1. O procedimento do leilão judicial
Nas relações privadas, quando ocorre lesão a algum direito patrimonial, e esta não é reparada espontaneamente, nem mesmo depois de uma condenação judicial, o instrumento que o ordenamento jurídico confere ao lesado é aquele de atuar, contra a vontade do devedor, sobre seu patrimônio.1 Trata-se do princípio segundo o qual o patrimônio do devedor serve como garantia geral de adimplemento.2 A responsabilidade patrimonial atuará sobre a esfera de liberdade do devedor, ou seja, coativamente sobre o seu patrimônio. O rigoroso procedimento judicial que viabiliza essa responsabilização patrimonial, permitindo ao executado todos os meios legais de defesa, culmina com a hasta pública3.
Hasta pública, de acordo com Humberto Theodoro Júnior, consiste no pregão através do qual o Poder Público anuncia, publicamente, os bens a alienar, convocando os interessados a fazer seus lanços.4 Logo, pode-se concluir que a hasta pública é o procedimento público para alienação de bem penhorado a favor daquele que oferece o maior lance, a menos que alguém desfrute de direito de preferência5, com a finalidade de transformá-lo em dinheiro para pagamento do débito judicial, retornando-se eventual saldo ao executado.
Para que o bem seja submetido a leilão judicial é necessário o preenchimento de alguns requisitos. O primeiro requisito é a realização da penhora sobre o bem que será alienado judicialmente. A penhora é uma constrição judicial sobre determinado bem do devedor que não efetua o pagamento da quantia fixada em sentença judicial ou oriunda de título executivo extrajudicial, com a finalidade de transformá-lo em dinheiro.6 Portanto, havendo um crédito a ser recebido, o credor requer ao juiz, nos autos de uma ação judicial, caso não haja o pagamento voluntário da dívida, a penhora de um ou mais bens que compõem o patrimônio do devedor para satisfação do crédito perseguido. Realizada a penhora de bem imóvel lavra-se o auto de penhora (art. 838 e 845 § 1º, CPC), averba-se a constrição judicial na matrícula imobiliária (CPC, art. 659, §4ª) e realiza-se à avaliação judicial (CPC, art. 870 e 872). Depois de homologada a avaliação judicial, o autor da ação, nos termos do art. 883 do CPC, tem a faculdade de indicar o leiloeiro de sua confiança que, nomeado pelo juízo, será intimado para dar início aos trabalhos, visando submeter o bem penhorado à hasta pública ou leilão judicial.
É imprescindível a elaboração e publicação de edital de praça que conterá, nos termos do art. 886 da lei processual, a descrição do bem penhorado com as suas características, situação e divisas, com remissão à matrícula e aos registros; o valor do bem; o dia e hora do leilão; menção de existência de ônus, recursos ou causa pendentes sobre os bens a serem arrematados; e a comunicação de que, se os bens não alcançarem lanço superior à avaliação, seguir-se-á, em dia e hora desde logo designados, a sua alienação pelo maior lanço. Pode ocorrer, portanto, que o ato de expropriação seja composto por duas datas, a primeira na qual o bem somente pode ser arrematado por valor igual ou superior ao da avaliação judicial, e a segunda, caso não haja licitante na primeira, pelo maior lanço, desde que não seja por preço vil, geralmente caracterizado por percentual inferior a 50% sobre o valor da avaliação.
Sendo o bem arrematado, cujo procedimento vem disciplinado no art. 881 do CPC, lavra-se o auto de arrematação (CPC, art. 901) e com o depósito integral do preço, bem como o preenchimento dos demais requisitos legais, o juiz determina a expedição da carta de arrematação (CPC, art. 901, §1º e §2º), que deverá ser submetida a registro junto ao cartório imobiliário para ocorrer a transferência da propriedade ao arrematante. É importante registrar que, com a arrematação, se obtém apenas o título para aquisição da propriedade, assim como ocorre com o contrato de compra e venda, pois o modus acquirendi, em se tratando de bem imóvel, é a inscrição no registro imobiliário conforme prevê o disposto no art. 1.245 do CC/02.
Entretanto, em muitos casos o leilão não tem por objeto a propriedade propriamente dita, em razão da penhora ter incidido sobre os direitos aquisitivos de titularidade do executado, sendo estes direitos aquisitivos, portanto, o objeto do leilão - e não a propriedade.
Assim, necessário analisar as consequências para o arrematante no caso de arrematação de direito e ação - expressão geralmente utilizada nos editais de leilão -, ou direitos aquisitivos, o que passa a ser feito a seguir.
2. Penhora e leilão de direitos aquisitivos e sua regularização
Quando a penhora recai sobre os direitos aquisitivos (ou direito e ação), em razão da existência de uma deficiência na titularidade do bem, por exemplo quando o executado possui apenas uma promessa de compra e venda e o credor requer a penhora dos direitos provenientes deste contrato, no caso os direitos aquisitivos, que é o único direito pertencente ao executado, surge a necessidade de o arrematante formular um pedido específico, qual seja, a expedição da carta de arrematação para transferência da propriedade plena.
Caso não seja formulado o pedido nestes termos, o arrematante receberá a carta de arrematação contendo determinação para o oficial do registro de imóveis proceder com a transferência apenas dos direitos aquisitivos, permanecendo a deficiência de titularidade na matrícula do imóvel arrematado, o que impede, por exemplo, a celebração de um futuro contrato de compra e venda pelo arrematante7.
Contudo, a possibilidade de transferência da propriedade para o arrematante está longe de se encontrar pacificada nos tribunais do país. A jurisprudência oscila fortemente, ora autorizando a transferência da propriedade, ora não autorizando, e este cenário acaba por exigir do advogado do arrematante um conhecimento profundo acerca dos fundamentos, favoráveis e contrários, sobre este tema, para buscar a melhor solução possível para o arrematante, que é considerado terceiro de boa fé e desempenha papel importantíssimo auxiliando a justiça na solução de uma quantidade incontável de conflitos.
O debate passa pelo enquadramento jurídico da arrematação como sendo modo originário ou derivado de aquisição da propriedade, no entanto, mesmo a jurisprudência do STJ admitindo se tratar a arrematação de modo originário, há resistência de muitos julgadores em determinar a transferência da propriedade no caso de arrematação de direito e ação.
Em outras palavras significa dizer que os defensores do modo originário de aquisição da propriedade admitem a transferência da propriedade em favor do arrematante, mesmo quando se trata de penhora e leilão de direito e ação.
Os adeptos do modo originário defendem que inexiste relação jurídica entre o executado e o arrematante, logo, não haveria transmissão de direito e, neste caso, o bem deveria ser transmitido livre e desembaraçado de ônus. Por outro lado, para os adeptos do modo derivado de aquisição o direito arrematado estaria vinculado aos direitos pertencentes ao executado, motivo pelo qual somente os direitos aquisitivos poderiam ser adquiridos pelo arrematante, exigindo-se, por consequência, uma medida adicional para corrigir a deficiência existente na titularidade do bem arrematado.
Vale registrar, uma vez mais, que o STJ tem jurisprudência firme no sentido de inserir a arrematação na modalidade de aquisição originária, cujos fundamentos são de duas ordens: o primeiro diz respeito a falta de consenso do proprietário na transferência do bem, eis que não haveria uma relação causal entre o executado e o arrematante que pudesse justificar o enquadramento jurídico do ato aquisitivo na categoria de negócios jurídico; o segundo diz respeito a extinção dos ônus recaídos sobre o imóvel, por exemplo em razão do disposto nos arts. 130 do CTN, 1.499 do CC, e 908 do CPC8.
Contudo, a jurisprudência dos tribunais estaduais e federais têm forte divergência sobre a solução a ser dada neste tipo de situação9, sendo possível encontrar decisões judiciais em ambos os sentidos. Assim, é indispensável que o advogado atuante em leilão de imóveis conheça a problemática envolvendo o leilão de direito e ação para, diante do caso concreto, ter condições de adotar as medidas necessárias para regularização do bem arrematado.
Surgem, assim, dois caminhos possíveis para regularização do direito e ação arrematado, a saber: i) a transferência direta da propriedade para o arrematante por meio da expedição de carta de arrematação pelo juízo que realizou o leilão judicial; e ii) não sendo possível a primeira hipótese, a adoção de uma medida adicional pelo arrematante, judicial ou extrajudicialmente, por exemplo a propositura de uma ação de adjudicação compulsória ou a obtenção do contrato definitivo contra o aquele que figura como proprietário do bem na matrícula do imóvel.
3. Problemática envolvendo a penhora e o leilão dos direitos aquisitivos decorrentes dos contratos de alienação fiduciária
Em certas ocasiões o adquirente de imóvel alienado fiduciariamente tem os seus direitos penhorados em decorrência de dívidas contraídas com terceiros, dívidas estas que podem ser de natureza propter rem ou comum, com produção de efeitos variados para o arrematante.
Quando um adquirente celebra contrato de alienação fiduciária surge direito real de garantia para o credor fiduciário, submetendo este arranjo contratual a um regime jurídico próprio, previsto no art. 1.419 do CC, segundo o qual “o bem dado em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação.” A constituição da garantia de alienação fiduciária acarreta a transferência da propriedade ao credor fiduciário, normalmente uma instituição financeira, em razão de contrato de mútuo ou empréstimo bancário celebrado com o devedor fiduciante. Trata-se de propriedade resolúvel que, em um momento futuro, se extinguirá em favor do devedor fiduciante, quando este cumprir a sua obrigação de pagamento, ou em favor do credor fiduciário, mediante a consolidação da propriedade pelo inadimplemento do devedor, ocasião em que o bem objeto da garantia é submetido a leilão extrajudicial, nos termos da lei 9.514/97.
Entretanto, a presente abordagem não visa discorrer acerca do leilão extrajudicial decorrente do procedimento de execução extrajudicial da garantia de alienação fiduciária prevista na lei 9.514/97, e sim sobre o leilão de direitos aquisitivos de titularidade do devedor fiduciante, em razão de execução promovida por seu credor.
Imaginemos o seguinte cenário: João celebra com o banco x contrato de alienação fiduciária no qual o imóvel y é transferido para o banco x, credor fiduciário, como garantia de cumprimento do referido contrato, figurando João como devedor fiduciante. Técio executa judicialmente João e descobre a existência do referido contrato de alienação fiduciária, requerendo ao juiz a penhora dos direitos aquisitivos, diante da impossibilidade de penhorar da propriedade pertencente ao banco x.
Diante desse cenário, cria-se uma dificuldade em alienar tais direitos aquisitivos por meio de leilão judicial, tendo em vista o entendimento jurisprudencial majoritário no sentido de o arrematante assumir a posição contratual do devedor no contrato de alienação fiduciária, afastando, por consequência, a maioria ou totalidade dos interessados. Neste caso, somente seria economicamente viável a arrematação dos direitos aquisitivos se o produto da arrematação fosse suficiente para efetuar o pagamento da dívida existente junto ao credor fiduciário, caso contrário, dificilmente haveria interessados diante da necessidade de assumir o débito fiduciário.
Todavia, parte da jurisprudência vem admitindo a penhora do imóvel – e não apenas dos direitos aquisitivos - quando se trata de dívida de natureza propter rem, especialmente a dívida condominial, diante do interesse da coletividade, no caso, os condôminos.
Para tanto, torna-se necessário sobrepor a previsão do art. 1.345 do Código Civil, segundo o qual cabe ao adquirente a responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais, em relação à previsão no art. 27, §8º, da lei 9.514/97, a qual prevê a obrigação de pagamento das despesas condominiais pelo devedor fiduciante e a responsabilidade do credor fiduciário somente após a sua imissão na posse do bem objeto da garantia.
Na linha da jurisprudência do STJ10 que vem se formando seria necessário o condomínio incluir o credor fiduciário no polo passivo da execução, para integrar a relação processual, permitindo-lhe assim o pagamento do débito judicial e, por consequência, evitar o leilão do bem, hipótese na qual se sub-rogaria nos direitos do condomínio, sendo possível a partir daí exercer o direito de regresso contra o devedor fiduciante.
Não se trata de um entendimento pacificado, ao menos não no atual momento, mas é uma luz no fundo do túnel para solucionar a problemática do leilão de imóvel objeto de alienação fiduciária no caso de dívida propter rem. A adoção deste entendimento gera uma série de benefícios, tais como: i) segurança jurídica aos arrematantes, que não assumirão a posição contratual do devedor fiduciante; ii) interesse nos leilões de imóveis objeto de contratos de alienação fiduciária (no caso de penhora por dívida propter rem); e iii) a transferência da propriedade plena para o arrematante com a extinção da garantia de alienação fiduciária.
Vale esclarecer que, em recente decisão publicada (21/6/24), o STJ decidiu por fixar tese vinculante sobre o tema, por meio do tema 1266, para “definir se é possível penhorar o imóvel alienado fiduciariamente em decorrência de dívida condominial”.11 Assim, verifica-se que uma solução definitiva sobre o tema está muito próxima, cabendo-nos aguardar, com a esperança de que a tese firmada seja no sentido de autorizar a penhora do imóvel objeto de contrato de alienação fiduciária em decorrência de dívida condominial, e, por consequência, o leilão da propriedade.
4. Conclusão
Feitas as breves considerações acima, observa-se a relevância do tema para o mercado de leilões de imóveis, com aplicação prática indiscutível, sendo dever do advogado conhecer não apenas a problemática envolvendo o leilão de direito e ação como também as soluções disponíveis no ordenamento jurídico, para defender os interesses do arrematante e buscar a regularização do bem arrematado.
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1 TEPEDINO, Gustavo e SCHEREIBER, Anderson. Código Civil Comentado: direito das obrigações: artigos 233 a 420, vol. IV. Coordenador Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2008, pag. 349.
2 Art. 391 do CC: “Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor”. Art. 789 do CPC “O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo restrições estabelecidas em lei”.
3 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, vol. II, 21 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 336. O novo Código de Processo Civil suprimiu à expressão “hasta pública” e passou a utilizar apenas leilão.
4 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense, 2004, n. 857, p. 226
5 Apelação Cível n. 0018457-18.1999.8.19.0000, Rel. Manoel Carpena Amorim, 8ª CC do TJ/RJ, julg. em 14/12/1999. Publ. DJ. 17/03/2000.
6 Segundo Araken de Assis a penhora é “ato executivo que afeta determinado bem à execução, permitindo sua ulterior expropriação e torna os atos de disposição do seu proprietário ineficazes em face do processo. (ASSIS, Araken de. Manual do Processo de Execução. 14ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.697)
7 A impossibilidade de venda do bem ocorre porque o arrematante não se tornou proprietário do bem, em razão de ter adquirido apenas os direitos aquisitivos pertencentes ao executado.
8 Agravo em Recurso Especial n. 1.426.098 – RJ.
9 Agravo de Instrumento n. 0080816-95.2022.8.19.0000, Rel. Desembargador Paulo Wunder, TJ/RJ.
10 Recurso Especial 2.059.278- SC
11 Proposta de Afetação no Recurso Especial n. 1874133-SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha.
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ASSIS, Araken de. Manual do Processo de Execução. 5ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
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JUNIOR, Fredie Didier. Regras Processuais no Código Civil: aspectos da influência do Código Civil de 2002 na legislação processual. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
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