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Alavancagem dos fundos de investimento imobiliários - Histórico e desafios

O crescimento dos FIIs foi impulsionado pela baixa de juros e, apesar da pandemia, continuou firme. No entanto, a lei antiga limitava garantias sobre os imóveis dos FIIs, uma restrição que está sendo revisada para melhor refletir as demandas atuais do mercado.

2/8/2024

Introduzidos no Brasil quando da edição da lei 8.668, de 25/1/93 (lei 8.668/93), os FIIs - Fundos de Investimento Imobiliários tiveram um início relativamente tímido, em parte pelo desafio, presente à época, de convencer o investidor brasileiro, culturalmente acostumado a ver na propriedade imobiliária direta um investimento sólido e seguro, que tal propriedade também poderia ser alcançada, ainda que indiretamente, pela titularidade de cotas de FIIs. Com o tempo, os investidores perceberam que, ao investir em FIIs, poderiam dispor de maior diversificação de seu portfólio imobiliário, além de se verem livres das burocracias e custos que acompanhariam a propriedade direta de imóveis.

A relativa bonança das taxas de juros, que vivemos no Brasil entre os anos de 2018 e 2019, ajudou a dar um primeiro grande impulso à formação de mercado desses fundos, e desde então, o número de seus investidores tem crescido exponencialmente, crescimento esse que se manteve razoavelmente consistente mesmo com a pandemia da Covid-19, fazendo-se presente ainda hoje, em um cenário de alta das taxas de juros.

Contudo, ao longo da maior parte de sua história – de 1993 até o final de 2023 – os investidores de FIIs conviveram com dispositivos da lei 8668/93 que pareciam destoar do dinamismo alcançado pelo mercado desses fundos. Destaca-se a vedação1, então aplicável, à constituição de quaisquer ônus reais sobre os imóveis integrantes do patrimônio do FII, vedação essa que, por si só, limitava o escopo de garantias que podiam ser oferecidas, por exemplo, quando de uma negociação de compra e venda de imóvel ou seu financiamento, na hipótese em que este integrava ou deveria integrar o patrimônio de um FII.

É natural que, com a evolução dos mercados, determinados conceitos e regras também evoluam e, assim, passem a refletir melhor o espírito do tempo da atualidade, e as novas demandas que esta traz consigo.

Com a edição da lei 14.754, de 12/12/23 (lei 14.754/23), foram modificadas disposições da lei 8.668/93 que limitavam a alavancagem dos FIIs, passando-se a permitir, por exemplo, a constituição de ônus reais sobre os imóveis integrantes do patrimônio do fundo, quando para garantir obrigações assumidas por este ou por seus cotistas.

Talvez pelo fato de integrarem uma lei com foco predominante em matéria tributária, esses dispositivos específicos sobre FIIs somente passaram a ser objeto de maior discussão pelo mercado ao longo dos primeiros meses de 2024.

Foi então que, legitimamente preocupada com o potencial mau uso da abertura para alavancagem trazida pela lei 14.754/23, a CVM publicou o Ofício-Circular 1/24/CVM/SSE (Ofício-Circular), em 22/2/23, tornando público seu entendimento de que permanecia vedada a alavancagem dos FIIs até a publicação de norma específica que alterasse a regulamentação então vigente2.

Por meio do referido Ofício-Circular, a CVM externava uma preocupação específica com o regime informacional em torno da matéria.
No mercado de capitais, ambiente em que a transparência desfruta do status de princípio de ordem pública, com aquela medida preventiva a CVM parecia caminhar na direção mais prudente para aquele momento.

Porém, pouco tempo depois, em 8/3/24, por meio do Ofício Interno 3/24/CVM/SDM/GDN-2 (Ofício Interno 3), revendo posicionamento anteriormente divulgado por meio do Ofício-Circular, a CVM sinalizou positivamente (embora de maneira mais restritiva que a lei 14.754/23) sobre a possibilidade de os FIIs poderem utilizar ativos de suas carteiras em garantia de suas operações.

Nesse sentido, propôs a revogação do inciso II do art. 32 do Anexo Normativo III da Res. CVM 175, colocando a matéria sob a governança da regra geral, que “estabelece que o gestor pode utilizar ativos da carteira como garantia da operação da classe de cotas (art. 86, §1º), observado que nas classes que são de investimento do público em geral a medida requer aprovação prévia da assembleia de cotistas (art. 86,  §2º)”.

Também foi alterado o inciso V do art. 32 do Anexo Normativo III da Res. CVM 175, de modo que se passou a permitir ao gestor a “constituição de ônus reais sobre imóveis integrantes do patrimônio de cotas, desde que seja constituída para garantir obrigações assumidas pela classe, conforme agora previsto na lei”, permanecendo vedada a constituição de ônus reais para outros fins.

Essas mudanças regulatórias foram consolidadas na Resolução CVM 200, de 12/3/24, que também inseriu o §3º no art. 32 da res. CVM 175, restringindo às classes exclusivas (voltadas para investidores profissionais) a possibilidade de que o “gestor preste fiança, aval, aceite ou coobrigue-se de qualquer forma, assim como que constitua ônus reais sobre os imóveis integrantes do patrimônio da classe, para garantir obrigações assumidas pelos cotistas”.

Assim, os regulamentos dos FIIs já constituídos terão que sofrer alterações, de modo a prever a possibilidade de o gestor se valer dessas novas ferramentas.

Remanescem dúvidas sobre como a alavancagem dos FIIs vai operar na prática, algo natural nesse estágio no qual temos uma mudança recente e relevante sobre um paradigma legal que estava assentado há anos. Teoricamente, isso poderia abrir um flanco para a sempre bem-vinda atuação da autorregulação.

De qualquer forma, princípios caros ao mercado de capitais como disclosure e governança podem auxiliar a traçar um percurso relativamente seguro em termos de proteção aos interesses dos investidores e prevenção à responsabilização dos prestadores de serviços essenciais, nesse novo cenário no qual a exposição de risco dos FIIs pode eventualmente aumentar.

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1 Art. 7, VI, Lei 8.668/93, revogado pela Lei n° 14.754, de 2023.

2 O artigo 32, incisos II e V, do Anexo Normativo III da Resolução CVM nº 175.

Farley Menezes
Counsel no Cascione Advogados. Conselheiro para o Mercado Imobiliário. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - Ibradim. Membro da International Bar Association.

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