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Responsabilidade civil dos influenciadores digitais pela divulgação de produtos e serviços ilícitos

A responsabilização de influenciadores digitais pela divulgação de produtos e serviços ilícitos, embora seja tema atual e relevante, ainda é discussão incipiente na doutrina e na jurisprudência, o que desperta incertezas quanto à exata extensão da responsabilidade do influenciador por danos causados ao público-alvo.

1/8/2024

Com a democratização do acesso à Internet e às redes sociais, uma das estratégias mais difundidas e eficazes para a persuasão do público-alvo de determinado produto ou serviço se tornou a propaganda mediante a utilização de influenciadores digitais, nas chamadas “publiposts” (em português, publicações patrocinadas).

Por meio das publicações patrocinadas, os influenciadores promovem a comercialização de produtos ou serviços fornecidos por terceiros (fornecedores-anunciantes), costumeiramente relacionados ao conteúdo divulgado em seus perfis, valendo-se da imagem, da identificação e da confiança de que gozam perante o público-alvo para influir, de forma direta e imediata, no poder de decisão dos seus seguidores.

O sucesso da estratégia não é fruto do acaso: as publicações patrocinadas carregam consigo especial distinção em relação aos tradicionais anúncios publicitários com participação de celebridades, comumente veiculadas na televisão e no rádio.

Enquanto nos últimos o público-alvo costuma estar ciente de que a celebridade é pessoa contratada pelo anunciante e com o produto ou o serviço pouca ou nenhuma relação possui, nas publicações patrocinadas, a identificação do produto ou do serviço com o estilo de vida do influenciador e sua utilização no dia a dia dificultam tal percepção. Há uma sutileza na propaganda, que é camuflada na rotina do conteúdo divulgado pelo influenciador digital, a despertar uma maior relação de confiança e credibilidade perante os seguidores.

A difusão das publicações patrocinadas e os recentes episódios envolvendo a divulgação em massa de plataformas digitais de apostas e jogos de azar desperta não apenas questionamentos do ponto de vista criminal, mas também da responsabilidade civil dos influenciadores por eventuais danos sofridos por seus seguidores que foram estimulados a adquirir um produto ou serviço ilícito.

Ao que parece, embora os influenciadores digitais não se enquadrem no tradicional conceito de fornecedor, previsto no art. 3º, do CDC1, a eles também deve ser aplicada a legislação consumerista, porquanto são considerados fornecedores por equiparação2 em decorrência da aplicação do princípio da confiança e da teoria da aparência.

Com efeito, de um lado, a atuação e o êxito dos influenciadores digitais estão intimamente atrelados aos elementos de confiabilidade e de credibilidade de que gozam perante o público-alvo; de outro, sua atuação direta e imediata na promoção de determinado produto ou serviço, como intermediários fundamentais para concretização do negócio principal, permitem sua equiparação à tradicional figura do fornecedor e a consequente aplicação da legislação consumerista. A tudo isso, soma-se a identificação de elementos típicos de empresa no arranjo desempenhado por influenciadores, a exemplo de assessoria jurídica e de equipe de marketing altamente especializadas, em contrapartida por receitas vultosas.

Nesse passo, a figura que mais aparenta se assemelhar à do influenciador digital é a da agência de publicidade, isto é, da “empresa ou pessoa responsável em planejar, criar e distribuir a publicidade daqueles que a contratam (i.e., de seus clientes anunciantes)”3 – analogia que possibilita a extensão de, ao menos, 4 correntes de entendimento aos influenciadores digitais, em matéria de responsabilidade civil.

A primeira vertente, defendida por Fábio Ulhoa Coelho4, entende que o fornecedor-anunciante deve ser exclusivamente responsável perante o mercado consumidor, estando a agência de propaganda – e, por analogia, o influenciador digital – isenta de responsabilidade civil pelos danos causados por serviço ou produto ilícitos, salvo nos casos em que houver expressa assunção de responsabilidade pelo cumprimento do negócio divulgado. A interpretação funda-se na exegese do art. 38, do CDC, que prevê que “o ônus da prova da veracidade e da correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina”.

Esse foi o entendimento adotado pelo TJ/SP no julgamento da Recurso de Apelação 1027119-57.2015.8.26.0562, no qual foi reconhecida a ausência de responsabilidade da agência de publicidade por falta de expressa responsabilização pelo cumprimento da obrigação, já que “a agência de publicidade age como verdadeira mandatária do anunciante5.

A segunda vertente, defendida por Antonio Herman Benjamin6, entende que a agência de publicidade só poderia ser responsabilizada pelos danos causados mediante comprovação de dolo ou culpa, sem os quais seria inviável a imputação de responsabilidade civil. A responsabilidade dos influenciadores seria, segundo tal interpretação, de natureza subjetiva.

Há, ainda, posicionamento que se aparenta mais radical, defendido por Scartezzini Guimarães7, que enxerga a existência de responsabilidade objetiva e solidária entre o fornecedor-anunciante e a agência de publicidade, por serem ambas partes integrantes da cadeia de consumo. Tal interpretação decorreria da aplicação conjunta dos arts. 7º, parágrafo único, e 25, § 1º, do CDC8, que preveem a responsabilidade conjunta de todos os causadores de danos aos consumidores. 

O fundamento para a responsabilidade objetiva também residiria na teoria do risco profissional, já que os influenciadores digitais auferem benefícios econômicos diretos da propaganda realizada e não raramente são remunerados com porcentagem das vendas realizadas ou proporcional ao número de novos consumidores angariados. 

A última vertente identificada, defendida por Rizzato Nunes9, embora também admita que exista solidariedade entre o fornecedor-anunciante e a agência de publicidade, identifica que esta comporta algumas exceções, notadamente quando “a enganosidade: a) não está objetivamente colocada no anúncio em si; e b) depende de ação real, concreta e posterior do fornecedor-anunciante, de maneira que a agência tenha participado como mera produtora de uma informação encomendada”.

Nos Tribunais, a apreciação da responsabilidade civil do influenciador digital pela ilicitude do produto ou serviço divulgado parece incipiente, embora suficiente para ilustrar as divergências acima postas.

Nota-se, por exemplo, que o TJ/SP, no recente julgamento da Apelação Cível 1003494-26.2020.8.26.0624, condenou solidariamente influenciadora digital pela promoção de sorteio de veículo automotivo em seu perfil, por entender que, “ao vincular a sua imagem e a sua página pessoal ao sorteio em questão, a corré participou do ato como se patrocinadora fosse, se valendo, inclusive, do alcance de sua rede social enquanto influenciadora digital. [...]. Portanto, de acordo com as provas constantes dos autos, a apelante estava diretamente envolvida com o sorteio do automóvel, restando incontroversa a sua legitimidade para figurar no polo passivo da lide10.

De outro lado, no TJ/SC, identificou-se entendimento segundo o qual seria necessário perquirir se, “no caso concreto apresentado, a pessoa famosa apenas atuou como um instrumento de informação e comunicação publicitária, limitando a sua atividade apenas à divulgação, e, portanto, isenta de reponsabilidade, ou, se efetivamente integrou a cadeia de consumo pela vinculação do produto ao seu nome e/ou figurou como beneficiada direta do sucesso da venda”11.

Ao que parece, o afastamento apriorístico de qualquer responsabilidade civil do influenciador digital pela divulgação de produto ou serviço ilícito não convém a um Estado cuja ordem econômica se pauta na defesa do consumidor, da mesma forma em que a sua responsabilização objetiva e solidária com o fornecedor-anunciante equivaleria à transferência indiscriminada de riscos, em prejuízo da livre iniciativa.

Nesses casos, a apuração da responsabilidade civil do influenciador digital deveria repousar, idealmente, na bissetriz que reparte o a) grau de evidência da ilicitude do produto ou do serviço anunciado e o b) grau de sofisticação passível de ser exigido do influenciador digital, diante de circunstâncias como o alcance de suas divulgações, rendimentos, contraprestação auferida pela divulgação etc.

Não parece correto, por exemplo, equiparar situações em que há divulgação de loja que vende ao público artefatos para falsificação de moeda12, com a realização de anúncio de relógios de um lojista que comete descaminho13 em sua importação, não recolhendo os tributos devidos. No primeiro caso, a ilicitude é patente, ao passo em que no segundo caso sua identificação demandaria um verdadeiro escrutínio das atividades do fornecedor-anunciante pelo influenciador digital, o que não é comum, ou mesmo desejado.

Também não parece correto conferir tratamento jurídico semelhante, por exemplo, a influenciador digital “esporádico”, que, aos finais de semana, divulga determinado restaurante em contrapartida por uma refeição, daquele que exerce tal atividade com elementos típicos de empresa, mediante contraprestações vultosas, de quem a sofisticação das atividades parece exigível.

Na ausência de regramento próprio e específico do tema, o delineamento dos aspectos fundamentais da responsabilidade civil do influenciador digital competirá à jurisprudência – cuja sedimentação se aguardará com anseio, por tempo indefinido, mas certamente superior ao de um reels.

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1 Art. 3°. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

2 “É justamente diante da consideração da preponderância da atividade e não da configuração de um fornecedor com todos os requisitos exigidos pelo caput do art. 3º, que, sem maiores dificuldades, se conclui que não apenas o anunciante (comerciante, fabricante, importador) estão sujeitos à disciplina da publicidade do CDC, mas também a agência publicitária e o veículo (jornal, televisão). Todos, portanto, devem cuidar para que sejam observados os princípios estabelecidos pelo CDC (veracidade, identificação, não-abusividade etc) e podem responder perante o consumidor (coletivo ou individual) por ofensa a seus direitos” (BESSA, Leonardo Roscoe. Fornecedor equiparado. In: Doutrinas Essenciais – Direito do Consumidor: fundamentos do direito do consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 1025-1026).

3 DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e direito. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 29.

4 “A agência de propaganda não tem responsabilidade civil ou administrativa pela concepção, produção ou intermediação na veiculação de publicidade enganosa ou abusiva pertinente a fornecimento alheio. As repercussões, em nível civil e administrativo, envolvem unicamente o empresário anunciante. [...]. Nada é feito pela agência de propaganda sem o conhecimento, a orientação e a aprovação do anunciante, que por tudo assume integral responsabilidade” (COELHO, Fábio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, p. 291).

5 TJSP, 11ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n.º 1027119-57.2015.8.26.0562, rel. Des. Gil Coelho, j. 10.12.2020.

6 “O anunciante, como já dito, é responsabilizado, no plano cível, objetivamente pela publicidade enganosa e abusiva, assim como pelo cumprimento do princípio da vinculação da mensagem publicitária. Já a agência e o veículo só são corresponsáveis quando agirem dolosa ou culposamente, mesmo em sede civil” (BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p.356).

7 “Sobre essa solidariedade passiva devemos ainda deixar claro que ela decorre do parágrafo único do art. 7.º e do § 1.º do art. 25, ambos do Código de Defesa do Consumidor, podendo o consumidor ou as pessoas enumeradas no art. 82 da mesma norma legal, à sua escolha, propor a ação contra todos, alguns ou contra apenas um dos causadores do dano. O autor verificará em cada caso o que lhe é mais favorável. Irrelevante nessa solidariedade, o grau de participação para o dano de cada responsável, pois perante o credor responderão por toda a dívida e, posteriormente, analisada sua participação, poderão mover as respectivas ações regressivas contra os demais culpados” (GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 170).

8 Art. 7º. [...]. Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo.

Art. 25. [...]. § 1º. Havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão solidariamente pela reparação prevista nesta e nas seções anteriores.

9 NUNES, Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, p. 450-451.

10 TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n.º 1003494-26.2020.8.26.0624, rel. Des. Viviani Nicolau, j. 26.09.2023.

11 TJSC, Recurso Inominado nº 5015593-34.2022.8.24.0045, 2ª Turma Recursal, rel. Edson Marcos de Mendonça; j. 23.4.2024.

12 Crime, por força do art. 291 do Código Penal.

13 Crime, por força do art. 334 do Código Penal.

Matheus de Mello Adães
Advogado e sócio do escritório Huck Otranto Camargo Advogados. Graduado em Direito e mestrando em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

João Pedro Ferraz Tôrres Nobre
advogado e sócio do escritório Huck Otranto Camargo Advogados. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

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