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O interrogatório do adolescente e a audiência de apresentação

STJ criou um procedimento específico para o interrogatório de adolescentes em processos infracionais, destacando a aplicação supletiva do art. 400 do CPP e ressaltando a importância do direito de escuta para adolescentes.

24/7/2024

Em junho de 2023, tendo por paradigma o que foi decidido pelo STF, no âmbito do HC 127.900/AM, a 3ª seção do STJ julgou o HC 769.197/RJ, que questionava a recusa do magistrado de 1.º grau em oportunizar o interrogatório do adolescente ao final da instrução. Sobre isso, a Corte federal teceu orientações processuais que findaram por criar um procedimento específico.

O objetivo dessas linhas não é tecer considerações sobre o acerto ou desacerto a respeito da aplicação do art. 400 do CPP ao processo infracional1. Tudo leva a crer que não haverá revés sobre o tema, mormente porque se está a aplicar pronunciamento do STF, embora, com uma premissa equivocada explicada linhas abaixo. Algumas consequências dessa escolha, entrementes, merecem atenção, a partir do procedimento previsto pelo ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente , principalmente, porque o tema será reexaminado pela Corte Federal, no âmbito de dois recursos (REsp 2.088.626/RS e REsp 2.100.005/RS), que foram afetados ao rito dos recursos repetitivos.

No julgado do STJ, cinco orientações foram feitas com o propósito de aperfeiçoar a jurisprudência. As duas últimas não serão objeto de considerações, porquanto relacionadas às condições para aplicação do novo procedimento. Sobre o interrogatório, especificamente, releva transcrever as três primeiras que estão assim redigidas:

“a) em consonância com o art. 184 do ECA, oferecida a representação, a autoridade judiciária designará audiência de apresentação do adolescente, e decidirá, desde logo, sobre a decretação ou manutenção da internação provisória e sobre a remissão, que pode ser concedida a qualquer tempo antes da sentença;

b) é vedada a atividade probatória na audiência de apresentação, e eventual colheita de confissão nessa oportunidade não poderá, de per se, lastrear a procedência da representação;

c) diante da lacuna na lei 8.069/90, aplica-se de forma supletiva o art. 400 do CPP ao procedimento especial de apuração do ato infracional, garantido ao adolescente o interrogatório ao final da instrução, perante o Juiz competente, depois de ter ciência do acervo probatório produzido em seu desfavor.”

No que interessa ao interrogatório do adolescente, o ECA reza que, logo após o oferecimento da representação, o Juiz designa audiência de apresentação (art. 184). Nessa audiência, seguindo o caput do art. 186, o Juiz deve ouvir o adolescente e seu responsável. Em seguida, somente após a escuta, o magistrado avalia a concessão da remissão judicial. Sendo o caso grave e passível de aplicação de medida restritiva de liberdade, o Estatuto manda designar audiência em continuação.

A primeira orientação redigida pelo STJ, todavia, a par de praticamente transcrever o art. 184 do ECA, fez um enxerto em seu texto, aparentemente impróprio, ao falar sobre remissão.

Embora, de fato, haja a previsão de que a remissão possa ser concedida a qualquer tempo, desde que antes da sentença (art. 188, ECA), não parece adequado receber a inicial acusatória de um crime e, de imediato, encerrar o procedimento com uma decisão concessiva de remissão. Se a pretensão acusatória é admitida, espera-se que ela tenha um mínimo de seguimento. Não faz sentido iniciar e encerrar o processo no mesmo ato jurisdicional. Não há previsão legal para tanto.

Apesar disso, o maior problema não parece ser a referência à remissão, mas a menção quanto à necessidade de designar audiência de apresentação. A Corte federal previu o referido ato porque entendeu que o art. 184, ECA, que manda designar a referida audiência, nunca teria sido considerado inconstitucional. E aqui remonta a premissa equivocada.

O plenário da Suprema Corte, quando julgou o HC 127.900/AM, também não declarou a inconstitucionalidade de qualquer lei que previa o interrogatório do réu no início. Aliás, o processo cuidava de interesses subjetivos, relacionado a caso específico regulado pelo Código de Processo Penal Militar.

Não obstante, objetivou-se o julgado, e a orientação firmada foi assim redigida: “a norma inscrita no art. 400 do CPP comum aplica-se, a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução se tenha encerrado”. Por isso, doravante, sem declarar a inconstitucionalidade de qualquer norma, todos os réus só podem ser interrogados ao fim da instrução. Logo, a inexistência de pronunciamento sobre a inconstitucionalidade do dispositivo que prevê a audiência de apresentação não poderia ser motivo para mantê-la.

Ainda sobre a manutenção da audiência de apresentação, o STJ afirmou que o ECA é lacunoso, quanto ao momento do interrogatório (alínea “c”). Essa afirmação, contudo, parece não ser correta.

Em verdade, o ECA não denominou o ato de o Juiz ouvir o adolescente de interrogatório. Mas isso não significa que a lei esqueceu dessa solenidade tão importante no processo penal brasileiro. Desde sua vigência, ou seja, há mais de 30 anos, o adolescente sempre foi interrogado na audiência de apresentação. A partir de uma leitura contextualizada, fica claro que o legislador estatutário não utilizou termos típicos do Direito sancionador comum porque não estava a tratar, ou melhor, não quis tratar o adolescente como adulto, imputável.

Isso é observado desde o início, quando define o crime praticado por adolescente de ato infracional (art. 103, ECA). Existem outros indicativos: chamou a prisão cautelar de internação antes da sentença, também denominada de internação provisória; as consequências da prática de um homicídio ou de um roubo receberam a designação de medida socioeducativa, e não de pena; o Juiz que julga o ato infracional não é Juiz criminal, mas Juiz da Infância e da Juventude; a peça que acusa não é denúncia, mas representação; o acordo feito para evitar o processo infracional é remissão extrajudicial, e não transação ou acordo de não persecução penal.

Por isso, o fato de não ter chamado a oitiva do adolescente, prevista no art. 186 do ECA, de interrogatório não significa que a ele não fosse perguntado sobre os fatos e sobre suas condições pessoais. Parece inimaginável que uma lei tão elogiada mundo afora, sancionada já sob a égide dos valores inerentes ao Estado Democrático de Direito, permitisse que o adolescente, uma pessoa ainda em desenvolvimento, fosse julgado pelo cometimento de um crime, ou seja, por homicídio, roubo ou qualquer delito que seja, sem que se garantisse o sagrado direito de escuta.

Não se pode olvidar, ainda, que a participação do menor está garantida até por princípios próprios do ECA (art. 100, inciso XII). Ainda que não houvesse essa garantia, não ouvir o adolescente sobre os fatos seria uma violação a sua dignidade enquanto ser humano.

Nesse cenário, parece claro que a audiência de apresentação sempre existiu para o adolescente ser interrogado, sobre os fatos e sobre suas condições pessoais. E isso é exatamente o que o CPP define por interrogatório, conforme se observa no art. 1872.

Por tudo isso, com todas as vênias ao egrégio STJ, a conclusão única possível é de que, de fato e de direito, o ECA estabeleceu a possibilidade de o adolescente ser interrogado3.

Não obstante, por força do que fora decidido pelo STF e agora também pelo STJ, se o interrogatório não pode mais ser realizado na audiência de apresentação, não parece haver sentido na sua realização.

Embora não seja possível extrair esta conclusão do julgado, é admissível que se interprete a orientação no sentido de que a intenção do STJ fora a de vedar a realização de perguntas sobre o fato, sobre o crime. Contudo, as perguntas de natureza pessoal estariam permitidas. Logo, a audiência de apresentação deveria ser mantida para que o Juiz e as partes fizessem tão somente perguntas dessa natureza. Além disso, na medida em que a remissão pode ser concedida até a sentença, nada impediria que ela fosse concedida neste momento.

Alguns problemas sobre essa interpretação. O primeiro deles está relacionado à composição do interrogatório que o CPP forneceu. Como já mencionado, o interrogatório consiste em fazer perguntas sobre a pessoa e sobre os fatos. Logo, ouvir o adolescente sobre suas condições pessoais levaria à interpretação de que o STJ desmembrou o ato em dois momentos: antes e depois da instrução. Ou seja, embora o STJ tivesse afirmado que o ECA não houvesse estabelecido o momento para o adolescente ser interrogado, embora também tenha afirmado que devesse adotar o que o CPP disciplinou, na verdade, sua intenção teria sido outra: sobre os fatos, aplica-se o art. 400 do CPP; sobre as condições pessoais, aplica-se o art. 186 do ECA. Além de confuso e de não haver qualquer previsão em lei nesse sentido, o STJ estaria a atuar como legislador positivo, na medida em que criara procedimento não previsto no ECA, nem no CPP. Utilizou um pouco de cada lei e criou uma terceira.

O segundo problema está ligado à remissão. A previsão para que o Juiz avaliasse a possibilidade de conceder a benesse está no parágrafo primeiro do art. 186, ECA. O interrogatório ou a oitiva está no caput desse artigo. Se não há mais interrogatório nessa audiência, não deveria haver também a possibilidade de conceder a remissão neste momento, porquanto essa depende daquele. Se o caput não é aplicável, doravante, a parágrafo primeiro, como é subordinado a ele, perdeu o sentido, sua referência, sua base.

Ainda nessa linha, o caput do art. 126, ECA, traz os requisitos para a concessão do benefício. Apesar de o dispositivo dirigir-se ao Promotor de Justiça, não há outra norma a tratar do tema. Logo, os Juízes também se valem dos mesmos parâmetros.

Nesse cenário, ao conceder a remissão, além de elementos, avalia-se a maior ou menor participação do adolescente no crime. É por ocasião da oitiva informal (art. 179, ECA) que o Promotor de Justiça indaga ao menor as circunstâncias de seu envolvimento no ato infracional, se o praticou, ou não. E isso é interrogatório ou, pelo menos, isso faz parte de um interrogatório. E não há absolutamente nada de errado nisso.

Não foi previsto, contudo, qualquer conversa informal do Juiz com o adolescente. Seria inusitado previsão para o julgador conversar informalmente com a parte. O momento para a conversa só pode ser o ato formal denominado de interrogatório, previsto no art. 186, ECA.

Nesse quadro, é possível concluir que a remissão depende de o adolescente falar sobre os fatos com o Promotor de Justiça ou com o Juiz. Assim, a sistemática criada pelo Estatuto não admite que o adolescente possa ser responsabilizado sem que tenha o direito de dizer se teve participação no crime.  Configuraria uma verdadeira violação à dignidade da pessoa do adolescente pensar diferente. Ainda que a remissão não produza antecedentes (art. 127, ECA), quando se cumula medida socioeducativa, o adolescente assume obrigação pela prática de um crime que ele sequer teria tido a chance de dar a sua versão sobre os fatos.

As orientações do STJ parecem não ter observado essa mesma preocupação externada no número 3 da ementa de seu próprio julgado, assim redigida: “Na audiência de apresentação do adolescente, é possível que ao adolescente em conflito com a lei se imponham medidas socioeducativas, o que lhe traz considerável ônus e notória restrição à sua liberdade”.

Logo em seguida, e talvez bem por isso, no número 4 da ementa, fica estabelecido que o interrogatório só pode ser feito ao final. A interpretação desses dois números é a de que a remissão, cumulada com medida, é prejudicial a ele. Um exemplo deixa isso claro.

Dois adolescentes furtam um telefone celular que estava na bolsa de um colega de sala de aula. O objeto é vendido, e o dinheiro gasto pelos dois. Apurados os fatos, realizada a oitiva informal, o Promotor de Justiça resolve representá-los. Na audiência de apresentação, em que o Juiz só poderia fazer a primeira parte do interrogatório, ou seja, só perguntas pessoais, concede-se remissão para o adolescente primário, acompanhada da medida socioeducativa de liberdade assistida, o que foi aceito inclusive pelo seu defensor; o outro, em razão do histórico, não. Após a audiência de instrução, eis que o menor reincidente é absolvido por falta de provas.

Pronto: está evidenciada a preocupação externada no item 3 da ementa. O adolescente “bonzinho”, sem passagens anteriores, foi responsabilizado; o outro, problemático, foi absolvido, em julgamento de mérito.

Não obstante, por força do julgado, tem sido comum adolescentes obrigarem-se ao cumprimento de medidas socioeducativas, com aval da defesa técnica, nesta nova audiência de apresentação, mesmo sem ser questionado sobre os fatos.

A desnecessidade da audiência de apresentação fica mais evidente diante da vedação de atividade probatória. Nesse ponto, a alínea “b” ainda traz uma confusão, quando fala em eventual confissão. Parece contraditório: não pode interrogar, nem produzir prova, mas admite a confissão. Como? A confissão depende do interrogatório. Se é impossível produzir prova, não se pode admitir perguntas, ainda que de natureza pessoal ao adolescente, mormente porque elas são relevantíssimas para a fixação das medidas socioeducativas (§ 1º do art. 112 do ECA). Uma vez que tais condições sejam de conhecimento das partes e do julgador, é possível a utilização para fins de prova. A audiência judicial, e não importa o nome que se dê, é ato formal, com a presença do Juiz, do Promotor de Justiça e do advogado. Tudo que nela for tratado não pode ser descartado para exame futuro.

Outro ponto não tratado no julgado. A audiência de apresentação, nos termos em que concebida pelo ECA, é o primeiro ato processual. Sem a oitiva do menor, o processo trava. Para respeitar os princípios, quase sempre esquecidos, da prioridade absoluta e intervenção precoce, princípios fundantes do Direito Infanto-Juvenil, o Estatuto trouxe a previsão de expedição de mandado de condução coercitiva e até de mandado de busca e apreensão, em situações que tais.

Assim, uma vez intimado o adolescente, verificada a ausência injustificada na audiência, expede-se a condução coercitiva. Não intimado, o MBA. Essas ordens têm o objetivo de fazer com que o processo infracional seja impulsionado, a fim de chegar a um resultado útil o mais rápido possível. E isso só podia acontecer com a presença do adolescente na audiência de apresentação.

Com a proibição do interrogatório no início, com a vedação de produção de prova, é possível continuar a expedir tais ordens? Ainda que se admita, ad argumentadum tantum, a possibilidade de ouvir tão somente sobre as condições pessoais, é admissível ato de tamanha força contra o adolescente apenas para isso? As orientações silenciaram a respeito. Será que a sociedade ou a OAB admitiriam esse tratamento ao adulto?

É possível que se argumente ainda que a audiência de apresentação deve ser mantida, tendo em vista a necessidade de obrigar o adolescente a se fazer presente à figura do Juiz. Como o Juiz poderia julgá-lo, sem que houvesse esse contato? É uma questão relevante que, todavia, tem um “quê” de romantismo. Além disso, ignora o fato de que o adolescente é sujeito de direito. E, nessa condição, diante do que ficou regulado no HC 127.900/AM e nas ADPF’s 395 e 444, ele não deveria ser obrigado a comparecer a qualquer audiência. Uma coisa é o direito de ele ser informado de sua realização; outra, bem diferente, é utilizar-se de força, inclusive, policial, para obrigar ao comparecimento. Se para interrogar, não é possível fazer isso, não parece correto a expedição de tais ordens apenas para falar sobre suas condições pessoais. Com todas as vênias, isso tangencia à tortura estatal.

Além disso, é necessário relembrar que se está a falar de crime, de ato infracional. Uma das principais mudanças operada com a doutrina da proteção integral foi a diminuição do poder que o então Juiz de Menores tinha na vigência da doutrina da situação irregular. A partir da CF/88 e da vigência do ECA, o Juiz infracional está vinculado à lei, ao processo, e sua função principal é julgar[4]. Obrigar o adolescente a comparecer a uma audiência nitidamente de natureza criminal, apenas para que o Juiz possa indagar-lhe sobre questões pessoais e sociais, ignora o papel do magistrado no processo infracional.

Na verdade, não obstante seja relevante poder ter esse contato, a apuração de homicídio, roubo, latrocínio, enfim, de qualquer crime, não fica condicionada a esse encontro. A partir do momento em que se estabeleceu a imputabilidade socioeducativa (12 anos), o objetivo do processo infracional é apurar a responsabilidade do adolescente na eventual prática do crime.

Evidentemente, que o olhar sobre isso deve ser especializado, porquanto se está a falar de pessoa em especial condição de desenvolvimento. A sensibilidade em julgar não está condicionada ao contato coercitivo, mas à necessidade de saber que não se está a julgar um imputável.

Ademais, não se pode olvidar que se está a tratar de sujeito de direitos. Ou seja, adolescente não pode ser tratado como objeto. Não se deve ignorar que ele fora intimado para essa audiência, não compareceu e não justificou o seu não comparecimento. Nesse quadro, expedir o mandado de condução coercitiva desrespeita a sua vontade de não querer apresentar-se ao magistrado. Isso, é claro, a partir da nova ordem processual, criada pelo STJ.

Por fim, sobre esse tópico, ao ler o voto condutor do julgado no âmbito do STJ, observa-se que uma das ideias centrais que conduziram a mudança do interrogatório para o final da instrução foi impedir que o adolescente tivesse tratamento mais prejudicial do que conferido ao imputável. Assim, na medida em que não é possível conduzir este à presença do Juiz, haveria de se aplicar a mesma lógica em relação àquele.

Ainda sobre a condução coercitiva, mas agora com relação ao interrogatório realizado ao final da instrução. Se intimado o adolescente, não comparece ao ato. É possível conduzi-lo coercitivamente para ser indagado sobre os fatos?

Embora o julgado nada tenha falado sobre isso, a situação aqui parece mais fácil de resolver, pois acredita dever ser aplicada a orientação extraída do julgamento das ADPF’s 395 e 444, que proibiu a condução coercitiva em relação ao adulto. Não se pode olvidar que a Lei de Abuso de Autoridade, Lei 13.869/2019, estabelece, no art. 10, que é crime decretar a condução coercitiva manifestamente descabida. A partir do julgamento dessas ADPF’s, a condução do imputável constituiria crime; outra conclusão não seria possível, no caso de adolescente.

Caminhando para o fim. No julgamento do HC no âmbito do STJ, houve menção ao fato de que a audiência de apresentação poderia fazer às vezes de uma audiência de custódia. Acreditamos que não.

Audiência de custódia foi estabelecida com base no Pacto de São José da Costa Rica, que previu a apresentação da pessoa presa à autoridade judicial. Introduzida no CPP através da Lei 13.964/2019, está prevista no § 1.º do art. 3-B. O dispositivo faz referência expressa à pessoa presa, por força de flagrante ou de mandado. Adolescente, contudo, não é preso, mas, apreendido. Não deve ser, todavia, só por isso, que audiência de apresentação não possa ser transformada.

A rigor, audiência de custódia é feita logo após a prisão. O dispositivo legal deixa expresso que o ato deve ser realizado no prazo de 24 horas. Além disso, em regra, não há processo, não há denúncia ainda. O escopo primordial é verificar as condições em que se deu a prisão. Por isso, a pessoa não é intimada; ela é conduzida ao Juiz. Ademais, o conteúdo da custódia não guarda relação com o crime em si.

No processo infracional, a situação foi regulada de maneira distinta. Quando o crime é grave (art. 174, ECA) e haja a apreensão em flagrante, o art. 179, ECA, prevê a apresentação imediata do adolescente ao Promotor de Justiça, que realizará a oitiva informal. Depois da escuta, o Parquet decide por conceder a remissão ou representar, não sendo o caso de arquivamento (art. 180, ECA). Somente quando se acusa o adolescente formalmente, sendo a representação admitida, é que haverá a necessidade de realizar a audiência de apresentação. Ela, contudo, ocorrerá, em regra, meses após o fato, considerando que a restrição da liberdade é excepcional. A imensa maioria dos adolescentes que se envolvem com a delinquência juvenil responde ao processo solto. O adolescente não é conduzido, mas intimado a comparecer ao ato, que, como já explicado, destina-se a interrogar o menor. O cotejo desses elementos indica ausência de lógica em utilizar audiência de apresentação como audiência de custódia.

E no caso de adolescente que responde ao processo infracional internado? Ainda assim acredita não ser o caso de aproveitar a audiência de apresentação como se fora de custódia.

Como é cediço, a internação provisória do adolescente é limitada em 45 dias. Dentro desse espaço de tempo, o Juiz da Infância deve julgar qualquer ato infracional. Por isso, ele tem contato com o adolescente alguns dias depois de recebimento da inicial. Não há, pois, o risco de o encontro demorar a ocorrer.

Não obstante, caso haja necessidade de realizar audiência de custódia, a rigor, dever-se-ia alterar o procedimento previsto no art. 179 citado. Afinal, não pode ser admissível que o adolescente seja apresentado ao Juiz somente depois de ser apresentado ao Promotor de Justiça. A permanecer a apresentação do adolescente primeiro ao Promotor de Justiça, estar-se-ia a diminuir a relevância da apresentação ao Juiz. E isso não atende nem o Pacto de São José da Costa Rica, nem o Código de Processo Penal, na medida em que ambos estabelecem a apresentação de preso ao Juiz.

Caso se queira, contudo, transformar a oitiva informal em audiência de custódia é preciso ter em mente que não basta apenas colocar o Juiz e a defesa técnica junto com o Promotor de Justiça. Aquilo que hoje é feito nas oitivas, principalmente, perguntas sobre os fatos, não deve ser feito na eventual oitiva repaginada. Afinal, interrogatório perante o Juiz só é cabível ao final da instrução. Como consequência, é possível que as remissões extrajudiciais acabem, pois, como visto acima, é preciso avaliar a participação do adolescente no crime.

O que não pode, a nosso juízo, é transformar audiência de apresentação, ato processual, que tem finalidade específica. Se não é mais possível interrogar, com todas as vênias, sequer caberia remissão, como dito linhas atrás. Ademais, não é papel do Poder Judiciário transformar a destinação do ato criado pelo legislador, de forma a estabelecer um arremedo de audiência de custódia, com o processo já em curso.

Apesar disso tudo, verdadeiramente, acredita-se não ser necessário mexer no processo infracional, nesse ponto. O legislador estatutário parece já ter feito uma regulação adequada e eficaz, quando se considera a origem da audiência de custódia, que é verificar a abusividade das prisões em flagrante.

Como já dito, o adolescente é apresentado ao Promotor de Justiça, que, no mesmo dia, realiza uma entrevista informal com o adolescente. E é esse profissional que exerce o controle da atividade externa da polícia. Ninguém melhor do que ele para verificar a prática de abuso contra o menor, considerando a capacidade postulatória e a obrigação, até por força de dispositivo específico (art. 201, VIII, ECA), de promover todas as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis para zelar pelo respeito aos direitos do adolescente. Se o Promotor de Justiça não está a agir assim, a culpa não é do procedimento. O Juiz, por outro lado, é desprovido de capacidade postulatória. Nas audiências de custódias tradicionais, ao que parece, ele apenas oficia aos órgãos de controle da polícia.

Há de salientar, ainda, que o Promotor de Justiça que oficia no Juízo infanto-juvenil tem poderes decisórios que se assemelham, em certa parte, aos poderes do Juiz. Se ele entender que não é o caso de instaurar a ação socioeducativa, concede a remissão, e o procedimento é finalizado; ainda que o Juiz possa dela discordar, a última palavra será sempre do Ministério Público (art. 181, § 2.º, ECA).

Por todas essas razões, defende-se não haver necessidade de estabelecer audiência de custódia para adolescente, quanto mais transformar audiência que sempre fez parte do processo judicial.

Enfim, as questões aqui tratadas merecem uma atenção por parte do STJ, nos julgamentos que se avizinham. Embora a mudança do interrogatório tenha sido operada em benefício dos adolescentes, parece haver consequências que os prejudicam. Talvez, a razão para isso tenha sido a tentativa de fazer algo que o STF não fez, quando julgou o HC 127.900/AM, que foi aproveitar ato processual que perdeu sua utilidade. Aliás, há diversos julgados monocráticos no próprio STF5 que estão a entender que o art. 400 do CPP superou o procedimento inicial previsto no ECA.

___________________

1 Já escrevi algumas linhas sobre o assunto: https://www.migalhas.com.br/depeso/378013/o-interrogatorio-do-adolescente-no-processo-infracional.

2 Art. 187 do CPP. O interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos.

3 Nesse sentido, NUCCI, Guilherme de Souza. Estatuto da criança e do adolescente comentado. 4.ª ed. rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018, pp. 193/194; ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência. 14. ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 446; BARROS, Guilherme Freire de Melo. Estatuto da Criança e do Adolescente: atualizada de acordo com a lei 10.10/2009. 6.ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: editora JusPodivm, 2012, pp. 234-235.

4 AMIN, Andréa Rodrigues. Curso de Direito da Criança e do Adolescentes: Aspectos teóricos e práticos. MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade, Coordenação, 9.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2016, pp. 58-60.

5 São exemplos: RHC 225.053/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 24/02/2023; RHC 224.561/SC, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 07/03/2023; HC 215.009/PR, Rel. Min. Nunes Marques, julgado em 18/08/2022.

Márcio da Silva Alexandre
Juiz de Direito, titular da 2.ª Vara da Infância e da Juventude do DF e Mestre em Ciências Jurídico-Criminais.

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