Imagine-se que, de uma relação permeada por um ciclo de violência doméstica, em que uma mulher que já é vítima de uma série de abusos, com episódios sutis ou evidentes de agressão, advenham conflitos na esfera jurídico-familiar.
Imagine-se que, em meio ao divórcio litigioso, disputas de guarda, processos de alimentos e outros litígios na seara cível, essa mesma mulher passe a ser, ainda, alvo de uma campanha difamatória nas petições da outra parte, tenha seu patrimônio prejudicado por atos processuais protelatórios ou até venha a ser acusada criminalmente em inúmeros boletins de ocorrência que são utilizados para fortalecer uma narrativa que lhe descredibiliza como mulher e mãe dentro dos processos de família.
Infelizmente, essa é a realidade, muitas vezes ocultada sob o sigilo dos processos, da mulher na sociedade brasileira que, vítima de violência doméstica, resiste a todo custo em buscar a punição de quem se relaciona ou de quem já se relacionou um dia. Por medo, por vergonha, por fatores emocionais, por questões financeiras, pelos filhos ou por simplesmente não ter para onde ir.
Isso porque, da forma como tudo está posto, nossas instituições, principalmente o Poder Judiciário, ainda não oferecem o suporte necessário para coibir todas as violências vividas e aquelas que se perpetuam em um ciclo de violência intrafamiliar. Para demandantes, vítimas ou testemunhas, o dia a dia da realidade forense tem se mostrado perverso às mulheres que buscam amparo.
Enquanto na esfera dos direitos das famílias a violência toma contornos de alegações vagas de alienação parental, inadimplemento de alimentos ou não cumprimento das regras de convívio, na seara criminal, as armas recorrentes são, por exemplo, a burla às medidas protetivas de urgência, o (ab)uso de interpelações ou representações por denunciação caluniosa, além das queixas por crimes contra a honra.
Nesses casos, a violência processual é perpetrada e retroalimentada justamente na combinação das ações de família e criminais, o que traz um delineamento sistêmico e interdisciplinar do problema.
No ano de 2022, o STJ, de forma pioneira, condenou por danos morais um advogado que, no exercício do direito de defesa do seu cliente, menosprezou a condição de mulher da parte adversa, ao proferir “ofensas gratuitas e que são resquícios de um discurso odioso, sexista, machista e misógino que não pode possuir mais espaço na sociedade”1.
Esse é um precedente importante que colocou luz em uma prática antiga e, ao mesmo tempo, cada vez mais atual. Entretanto, a condenação ainda representa passos lentos em relação às consequências negativas que a violência processual pode trazer para a vida de uma mulher.
É preciso falar - já tardiamente - da violência processual, porque as conversas de bares ainda vão para uma sala de audiência, pois podemos ouvir sem pudor que “as mulheres estão loucas atrás de homens”.
Mas houve um feixe de esperança.
O CNJ, por meio da Resolução 492/23, tornou obrigatórias as diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero pelo Poder Judiciário. O objetivo é superar a desigualdade e a discriminação por meio da imparcialidade no julgamento de casos de violência contra mulheres, sem se basear em estereótipos e preconceitos.
Agora, os argumentos que incansavelmente eram repetidos como uma súplica por respeito e isonomia, podem contar, ao menos, com uma nota de rodapé que deve ser nacionalmente aplicada.
Mas já está tarde. Ainda não há punição. As mulheres que ousam denunciar seu estado de vítimas são perseguidas, revitimizadas e marcadas por um sofrimento psicológico que, muitas vezes, perdura por anos. Pergunta-se: quem vem sendo punido de fato? Quais vítimas são consideradas ideais para merecerem a proteção do Estado?
O primeiro passo para a resolução dessa problemática está na identificação aprofundada do lócus (campo de batalha), que, no caso do Lawfare de Gênero, termo cunhado por Soraia Mendes e Isadora Dourado2, se encontra em maior intensidade no sistema de justiça criminal, de combate à violência doméstica e de direito das famílias. Ou seja, a análise inicial deve se desenvolver a partir dos questionamentos: quem são as vítimas desses conflitos e em qual medida os dois âmbitos se entrelaçam?
O segundo passo está no delineamento desse fenômeno, passando por um caminho de diferenciação entre os elementos da violência processual e os institutos já existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Por fim, o terceiro passo está justamente em interpretar as normas e, a partir dessa análise, pontuar alternativas que de fato coíbam a violência processual.
Dessa forma, ao observar que as dinâmicas familiares e os conflitos decorrentes constantemente impõem desafios ao direito, devemos ter soluções imediatas para as seguintes problemáticas: caso uma mulher sofra violência processual nos moldes que serão delineados, qual é a resposta que o ordenamento jurídico dá? Essa resposta é suficientemente efetiva para coibir o problema?
Pois, como ensina Hannah Arendt, "O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades".
1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.761.369/SP. Rel. Min. Moura Ribeiro, Rel. para acórdão Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 07/06/2022.
2 MENDES, Soraia; DOURADO, Isadora. LAWFARE DE GÊNERO: o uso do direito como arma de guerra contra mulheres. [S. l.], 9 mar. 2022. Disponível em: https://agenciapatriciagalvao.org.br/wp-content/uploads/2022/02/SoraiMendesIsadoraDourado_LAWFAREDEGENEROjaneiro2022.pdf.