Migalhas de Peso

Contraditório e ampla defesa são garantias do réu

Brevíssimas considerações sobre a manifestação do Ministério Público e silêncio do réu durante o interrogatório.

1/8/2024

Mesmo após a CF/88 e algumas reformas ao Código de Processo Penal parece que não entendemos a importância e o real alcance do contraditório e da ampla defesa e, talvez, devido à superexposição que a tecnologia nos proporciona, presenciamos frequentemente alguns desrespeitos aos princípios de um processo penal democrático e, pior, ao texto expresso da lei e da constituição.

Tanto um quanto outro princípio – que não representam os mesmos valores, mas se completam – podem ser reduzidos a duas curtas premissas: O contraditório garante ao réu o direito de falar; a ampla defesa, que fale por último.

Ambos são cânones de um princípio maior: o devido processo, que igualmente também pode ser reduzido a uma frase: não há pena sem processo.

A mim, como professor que semestralmente passa a importância destes princípios para que o processo penal consiga atingir sua finalidade – que é garantir o direito de liberdade do cidadão – me parece incompreensível quando algumas situações são perpetradas sem exclusividade de grau de jurisdição ou âmbito de competência.

Dou aqui, dois exemplos, ocorridos em pouco menos de um mês.

Em mais uma sessão do tribunal de justiça, no momento da sustentação oral de um Habeas Corpus, perguntei aos eminentes desembargadores se me seria dada a oportunidade de sustentar após o representante do Ministério Público. Em um misto de surpresa e reprovação, me foi dito que não.

Ocorre que desde o ano de 2008, por meio do HC 87.926, o STF já havia definido de forma unânime a respeito; o STJ, desde o mesmo ano. Ainda que tais decisões tenham uma distância temporal considerável – o que não justifica o desconhecimento –, especificamente com relação ao TJ de São Paulo tal posicionamento foi reafirmado em 2020, por novo Habeas Corpus 560.587: “Ante o exposto, defiro o pedido liminar para assegurar à defesa o direito de sustentar oralmente após a manifestação do procurador de Justiça, na sessão de julgamento [...]”. Tais decisões não se referem apenas ao julgamento de Habeas Corpus e vão além: “o pleno exercício do contraditório assegura à defesa o uso da palavra por último, no caso de realização de sustentação oral” (HC 87.926).

Violação, clara, não apenas da ampla defesa, mas de entendimento pacífico das cortes superiores.

Também desde o ano de 2003, o parlamento realizou uma alteração substancial no Código de Processo penal, que como todos bem sabem tem matiz inquisitorial e precisava se adequar à democracia. Na sua redação original poucos são os momentos em que o contraditório é de fato garantido. Talvez não fosse necessário, mas prefiro pecar pelo excesso: o contraditório é garantia dada ao réu. Pois é contra ele que a acusação diz algo. O réu, em verdade, não precisa dizer absolutamente nada, pois é inocente por determinação constitucional.

Durante uma audiência de instrução, assim que o réu foi orientado sobre seu direito ao silêncio e que ocorreu antes do interrogatório conforme o art. 186, declara que não deseja contradizer as acusações que lhe são imputadas, há um pedido feito pelo promotor de justiça para que as perguntas sejam consignadas, supostamente para o exercício do contraditório. Mas se o réu não deseja responder a qualquer pergunta, estes sequer devem ser feitas pois poderão influenciar de forma especulativa na convicção do magistrado, o que de fato era um pressuposto em um sistema inquisitório. E por isso que, na reforma promovida em 2003 (há mais de 20 anos!), o art. 191 foi revogado. Apenas para, novamente, pecar pelo excesso, eis a redação do revogado art. 191: “Consignar-se-ão as perguntas que o réu deixar de responder e as razões que invocar para não fazê-lo”. Hoje, pecando pela terceira vez, a redação do art. 191 é a seguinte: “Havendo mais de um acusado, serão interrogados separadamente”.

Violação clara, não apenas do contraditório, mas de texto expresso de lei.

Chega a ser de certa forma frustrante ainda enfrentar tais situações, que promovem um desgaste desnecessário durante as audiências e que, ao final, promovem um atraso ou impedimento ao exercício da justiça, seja pelas discussões entre os operadores durante as audiências, seja pela necessidade de recursos ou ações junto aos tribunais superiores. E a frustração é ainda maior porquanto todos os operadores respeitam a mesma constituição, obedecem às mesmas leis, e se sentaram nos mesmos bancos escolares. Todos nós – e aqui peço vênia para pecar pela última vez – aprendemos que em um estado democrático de direito, o cidadão é considerado inocente (estado de inocência), o que lhe garante a liberdade como regra. E a única forma de superar este status é por meio do devido processo legal. Quando se levanta uma acusação contra um inocente, surge o ônus de provar a alegação, ônus que pertence exclusivamente à acusação. O inocente não possui nenhum ônus, mas sim a garantia de que poderá contradizer o que contra si foi dito, e ainda a garantia de que poderá, caso deseje, apresentar qualquer tipo de prova em seu favor. Só assim se garante efetividade ao processo, efetividade que nada mais é do que garantir que alcance sua finalidade, finalidade que nada mais é do que garantir a liberdade de um inocente.

E chega de pecar.

Alexis Couto de Brito
Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo, pós doutor pelas universidades de Salamanca e Coimbra, professor de graduação e pós-graduação estrito senso da Universidade presbiteriana Mackenzie.

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