Aspecto pouco debatido pela doutrina é a questão da natureza das regras de desconsideração da personalidade jurídica na atual lei de licitações.
Preliminarmente, cumpre destacar que não se trata de regra com aplicação exclusivamente judicial, já que seria absolutamente desnecessária sua previsão na lei de licitações, sendo suficiente a regras previstas nos arts. 133 a 137 do CPC e o art. 50 do Código Civil.
A interpretação no sentido de mera e inútil tautologia do CPC para o códex licitatório não nos parece a mais adequada, devendo ser interpretada no sentido de que confere poderes à administração pública para que proceda à desconsideração utilizando-se de suas prerrogativas, notadamente a presunção de legitimidade de seus atos.
Portanto, a desconsideração da personalidade pode ser aplicada no âmbito administrativo seja com caráter preventivo, seja com caráter repressivo para a aplicação de penas aos licitantes. Divergimos, data venia, daqueles que entendem que a localização topográfica das regras da desconsideração dentro do capítulo “Das sanções e sanções administrativas” teria o condão de restringir a aplicação apenas no âmbito repressivo/penalizador da lei de licitações.
O princípio da primazia da realidade licitatória (decorrência dos princípios da eficiência e da eficácia do art. 5º da lei 14.133/21) conjugado com o princípio da presunção de legitimidade dos atos da administração pública dão caráter preventivo às regras da desconsideração da personalidade autorizando medidas para que a finalidade da penalização seja obtida ainda que não haja procedimento de penalização.
O caráter preventivo decorre, também, do princípio implícito em todo o sistema licitatório de “busca da competitividade”, razão de ser de todo o sistema, notadamente (mas não só) no âmbito da penalização.
Ou seja, providências ainda na fase licitatória inicial podem ser tomadas para coibir práticas atentatórias ao caráter competitivo da licitação coibindo a existência de “empresas laranjas” e demais práticas que tendam a criar os famigerados “monopólios artificiais” sempre mencionados pelo autor.
A desconsideração da personalidade deve ser aplicada, por exemplo, no âmbito da capacidade técnica dos licitantes, privilegiando a efetiva existência de engenheiro capacitado para o exercício da atividade. Conforme já publicamos1 é possível, dentre outras coisas, que um profissional da engenharia atue para mais de um licitante ou que um engenheiro que atuou como empregado/contratado use seu know how quando, posteriormente, abrir sua própria empresa de engenharia.
A competitividade deve nortear a eventual desconsideração da personalidade no âmbito da capacidade técnica numa aplicação da primazia licitatória da realidade.
No mesmo sentido é o tema da desconsideração no que tange à penalização e a prevenção de práticas que inviabilizem a “busca efetiva da competitividade”.
É fato conhecido dos operadores em licitações a existência de “empresas laranjas”, inclusive criadas com a finalidade de criar “monopólios artificiais” com inúmeras empresas que, por uma “incrível coincidência” tem membros da mesma família como sócios.
Recomenda-se, para evitar esse tipo de imoralidade acentuada a previsão em edital daquilo que denominamos “prova da existência real” da empresa com a juntada de balanços, notas fiscais, etc.
Tal regra deve ter previsão no edital e foi batizado por nós de “prova de existência real” numa referência analógica ao art. 59, IV da lei (prova de exequibilidade) já que a prova da existência real é, na essência, prova da exequibilidade sob a ótica da observância da competitividade.
Nossas Cortes de Contas já admitiam, mesmo no âmbito da sepultada lei 8.666/93, aplicação da desconsideração administrativamente. Nesse aspecto havia restrição ao âmbito da desconsideração no âmbito da penalização. Assim: Acórdão 2252/2018, min Bruno Dantas, TCU, 26.09.2018 e Alexandre Manir Figueiredo Sarquis Segunda Câmara Sessão: 18/8/20 94 TC-017578.989.19-6 - RECURSO ORDINÁRIO (ref. TC-024060.989.18-3), TCE/SP.
O C. STJ já decidiu no sentido de aplicação administrativa da desconsideração da personalidade (RMS 15.166 / BA RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA 2002/0094265-7, ministro CASTRO MEIRA, JULGAMENTO 7/8/03)
A atual lei de licitações, porém, autoriza a desconsideração, também no âmbito preventivo para garantia da lisura do procedimento licitatório.
Assim:
“Art. 160. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia.” (grifos nossos).
Ressaltamos que o termo “...sempre que utilizada...” confere um elastério à regra para as demais fases licitatórias já que afasta a hermenêutica restritiva e topográfica que pode ser adotada em detrimento dos princípios da competitividade, eficiência, eficácia e primazia da realidade licitatória.
Note-se que a regra, inobstante incluída no capítulo “das infrações e sanções administrativas” do códex licitatório pode ser, perfeitamente, aplicada no âmbito preventivo da licitação. Ou seja, a desconsideração da personalidade deve ser aplicada para fins de atestado/capacidade técnica vinculado à maior efetividade da competição entre os licitantes e maior qualificação do vencedor. Ou seja, a teleologia das sanções (desestimular maus licitantes) acaba sendo observada, ainda que preventivamente e não na forma repressiva usual, com a mencionada desconsideração.
No mesmo sentido, a regra pode ser aplicada com a “prova da existência real”, determinando a administração pública a aplicação analógica do art. 59, IV (com previsão no edital) de que a suspeita de cartelização com o uso de membros da mesma família e/ou amigos ou, ainda, identidade de membros entre várias empresas autoriza a administração a exigir “prova da existência real” com a juntada de contrato social e/ou estatuto e/ou informação do grau de parentesco , etc.
Tal procedimento, inobstante documental não é uma inversão das fases fazendo com que a habilitação preceda ao julgamento. Ainda que a documentação da “prova de existência real” possa ser, eventualmente, aproveitada na hipótese de contratação é apenas uma modalidade de prova de exequibilidade/competitividade e não inversão de fases.
CONCLUSÃO
A prova da existência real é uma aplicação preventiva da regra de desconsideração da personalidade jurídica do art. 160 da lei de licitações na fase inicial do certame. A primazia da realidade licitatória (decorrência dos princípios da eficiência e da eficácia do art. 5º da Lei de Licitações) autoriza, havendo previsão no edital, a cautela da administração de determinar prova da existência de licitantes efetivamente distintos em consonância com o princípio da competitividade.
1 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jul-22/licitacao-capacidade-tecnica-e-desconsideracao-da-personalidade/