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Remessa necessária e apelação fazendária voluntária (artigo 496, § 1º, do CPC/15)

O presente artigo visa debater o cabimento da remessa necessária quando interposta apelação pela Fazenda Pública, diante da limitação trazida pelo artigo 496, § 1º, do CPC/2015.

10/8/2024

Como se sabe, o instituto da remessa necessária (ou reexame necessário) encontra respaldo no artigo 496, do CPC/2015, que, nos incisos I e II, define os casos em que se fará necessário o duplo grau de jurisdição, relacionados à sentença:

a)      proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público” (inciso I); ou

b)      que “julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal” (Inciso II). 

Ocorre que o § 1º, do referido artigo, traz uma condicionante para o duplo grau de jurisdição em relação aos casos acima, qual seja: “não interposta a apelação no prazo legal, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, e, se não o fizer, o presidente do respectivo tribunal avocá-los-á”.

Da leitura do citado dispositivo, percebe-se que a remessa necessária dos autos ao Tribunal somente ocorrerá na ausência de apelação interposta pelas pessoas descritas no inciso I ou pela parte embargada mencionada no inciso II. Isso porque, do contrário (quando interposta a apelação), será submetido ao exame do Tribunal o recurso apresentado. Significa dizer, a interposição em razão da lei, se dará se não houver interposição voluntária de recurso e nas hipóteses em que são cabíveis a remessa.

O dispositivo em questão revela o propósito claro do legislador de limitar a incidência do duplo grau obrigatório aos casos em que a Fazenda Pública deixa de recorrer voluntariamente da sentença.

É nesse sentido, por sinal, que a doutrina de Humberto Theodoro Júnior1 assenta o seu posicionamento:

A novidade do CPC de 2015 é a supressão da superposição de remessa necessária e apelação. Se o recurso cabível já foi voluntariamente manifestado, o duplo grau já estará assegurado, não havendo necessidade de o juiz proceder à formalização da remessa oficial. A sistemática do Código anterior complicava o julgamento do tribunal, que tinha de se pronunciar sobre dois incidentes – a remessa necessária e a apelação –, o que, quase sempre, culminava com a declaração de ter restado prejudicado o recurso da Fazenda Pública diante da absorção de seu objeto pelo decidido no primeiro expediente. Andou bem, portanto, o novo Código em cogitar da remessa necessária apenas quando a Fazenda Pública for omissa na impugnação da sentença que lhe for adversa (art. 496, § 1º).” – Grifou-se

Do mesmo modo, é a posição de Leonardo Carneiro da Cunha2, da moderna doutrina processualista civil:

Veja que o § 1º do art. 496 dispõe que só haverá remessa necessária se não houver apelação. Havendo apelação, não haverá remessa necessária. Haveria aí a aplicação da regra da singularidade: não é possível a remessa necessária e a apelação ao mesmo tempo. Se não há apelação, há remessa necessária. Essa não é a explicação nem a causa para afirmar que a remessa necessária ostenta natureza recursal. Esse não é um detalhe que componha o conceito de recurso. Na verdade, essa é uma consequência da natureza recursal da remessa necessária, que se pode confirmar pelas normas do direito positivo brasileiro.” – Grifou-se

Contudo, uma outra parte da doutrina – mais conservadora – interpreta o artigo 496, do CPC/2015, como uma confirmação da obrigatoriedade da remessa necessária em favor da Fazenda Pública, mas somente por meio de um modelo de valores escalonados e quando a sentença estiver fundada em decisões vinculativas. Essa corrente ignora a condicionante do § 1º e entende que a remessa necessária deixa de ser obrigatória somente nas situações descritas nos §§ 3º e 4º3.

Veja-se, por exemplo, o que preleciona José Tadeu Neves4:

O debate sobre a manutenção do sistema de remessa necessária em favor da Fazenda Pública foi um dos temas que polarizou os doutrinadores durante a fase de elaboração do texto da nova codificação processual, prevalecendo a opção pela sua manutenção, porém com um modelo de valores escalonados, conforme consignado nos incisos do art. 496.

Assim, nos processos em que for condenada a União, autarquias federais ou fundações federais ficará dispensada a remessa necessária nas sentenças condenatórias referentes a valores de até 1.000 salários mínimos. No caso de condenação dos Estados, suas capitais e o Distrito Federal e suas respectivas autarquias ou fundações públicas o limite autorizador da remessa necessária é de até 500 salários mínimos. Em relação aos demais municípios, e respectivas autarquias e fundações públicas a dispensa da remessa necessária é limitada a condenações de até 100 salários mínimos. (...)

A remessa impositiva também será afastada quando a sentença estiver fundada em (a) súmula de tribunal superior, (b) acórdão proferido pelo STF ou STJ em julgamento de recursos repetitivos, (c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou assunção de competência, e (d) entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.” – Grifou-se

Filiando-se ao entendimento acima, o STJ tem admitido o afastamento do reexame necessário apenas com fundamento em estimativa do valor da condenação, a exemplo do que depreende do seguinte trecho da decisão monocrática proferida pelo Ministro Francisco Falcão, da 2ª Turma, nos autos do REsp 1.859.113/PR, em 07.10.2021:

Quanto à violação do art. 496, §1º do CPC/2015, este Superior Tribunal de Justiça tem entendimento no sentido da viabilidade da remessa necessária quando ultrapassados os valores do art. 496, § 3º do CPC/2015”.

Note-se, do trecho acima, uma ênfase na aplicação do § 3º do mesmo artigo, sem levar em conta a análise detalhada das condições específicas mencionadas no § 1º. Essa interpretação reforça a ideia de que a simples estimativa do valor da condenação é suficiente para afastar a remessa necessária, alinhando-se ao entendimento de que o reexame necessário deve ser interpretado de forma a garantir a proteção dos interesses da Fazenda Pública, em detrimento do contribuinte.

Outro precedente da 2ª Turma afastou expressamente a hipótese do § 1º, entendendo que a remessa necessária independeria da falta de apelação do ente público, sem, no entanto, fornecer maiores explicações sobre os fundamentos que justificariam essa interpretação, limitando-se a apresentar como único argumento a Súmula 325/STJ. Veja-se da decisão monocrática proferida pelo Ministro Herman Benjamin, nos autos do AREsp 1.974.188/RS, em 29.03.2022:

A alegada violação dos arts. 8, § 1º, do Decreto-Lei 3.365/41; 496, § 1º, e 1013 do CPC deve ser rejeitada, porque a jurisprudência do STJ é de que remessa necessária independe da falta de apelação do ente público, devolvendo ao juízo ad quem toda a matéria decidida desfavoravelmente à Fazenda Pública. No mesmo sentido dispõe a Súmula 325/STJ: ‘A remessa oficial devolve ao Tribunal o reexame de todas as parcelas da condenação suportadas pela Fazenda Pública, inclusive dos honorários de advogado”.

Entretanto, é importante destacar que a Súmula 325/STJ foi editada na vigência do CPC/1973, que, no artigo 475, previa a hipótese de remessa necessária havendo ou não apelação, pois continha a expressão “haja ou não apelação5. O atual artigo 496, no § 1º, é categórico ao prever a remessa necessária quando “não interposta a apelação”. 

Como a lei não tem palavras inúteis, a alteração implica admitir que somente haverá remessa necessária quando não houver apelação voluntária da Fazenda Pública.

Portanto, não parece razoável o entendimento pelo conhecimento da remessa necessária nos casos em que a Fazenda Pública interpõe apelação, sobretudo para exame de matéria que não foi objeto do recurso fazendário, sob pena de o julgamento se caracterizar como ultra petita, conforme disposto no artigo 492, do CPC/20156. 

Assim, por compreender que a regra contida no artigo 496, § 1º, do CPC/15, não se compatibiliza com a tramitação simultânea de remessas oficiais e apelações fazendárias e, ainda, considerando a atual necessidade de priorização de posturas hermenêuticas que contribuam para a racionalização da atividade jurisdicional, espera-se que a Corte Especial reveja o seu entendimento, para o restabelecimento da correta aplicação do dispositivo legal e a consequente eficiência na tramitação processual.

_____________

1 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum (vol. I). 57. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1101.

2 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A fazenda pública em juízo. 13. ed. (totalmente reformulada). Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 185-186.

3 Os §§ 3º e 4º, do artigo 496 do CPC/2015, prescrevem que não haverá remessa necessária em duas hipóteses: a primeira, quando a causa tiver condenação ou proveito econômico não superior a 1.000 (mil) salários-mínimos para a União e as respectivas autarquias e fundações de direito público; ou 500 (quinhentos) salários-mínimos para os Estados, o Distrito Federal, as respectivas autarquias e fundações de direito público e os Municípios que constituam capitais dos Estados; ou 100 (cem) salários-mínimos para todos os demais Municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público; e a segunda, quando a sentença estiver fundada em súmula de Tribunal Superior; ou acórdão proferido por Tribunal Superior em julgamento de recursos repetitivos; ou entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; ou entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.

4 NEVES, José Tadeu. Novo Código de Processo Civil Anotado. Brasília: Ordem dos Advogados do Brasil, 2016, p. 541-542. Disponível em: https://www.oab-ro.org.br/gerenciador/data/uploads/2016/03/Novo-CPC-Anotado.pdf. Acesso em: 30 jul. 2024.

5 Redação original:

Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença: (...)

Parágrafo único. Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação voluntária da parte vencida; não o fazendo, poderá o presidente do tribunal avocá-los.” – Grifou-se

Redação dada pela Lei nº 10.352/2001:

Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença: (...)

§ 1º Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los.” – Grifou-se

6 “Art. 492. É vedado ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.

Parágrafo único. A decisão deve ser certa, ainda que resolva relação jurídica condicional.

Lorena Cavalcante Lopes
Advogada no escritório Castro Barros Advogados, mestranda em Controladoria e Finanças pela FIPECAFI e especialista em Direito Financeiro e Tributário pela UFF

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