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Prova emprestada na arbitragem: limites e possibilidades

A prova emprestada, prevista no CPC/15, também pode ser utilizada em arbitragem, dada a flexibilidade procedimental. Entretanto, sua admissibilidade precisa considerar as especificidades da jurisdição arbitral.

2/8/2024

A figura da prova emprestada é conhecida no direito brasileiro desde antes da sua positivação, no CPC/15. Tradicionalmente, considerada como prova atípica, passou a ter amparo normativo no art. art. 372 do diploma processual, que passou a prever que “o juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório”. Diante da sua inegável utilidade prática, cabe averiguar os contornos da sua admissibilidade em procedimentos arbitrais.

A fase instrutória da arbitragem não deixa de guardar uma das mais importantes facetas daquele método alternativo de resolução de disputas, qual seja, a ampla flexibilidade procedimental. O art. 22 da lei de arbitragem atribui aos árbitros vasta discricionariedade para admitir, conduzir e ordenar a fase instrutória. Independentemente de qualquer previsão, expressa na lei ou em regulamentos de instituições arbitrais, é de se admitir a aceitação da prova emprestada - oriunda de outras disputas arbitrais ou judiciais - em disputas julgadas pela via arbitral. O mesmo se diga, naturalmente, do uso de prova produzida em procedimentos arbitrais, em ações judiciais.  No entanto, é necessário apontar limites e adaptações, já que - pelas peculiaridades próprias da jurisdição privada - a prova emprestada não necessariamente apresentará os mesmos contornos que a definem no contexto do processo civil estatal.

Como noção geral, a prova emprestada pode ser concebida no CPC como sendo o transporte da produção probatória de um processo originário (exportador da prova) para outro (importador da prova). Reutiliza-se a atividade probatória já produzida, em benefício da economia processual, tornando despicienda a sua reprodução. Contudo, é possível ter compreensão mais ampla no contexto da arbitragem, vislumbrando o empréstimo probatório a importação de qualquer ato processual que exerça função probatória, não se restringindo aos elementos estritamente probatórios debatidos no processo exportador. Assim é que pronunciamentos jurisdicionais podem, em determinada medida (e.g fatos referidos na sentença), também ser importados como prova a ser utilizada em uma arbitragem.

É de se reconhecer a possibilidade de empréstimo de qualquer meio de prova - confissão, depoimento, inspeção judicial, perícia, decisões, ou prova atípica. Deve vigorar, no âmbito do processo importador, a ampla liberdade do tribunal arbitral para admitir a importação da prova. Excepcionalmente, até mesmo provas produzidas em processos que transmitem em segredo de justiça ou resguardadas pelo manto da confidencialidade poderão ser importadas em uma arbitragem - desde que essa também esteja protegida por dever de confidencialidade. Por exemplo, considere-se uma arbitragem “A” que discute matéria societária, envolvendo acionistas e a companhia. Em uma outra arbitragem “B”, discute-se a mesma matéria, mas a questão foi suscitada por outros acionistas, que não participam da arbitragem “A”. O tribunal da arbitragem “B” terá, em princípio, poderes para determinar a importação de provas produzidas na arbitragem “A”. E a decisão sobre tal questão será tomada pelo tribunal exportador.  Na hipótese de conflito, a questão deverá ser encaminhada, pela parte descontente, às cortes judiciais competentes, para resolver tais espécies de contendas.

Também deve-se reconhecer a possibilidade de importação de prova produzida em quase qualquer espécie de processo, seja esse arbitral, administrativo, civil ou penal. Inclusive, pode-se pleitear a importação de provas de processos estrangeiros.  É exceção relevante a impossibilidade de empréstimo de provas originárias em procedimentos de mediação, em razão de expressa previsão legal à utilização de documentos e outros elementos produzidos no contexto da mediação em processo posterior. Nesse caso, prevalece, como regra geral, a necessidade de realização, (quiçá) repetição, da prova.

Pouco importa se o processo exportador tem ou não natureza jurisdicional. Assim, por exemplo, elementos produzidos pelo departamento de estudos econômicos vinculados ao CADE e utilizados em decisão do Tribunal Administrativo da Defesa da Concorrência poderão ser exportados para serem utilizados em ação de responsabilidade civil por danos causados pela cartelização. Igualmente, decisão proferida por dispute board poderá ser posteriormente utilizada por tribunal arbitral para avaliar o cumprimento ou descumprimento do contrato. Ou, ainda, pode-se importar como prova emprestada elementos produzidos em inquéritos policiais civis ou criminais.

É essencial oportunizar o contraditório acerca do ato processual a ser importado como prova em outra disputa. Quando a prova a ser importada foi produzida em processo judicial, deve ter havido contraditório no processo exportador. Entretanto, em situações excepcionais, é possível flexibilizar esse entendimento - e.g. utilização de depoimento de testemunha que veio a falecer em outro processo, que verse sobre matéria conexa. Ou, ainda, em procedimentos não marcados pelo contraditório (i.e. empréstimo de elementos de prova contidos em inquérito policial) que venham a ser utilizados como prova emprestada, deve-se oferecer ampla margem de participação das partes.

O empréstimo da prova pode ser requerido tanto pelas partes do processo originário (i.e. mediante a simples juntada dos atos processuais do processo exportador que documentem as provas) como pode ser requerido por terceiro. Pouco importa se a parte contra quem se queria utilizar a prova tenha participado de sua produção. Essa circunstância deverá, contudo, ser levada em conta quando da valoração última da prova. Assim, em uma disputa de dissolução de sociedade, é possível utilizar laudo pericial previamente produzido acerca do valuation de controlada da sociedade a ser dissolvida como balizador dos haveres a serem pagos ao sócio retirante. Nesse aspecto, importa mais o juízo de utilidade e pertinência da prova do que qual foi a parte que solicitou o empréstimo ou quais eram as partes do processo exportador da prova. Deve prevalecer a flexibilidade procedimental e a busca pela verdade.

A valoração da prova emprestada segue a regra geral da arbitragem, ou seja, admite-se o livre sopesamento da prova emprestada. Como regra geral, a eficácia da prova emprestada é preservada. Por exemplo, caso se importe uma perícia realizada em um processo, a eficácia desta prova no processo importador também será a de prova pericial. Excepcionalmente, modifica-se o valor probatório atribuído: uma prova pericial pode ser tomada emprestada e ser valorada como prova documental, tornando necessária a realização de uma nova perícia. Ou, ainda, a decisão de um dispute board pode valer como prova pericial, caso contenha os elementos típicos deste meio de prova. Cabe aos árbitros avaliar qual a eficácia e qual o valor probandi da prova emprestada.

É inegável que qualquer elemento de prova produzido para um processo poderá, via de regra, ser levado a outro processo como documento. Ou seja, o laudo pericial consubstancia documento que pode ser levado a outros processos subsequentes - desde que seja pertinente à disputa em questão. O que caracteriza a figura da prova emprestada é o seu potencial substitutivo à repetição do ato de produção probatória. Ou seja, importa-se um ato processual já perfectibilizado para outro processo, com a finalidade de que seja desnecessário sua repetição. Por exemplo, o laudo pericial produzido pelo instituto de criminalística da polícia pode ser utilizado como prova pericial emprestada em sede de ação de responsabilidade civil coligada à ação criminal. Assim, admitido como prova emprestada, não se realiza nova perícia.

A prova emprestada é tão útil quanto maior a economia que possa gerar. Assim, provas custosas, como perícias ou exames de DNA, são exemplos típicos da utilidade prática desta figura. No entanto, a sua importância também pode ser vislumbrar na prova testemunhal - reaproveitando o depoimento de testemunha em outro processo que debata questão correlata. Importa para a parte que pretende importar ato processual evidenciar - além da utilidade e pertinência - como a prova a ser emprestada é apta a municiar o novo julgador de todos os elementos necessários para que este forme a sua convicção.  A prova testemunhal produzida em determinado processo, cujo teor esteja em flagrante contradição com o que a mesma testemunha afirmou no procedimento atual, pode ser de extrema importância para aquilatar o seu real valor, se o tribunal arbitral assim o considerar.

No entanto, alguns requisitos devem ser observados para que a figura não seja desnaturada. Do lado da parte que pretende tomar a prova emprestada, incumbe demonstrar, primeiro, a utilidade e a pertinência da prova. Segundo, a prova emprestada deve auxiliar na formação do convencimento do tribunal arbitral e, idealmente, evitar, quando possível, a repetição do ato probatório. Eventualmente, poderá ser necessário realizar prova suplementar (i.e é possível importar laudo pericial já produzido e solicitar a produção de nova perícia sobre quesitos não respondidos no laudo a ser tomado como prova emprestada ou aspectos relevantes para a nova disputa que não tenham sido enfrentados na prova importada). Terceiro, observar a oportunidade de contraditório processual, que somente pode ser mitigado em circunstâncias verdadeiramente excepcionais (e.g falecimento de testemunha, demolição da construção que impossibilite nova perícia, dentre outras). 

Igualmente, há limitações próprias à figura. Primeiro, no âmbito da arbitragem somente pode-se admitir a importação de elementos de prova que guardem relação com disputas inseridas no escopo objetivo da cláusula compromissória e que sejam arbitráveis. Segundo, conforme a regra geral estabelecida na Constituição Federal, não se admite, como regra, a importação de provas de origem ilícita ou que padeçam de algum vício insanável (e.g. é inviável solicitar a importação de laudo de perito invalidado na origem por parcialidade do perito). Terceiro, a importação não pode prejudicar o direito da parte de apresentar o seu caso ou outro direito processual fundamental.

Dessa forma, verifica-se grande maleabilidade e flexibilidade para o uso adequado da prova emprestada na via arbitral. Por mais que seja uma figura conhecida no processo civil brasileiro, não é possível tomar os parâmetros desenvolvidos pela jurisprudência geral, em sentido absoluto. Afinal, a fase instrutória de uma arbitragem diverge substancialmente daquela perante as cortes estatais. Dessa forma, vedações à prova emprestada no contexto do processo civil podem não fazer sentido em disputas arbitrais (i.e que a prova tenha sido produzida em processo jurisdicional; a impossibilidade de empréstimo de prova produzida em segredo de justiça; ou a impossibilidade de utilizar a prova emprestada contra quem não participou da sua produção). Tais restrições - tipicamente elencadas no contexto do debate sobre prova emprestada no processo civil - podem ser mitigadas, uma vez que a flexibilidade procedimental da arbitragem outorga poderes instrutórios alargados aos árbitros.

José Antonio Fichtner
José Antonio Fichtner se destaca como advogado, escritor, mediador, árbitro e professor, sendo reconhecido e listado nas principais instituições jurídicas arbitrais brasileiras.

Rodrigo Salton
Bacharel em direito pela UFRGS. Especialização em Direito Civil e Processo Civil na FMP. LLM em Advocacia Corporativa na FMP. Advogado. Sócio de Fichtner Advogados.

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