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Da obrigatoriedade de contratar serviços de limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos e aterro sanitário por meio do regime de concessão

Diversos editais de 2024 visam contratar serviços de limpeza e manejo de resíduos sólidos. No entanto, em vez de usar contratos de concessão, estão sendo utilizados contratos administrativos ordinários, conforme a nova lei geral de licitações (lei 14.133/21).

30/7/2024

Numa rápida pesquisa na internet, consegue-se rapidamente localizar os seguintes editais (1) Pregão Eletrônico 90001/24 – Contrat/SLU/DF (Processo SEI/GDF 00094-00000115/2022-80) do Governo do Distrito Federal; (2) Pregão Eletrônico 021/23 (Processo Administrativo nº 3438/2023) do município de Rubiataba-GO; (3) Pregão Eletrônico n.º 08/PMCB/2024 (Processo Administrativo n.º 11/PMCB/2024) do município de Capivari de Baixo-SC; (4) Pregão Eletrônico 001/24 (Processo Licitatório 008/24) do município de Pedra Azul/MG; (5) Pregão Eletrônico 3/24 (Processo Licitatório 3/24) do Consórcio Regional de Saneamento Básico – CONSANE/MG e (6) Pregão Eletrônico 2023.12.27.01 do município de Caririaçu/CE.

E o que todos esses instrumentos convocatórios têm em comum? Eles dão publicidade a certames realizados em 2024 cujo objeto ou é a contratação de empresa(s) especializada(s) para a prestação dos serviços de limpeza urbana, manejo dos resíduos sólidos e serviços correlatos ou é a contratação de empresa(s) especializada(s), devidamente regularizada(s), para o fornecimento e operação de estação de transbordo de resíduos sólidos urbanos em aterro sanitário.

Mas então, qual seria o problema?

O problema é que ao invés de as licitações estarem sendo empreendidas para celebrar, com base nas alterações trazidas pelo novo Marco Legal do Saneamento à Lei Nacional do Saneamento Básico, contratos administrativos de delegação (contratos de concessão), estão o sendo para celebrar contratos administrativos de colaboração (contratos administrativos ordinários), com fulcro na lei 14.1333/21 (NLGLC - nova Lei Geral de Licitações e Contratos).

Pois bem, ainda fazendo referência à antiga lei 8.666/93, Marçal Justen Filho1 bem esclarece que (a) “os contratos administrativos de colaboração têm por objeto a execução pelo particular de uma prestação em favor da Administração Pública, consistente em um dar ou um fazer algo economicamente avaliável, mediante o recebimento de um pagamento em dinheiro.5 No contrato de colaboração, cada parte executa uma prestação com objeto predeterminado, que se integra no patrimônio da outra. Os contratos de colaboração estão disciplinados essencialmente pela lei 8.666/93. A categoria compreende compras, serviços (inclusive de engenharia), obras e alienações” e (b) “os contratos de delegação têm por objeto atribuir a um particular o desempenho de uma atividade de natureza pública (inclusive a exploração de bens públicos) em face de terceiros, mediante remuneração vinculada à atividade desenvolvida. No contrato de delegação, o particular adota as soluções típicas da iniciativa privada para organizar uma atividade pública, assumindo uma parcela relevante de risco quanto à implantação do empreendimento e à obtenção de remuneração. Os contratos de delegação são, basicamente, a concessão de serviço público e de bem público. As normas genéricas sobre esse tipo contratual constam na lei 8.987/95, mas há uma pluralidade de leis estabelecendo regras para setores específicos”.

Assim, fica muito claro que o regime dos contratos administrativos é distinto do regime dos contratos de concessão.

Mas, em tal cenário, de onde vem a obrigatoriedade de contratar serviços de limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos e aterro sanitário por meio do regime de concessão?

Bom, como já antecipado, a lei 14.026/20, conhecida como NMLSB - novo Marco Legal do Saneamento Básico, alterou a lei 11.445/07 (Política Nacional de Saneamento Básico ou LNSB - Lei Nacional do Saneamento Básico) e, por meio de novas disposições, fez alterações profundas nos serviços de saneamento.

E dentro destas diretrizes trazidas pelo NMLSB, está a expressa determinação de que os serviços abrangidos no escopo da LNSB (dentre os quais estão a limpeza urbana e o manejo de resíduos, nos termos do art. 3º-C), devem ser objeto de concessão pelos titulares:

“Art. 9o O titular dos serviços formulará a respectiva política pública de saneamento básico, devendo, para tanto:

(...)

II - prestar diretamente os serviços, ou conceder a prestação deles, e definir, em ambos os casos, a entidade responsável pela regulação e fiscalização da prestação dos serviços públicos de saneamento básico.”

O conceito é reforçado mais adiante, com a nova redação atribuída ao art. 10, da LNSB, que reitera a determinação no sentido de que os serviços de saneamento básico só podem ser delegados a terceiros por meio de concessão, vejamos:

“Art. 10. A prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária.”

Não bastassem os dois artigos transcritos acima, ambos da lei 11.445/07, com a redação dada pela lei 14.026/20, veja-se ainda o art. 10-A:

“Art. 10-A. Os contratos relativos à prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão conter, expressamente, sob pena de nulidade, as cláusulas essenciais previstas no art. 23 da lei 8.987, de 13/2/95 (...).”

Assim, inconteste que o formato de prestação de serviços escolhido pelo NMLSB se baseia no modelo de concessão, haja vista que os contratos devem conter as cláusulas essenciais previstas no art. 23 da lei 8.987/95, qual seja, a lei de concessões dos serviços públicos.

Mas, se ainda resta alguma dúvida, fazemos remissão aos termos da Resolução 79/21 da ANA - Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, que aprovou a Norma de Referência 1 para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico, dispondo sobre o regime, a estrutura e parâmetros da cobrança pela prestação do serviço público de manejo de resíduos sólidos urbanos, bem como os procedimentos e prazos de fixação, reajuste e revisões tarifárias.

Eis então o que preconiza a NR 1 da ANA:

“4. DEFINIÇÕES

Para os efeitos desta norma, aplicam-se os seguintes conceitos e definições:

4.1. Serviço Público de Manejo de Resíduos Sólidos Urbanos (SMRSU)

O serviço público compreendendo as atividades de coleta, transbordo, transporte, triagem para fins de reutilização ou reciclagem, tratamento e destinação final dos resíduos sólidos urbanos, englobando os:

  1. resíduos domésticos;
  2. resíduos originários de atividades comerciais, industriais e de serviços, em quantidade e qualidade similares às dos resíduos domésticos, que, por decisão do TITULAR, sejam considerados resíduos sólidos urbanos, desde que não sejam de responsabilidade de seu gerador nos termos da norma legal ou administrativa, de decisão judicial ou de termo de ajustamento de conduta; e
  3. resíduos originários do SLU - SERVIÇO PÚBLICO DE LIMPEZA URBANA.

4.2. SLU

Serviço público cujo objeto é prover o asseio dos espaços públicos urbanos, compreendendo, dentre outras, as atividades de varrição, capina, roçada, poda e atividades correlatas em vias e logradouros públicos; asseio de túneis, escadarias, monumentos, abrigos e sanitários públicos; raspagem e remoção de terra, areia e quaisquer materiais depositados pelas águas pluviais em logradouros públicos; desobstrução e limpeza de bueiros, bocas de lobo e correlatos; limpeza de logradouros públicos onde se realizem feiras públicas e outros eventos de acesso aberto ao público; e outros eventuais serviços de limpeza urbana.

4.3. Resíduos de grandes geradores

Resíduos sólidos de atividades comerciais, industriais e de serviços que não foram equiparados a resíduos domésticos, bem como os resíduos domésticos em quantidade superior àquela estabelecida em norma do TITULAR para caracterização do SMRSU, cuja destinação é de responsabilidade de seus geradores, sendo admitido que o prestador realize a sua coleta e destinação ambientalmente adequada mediante pagamento de preço público pelo gerador, desde que a atividade não prejudique a adequada prestação do serviço público.

(...)

5.3. Metodologia de cálculo da receita requerida

5.3.1. Deve ser adotada metodologia de cálculo que reflita a RECEITA REQUERIDA, adequada ao tipo de prestação, seja ela pela Administração Pública Direta, Indireta ou mediante contrato de concessão.

(...)

6.1. Fixação do valor inicial da tarifa

A TARIFA pode ser instituída mediante:

  1. contrato de concessão, de acordo com o mecanismo de definição do valor inicial da TARIFA no edital de concessão;
  2. ato administrativo do TITULAR, quando o serviço for prestado pela administração direta, autarquia, empresa pública ou sociedade de economia mista controlados pelo TITULAR, ou por concessão administrativa regida pela lei 11.079/04;

(...)

6.1.1.1. Considera-se que a TARIFA prevista em contratos de concessão atende ao disposto nesta Norma de Referência caso a ENTIDADE REGULADORA DO SMRSU tenha se manifestado formalmente sobre a adequação da minuta do contrato às disposições da Norma, anteriormente à publicação da consulta pública do edital para seleção do PRESTADOR DE SERVIÇO.

(...)

6.3.1.1. A revisão periódica é o processo de reavaliação ampla das condições de prestação dos serviços, com o objetivo de garantir a distribuição dos ganhos de produtividade e a SUSTENTABILIDADE ECONÔMICO-FINANCEIRA da prestação, em caso de prestação por órgão ou entidade da Administração Pública, e a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, em caso de prestação mediante contrato de concessão.

(...)

6.3.2.1. A revisão extraordinária objetiva a recomposição das condições de prestação dos serviços sempre que comprovado:

  1. desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, no caso de o serviço ter sua prestação delegada por contrato de concessão;”

Perceba-se que na norma não se cogita outra alternativa que não seja a de que o serviço público de manejo de resíduos sólidos urbanos esteja sendo prestado dentro de um regime de concessão.

Como não poderia ser diferente, o Manual Orientativo Sobre a Norma de Referência 1/ANA/21, que claramente tem o caráter de orientação geral nos termos do art. 24, parágrafo único, da LINDB, esclarece o seguinte:

“2.2 O QUE É REGULAÇÃO DO SMRSU?

O SMRSU pode ser prestado de forma direta pelo Titular ou indireta sob regime de concessão, mediante prévia licitação. Ambas as formas de prestação do serviço devem ser reguladas por entidade reguladora competente, nos termos do art. 21 da lei 11.445/07”.

“3.1 ARRANJOS INSTITUCIONAIS

(...)

O SMRSU será prestado diretamente ou indiretamente sob regime de concessão ou permissão. A prestação direta do serviço ocorrerá sob responsabilidade do Titular ou da Estrutura de Prestação Regionalizada, de modo que, ainda que sejam contratados terceiros para a realização de algumas atividades da cadeia do serviço, por meio de contratos administrativos tradicionais, o responsável pela prestação será o Titular ou a Estrutura de Prestação Regionalizada. Por conseguinte, a prestação direta será centralizada quando de responsabilidade de um órgão direto da administração, e descentralizada quando o prestador de serviço for uma entidade da administração indireta (autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou fundação). Já a prestação indireta do serviço envolve a delegação do serviço, ou seja, a transferência também da sua gestão, por meio da celebração de contrato de concessão. Os instrumentos para prestação do serviço decorrem de delegação ou outorga. A delegação de um serviço ocorrerá por contrato de concessão, enquanto a outorga será por meio de lei. Dessa forma, o Titular ou a Estrutura de Prestação Regionalizada outorgará para órgão de sua administração direta ou entidade de sua administração indireta a execução do SMRSU. Quando realizada a concessão do SMRSU, esta será delegada a um Prestador de Serviço que não pertença à administração do Titular. Dessa forma, de acordo com o instrumento adotado, o Prestador de Serviço poderá ser um órgão ou entidade ao qual a lei tenha outorgada a competência de prestar o serviço público, ou empresa a qual o serviço tenha sido delegado pelo Titular ou pela Estrutura de Prestação Regionalizada.”

Perceba-se, portanto, que a base normativa é bastante robusta no sentido de apontar para a obrigatoriedade de a prestação dos serviços de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos se dar sob o regime de concessão quando não for prestado de forma direta pelo titular.

Inclusive, trata-se essa de opção legislativa que já foi validada pelo STF no julgamento conjunto das ADIs 6.492, 6.356, 6.583 e 6.882. Nos termos do voto do min. Alexandre de Moraes:

“O legislador pretendeu conformar as práticas administrativas e negociais comumente adotadas no setor em questão, abandonando um modelo tido por ineficiente e propenso a irregularidades, pela aplicação da regra de licitação e concessão de serviços. (g.n.)”

No mesmo sentido, o min. Gilmar Mendes:

“É digno de nota, aliás, que o novo art. 10 da lei 11.107/05 fez homenagem expressa ao art. 175 da Constituição Federal, que exige licitação para a delegação administrativa da execução de todo e qualquer serviço público [...]. Assim, com a edição da lei 14.026/20, a delegação da prestação dos serviços de saneamento básico pelos titulares a entidade (pública ou privada) que não integra a sua administração será sempre feita por meio do contrato de concessão. (g.n.)”

Logo, não há qualquer espaço para se alegar a inconstitucionalidade do modelo adotado pelo NMLSB, até mesmo porque as modificações por ele introduzidas não passam de um reforça à regra prevista no art. 175 da Constituição: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.

Seja como for, apesar de, como visto no início do texto, as violações ao NMLSB não serem raras, a jurisprudência sobre o tema é bastante árida, sendo relevante apenas destacar uma decisão do Tribunal de Contas do Espírito Santo onde se determinou a paralisação de um certame licitatório do município de Vitória para contratação de um prestador de serviço de limpeza urbana justamente por não se prever a prestação no regime de concessão:

“Conforme disposto no art. 3º, I, ‘c’, da lei 11.445/07, também com redação dada pela lei 14.026/20, estão compreendidas no conceito geral de saneamento básico o conjunto de serviços públicos, infraestruturas e instalações operacionais de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, que são constituídos pelas atividades e pela disponibilização e manutenção de infraestruturas e instalações operacionais de coleta, varrição manual e mecanizada, asseio e conservação urbana, transporte, transbordo, tratamento e destinação final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos domiciliar e dos resíduos de limpeza urbana. Nesse sentido, considerando que os serviços de coleta, transporte, tratamento e destinação final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos estão compreendidos entre os componentes dos serviços públicos de saneamento básico, deve-se observar o disposto no 10, caput, da lei 11.445/07, que dispõe que a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária. evidencia-se, portanto, que o regramento atual, instituído por meio da lei 14.026/20, prevê que, caso o serviço público de saneamento não seja prestado pela própria administração, a sua ‘terceirização’ deverá ser realizada por meio de contrato de concessão, ficando expressamente vedada a celebração de vínculo por meio de contratos de programa, convênio, termo de parceria ou de mais instrumentos de natureza precária. Dessa forma, em análise preliminar, configura-se presente o primeiro requisito necessário à concessão da tutela cautelar, qual seja, o fundado receio de grave lesão ao erário ou a direito alheio (fumus boni iuris), já que a contratação, de forma aparente, deveria ser licitada por meio de concorrência pública, na forma disposta na lei 8987/95.” (TCE/ES, Processo 0.1714/2021-2, Conselheira Relatora Márcia Jaccoud Freitas, 3/8/21)

Neste cenário de flagrante irreverência aos termos do NMLSB, cabe aos órgãos de controle, ao Ministério Público e à própria Administração em sede de autotutela, promover as devidas anulações dos certames e dos contratos ilegais (para isso adotando as balizas contidas no art. 21, parágrafo único, da LINDB, e no art. 147 da NLGLC) para regularizar a situação e viabilizar que a prestação do SMRSU se dê sob o regime de concessão.

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1 Justen Filho, Marçal, Considerações sobre a equação econômico-financeira das concessões de serviço público: a questão da TIR, In: MOREIRA, Egon Bockmann (Coord.), Contratos Administrativos, Equilíbrio Econômico-Financeiro e a Taxa Interna de Retorno: A Lógica das Concessões e Parcerias Público-Privadas, Belo Horizonte: Fórum, 2016, págs. 412/413.

Aldem Johnston Barbosa Araújo
Advogado em Mello Pimentel Advocacia. Membro da Comissão de Direito à Infraestrutura da OAB/PE. Especialista em Direito Público.

Bernardo Strobel Guimarães
Doutor em Direito. Professor da PUC/PR. Advogado

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