlamentar feita pelo congresso nacional brasileiro, nas relações entre estes dois países.
A criação da COSBAN, cujas reuniões acontecem uma vez a cada dois anos reunindo os respectivos vice-presidentes dos dois países, merece um destaque especial, porque ela inaugurou algo que o Brasil não possui com nenhum outro país no mundo, que é um planejamento conjunto com metas de médio e longo prazo.
As reuniões da COSBAN, estabelecem objetivos, metas e compromissos a serem alcançados, em 5 anos, através do Plano de Ação Conjunta, além de objetivos e metas a serem realizados, em 10 anos, com o Plano Decenal de Cooperação Brasil-China, ambos buscando esboçar uma estratégia de médio e longo prazo, para o relacionamento entre os dois países.
Os frutos desta cooperação diplomática já puderam ser verificados em 2009, 5 anos após a aludida viagem presidencial, ano em que a China passou a ser o maior parceiro comercial do Brasil superando tanto os EUA quanto a União Europeia. Vale destacar que neste mesmo ano ocorreu a primeira cúpula do BRICS, grupo formado pelo Brasil, Rússia Índia, China e África do Sul.
O governo Dilma, deu continuidade ao recrudescimento destas relações, recebendo, em 2010 o Presidente da China Hu Jintao, já em 2014 foi a vez de o Brasil ser o anfitrião recebendo o presidente Xi Jinping por ocasião da comemoração dos 40 anos das amizades sino-brasileiras, visita extremamente profícua e honrosa que conduziu à assinatura de 56 acordos e compromissos envolvendo tanto entidade públicas quanto privadas do Brasil e da China.
O mar revolto que envolveu o contexto político do impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, não abalou as relações sino-brasileiras, em grande medida por conta da magnanimidade do presidente Michel Temer que a sucedeu. Temer que, na qualidade de vice-presidente, já havia visitado a China, em 201311, por ocasião da terceira reunião da COSBAN, assumiu com maestria a continuidade das relações agora como presidente da república.
A promissora parceria entre o Brasil e a China sofreu, contudo, um batismo de fogo, durante o mandato do presidente Bolsonaro, que conduziu o Brasil a um alinhamento ideológico imediato com o presidente americano Trump, cujas palavras duras e por vezes ofensivas em relação à China foram ecoadas e reverberadas por membros do governo brasileiro. Estes dissabores diplomáticos ganharam uma projeção e uma disseminação perigosa, porque ocorreram durante a crise pandêmica causada pelo COVID-19, identificado pela primeira vez a partir de um surto na cidade de Wuhan, na China, em dezembro de 201912.
A resiliência das relações Brasil China foi testada a ferro e fogo, mas se mostraram maiores do que as falas de alguns agentes políticos, em grande parte graças à prudência e sabedoria do vice-presidente da república, à época, Hamilton Mourão, que, na qualidade de copresidente da COSBAN, reforçou o status de parceria de alto nível entre os dois países, em 2022 durante a 6ª reunião daquela comissão.
Passada a tempestade da pandemia, houve um saldo positivo, para a amizade entre os dois países, merecendo destaque a produção de 100 milhões doses da vacina chinesa da CoronaVac pelo Butantan, em Parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac.13
No campo econômico, ao término do mandato do presidente Bolsonaro, em 2022, verificou-se um aumento das exportações brasileiras que superaram os US$89,43 bilhões, lembrando que no ano de 2021 o Brasil foi o maior destino dos investimentos chineses, em um país estrangeiro no mundo, evidenciando a vitória do pragmatismo econômico sobre as diferenças ideológicas14.
Esta amizade voltou a ganhar ânimo com o governo Lula, que fez questão de visitar a China em 2023, onde foi recebido com honrarias pelo presidente Xi Jinping e tratado pela imprensa chinesa como, o velho amigo da China. Ainda nesta viajem o presidente Lula assinou a Declaração Conjunta Brasil-China sobre o combate às mudanças climáticas, reconhecendo a urgência em atingir a neutralidade de carbono antes de 205015. Ao término do ano de 2023, as exportações brasileiras para a China atingiram a estrondosa cifra de US$ 104 bilhões, o maior valor vendido pelo Brasil para um só país na história e o quarto recorde consecutivo das exportações brasileiras a este país asiático16.
Ainda neste ano de 2024, merece destaque a viajem feita à China pelo vice-presidente Alckimin por ocasião da 7ª sessão plenária da COSBAN, ocasião em que foram firmadas parcerias entre bancos nacionais e chineses garantindo mais de R$ 24,6 bilhões em financiamentos para projetos diversos no Brasil, com foco significativo na reconstrução do Rio Grande do Sul17.
Desta forma tendo em vista a linda e heroica história construída pelos dos países, o dia 15/8/24, ano do dragão, ano em que se comemoram 50 anos do restabelecimento das relações entre o Brasil e a China, possui tudo para ser uma data histórica memorável, em que todos os indicadores econômicos, sociais e geopolíticos apontam, para que esta amizade entre o Brasil e China se torne cada vez mais forte, próspera e vantajosa para o dois países.
1 BASTOS PEREIRA DAS NEVES, Lúcia Maria; PASCHOAL GUIMARÃES, Lucia Maria; BESSONE DA CRUZ FERREIRA, Tânia. O Império do Cruzeiro do Sul e a Corte Celeste de Tien-Tsin: apontamentos sobre as relações sino-brasileiras no século XIX1. 12. ed. Rio de Janeiro: Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha, 2010. 66-75 p. v. 6. ISBN 0100-1248.
2 PAUTASSO, Diego. Parceria China-Brasil e as potências desperdiçadas: Há brechas para uma relação mais altiva com Pequim, baseada no desenvolvimento da indústria nacional e troca de tecnologias. Mas diplomacia bolsonarista segue vassala aos EUA. Problema não é ideológico, mas de cegueira. OUTRAS PALAVRAS, 2021. Disponível em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/parceria-china-brasil-e-as-potencias-desperdicadas/. Acesso em: 11 ago. 2024.
3 CHAK, Tings. A aliança entre Nordeste e China apavorava o imperialismo antes do golpe de 1964: Visita de João Goulart à China em 1961 intensificou paranoia anticomunista e sinofóbica que serviu de pretexto ao golpe. Brasil de Fato, 2024. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/04/03/a-alianca-entre-nordeste-e-china-apavorava-o-imperialismo-antes-do-golpe-de-1964. Acesso em: 11 ago. 2024.
4 MOREIRA LIMA, Sérgio Eduardo. BRASIL E CHINA: 40 ANOS DE RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS: ANÁLISES E DOCUMENTOS. 1. ed. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2014. 44 p. v. 1. ISBN 978-85-7631-627-5.
5 ZUMPICHIATTI, Leonardo. Jango e a China: um legado socialista de paz e amizade. PDT12, 2019. Disponível em: https://pdt.org.br/index.php/jango-e-a-china-um-legado-paz-e-amizade/. Acesso em: 02 ago. 2024.
6 FERREIRA DA COSTA, Celiane. Análise das relações sino-brasileiras a partir da prisão de nove chineses no início do governo militar (1964). DOSSIÊ RELAÇÕES BRASIL CHINA, [s. l.], ano 2018, v. 9, n. 2, p. 7-30, 30 dez. 2018.
7 KISSINGER , Henry . Sobre a China. 1. ed. Rio de Janeiro: OBJETIVA, 2011. 242-255 p. v. 1. ISBN 9788539002992.
8 1974, Folha De São Paulo. BRASIL RECONHECE A CHINA DE MAO. Banco de Dados Folha, 1974. Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_16ago1974.htm#:~:text=%22O%20Governo%20da%20Rep%C3%BAblica%20Federativa%20do%20Brasil%20reconhece%20que%20o,dessa%20posi%C3%A7%C3%A3o%20do%20governo%20chin%C3%AAs.. Acesso em: 12 ago. 2024.
9 DA REPÚBLICA, Presidência . VISITA DE PRESIDENTE JOÃO FIGUEIREDO À REPÚBLICA POPULAR DA CHINA: MAIO 1984. -1. ed. Brasília: Imprensa Nacional, 1984. 9-19 p. v. 1.
10 BUSTELO, Santiago; GRIMMER, Karen. Visão de Futuro 1974 2014: 40 anos de relações diplomática entre Brasil e China. São Paulo: CEBC, 2015. 14-24 p.
11 BUSTELO, Santiago; GRIMMER, Karen. Visão de Futuro 1974 2014: 40 anos de relações diplomática entre Brasil e China. São Paulo: CEBC, 2015. 29-48 p.
12 AGOSTINE, Cristiane; RITTNER, Daniel ; RIBEIRO , Marcelo; LIMA, Vandson; TRUFFI, Renan. China exige pedido de desculpas e Itamaraty critica embaixador. Valor Econômico, 2020. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/570784/noticia.html?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 12 ago. 2024.
13 CoronaVac, vacina do Butantan e da Sinovac, já é usada em mais de 40 países. Portal do Butantan, 2021. Disponível em: https://butantan.gov.br/noticias/coronavac-vacina-do-butantan-e-da-sinovac-ja-e-usada-em-mais-de-40-paises#:~:text=O%20Brasil%20come%C3%A7ou%20sua%20campanha,ao%20SARS%2DCoV%2D2.. Acesso em: 12 ago. 2024.
14 Borges , F., Martins, L. M., & Rabelo, F. N. P. (2024). As relações diplomáticas e econômicas entre o Brasil e a China (2002-2023): continuidades, rupturas e desafios para o governo Lula 3. Princípios, 43(169), 25 - 46. Recuperado de https://revistaprincipios.emnuvens.com.br/principios/article/view/350
15 Declaração conjunta Brasil-China sobre combate às mudanças climáticas. GOV.BR, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/noticias/declaracao-conjunta-brasil-china-sobre-combate-as-mudancas-climaticas. Acesso em: 12 ago. 2024.
16 Em 2023, as exportações brasileiras para a China atingiram US$ 104 bilhões, marcando o quarto recorde consecutivo. CEBC CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA, 2024. Disponível em: https://www.cebc.org.br/2024/02/20/em-2023-as-exportacoes-brasileiras-para-a-china-atingiram-us-104-bilhoes-marcando-o-quarto-recorde-consecutivo/. Acesso em: 12 ago. 2024.
17 VII Sessão Plenária da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN). GOV.BR, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/vice-presidencia/central-de-conteudo/noticias/vii-sessao-plenaria-da-comissao-sino-brasileira-de-alto-nivel-de-concertacao-e-cooperacao-cosban#:~:text=Em%20Pequim%2C%20o%20vice%2Dpresidente,pelo%20Minist%C3%A9rio%20das%20Rela%C3%A7%C3%B5es%20Exteriores.. Acesso em: 12 ago. 2024.