Embora a nova democracia brasileira se assente no princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, constata-se que, na prática, em especial na esfera criminal, tal primado ainda está longe de saltar das páginas da Constituição Cidadã e se concretizar, em toda sua inteireza, na vida como ela é.
As tendências e medidas neoliberais que se seguiram à etapa de redemocratização do País – verificadas especialmente na década de 1990 –, ao tempo em que esfriaram o entusiasmo pelo aporte de cidadania contemplado no novo arcabouço constitucional, trouxeram engessamento ao Estado social e estimularam o incremento de um Estado penal, marcado pelo aumento da legislação criminalizadora e pela explosão do contingente carcerário.
Em paralelo, desde o final do século passado, vinha ocorrendo a revaloração do papel da Constituição nos sistemas político e jurídico nacionais – característica do constitucionalismo pós-positivista –, reservando-se ao Poder Judiciário uma nova dimensão, de maneira a ampliar significativamente seu âmbito de atuação.
Temas políticos passaram a ser judicializados; direitos sociais, coletivos e as garantias fundamentais tornaram-se merecedores de tutela judicial direta – inclusive de modo coletivo – a partir da atuação de entes (Ministério Público, entidades civis, associações, sindicatos etc.) constitucionalmente legitimados para atuar em prol de grupos e segmentos sociais – consumidor, usuários de serviços públicos, idosos, massa carcerária etc. – ou mesmo de toda a coletividade, em defesa do meio ambiente, patrimônio cultural, urbanismo etc. E mais: o atendimento, pelos agentes públicos, aos princípios constitucionais da Administração Pública – dentre eles a moralidade e a eficiência – tornou-se passível de um maior controle judicial.
Essa nova dimensão do Judiciário traz grande reflexo à jurisdição constitucional – não somente aquela exercida difusamente pelos órgãos da judicatura de base, mas também e especialmente pela Corte Constitucional. Hoje, encontra-se potencializado o controle judicial quanto à inaplicabilidade e ineficácia de leis iníquas ou que se afastem dos ideais, primados e princípios constitucionais, ou, ainda, que sejam fruto de um processo ilegítimo, em que não se tenha propiciado o devido debate público prévio a todos os interessados – membros da comunidade política e destinatários das normas.
A seu turno, a prodigalidade da legislação penal, nem sempre imbuída do ideal igualitário, terminou por propiciar, como efeito colateral, um significativo aumento da seletividade praticada pelas agências policiais em seu exercício de criminalização. As cifras negras vêm aumentando de modo proporcional às novas regras incriminantes, não somente como retrato involuntário das baixas taxas de elucidação de crimes, mas, principalmente, pela exacerbação do arbítrio e da discricionariedade dos órgãos de persecução penal por ocasião da seleção de sua clientela.
E é justamente nesse ponto que, através de dois vetores – distintos, porém convergentes –, é legítimo esperar que o Poder Judiciário desempenhe – dadas suas potencialidades no atual formato de nosso Estado constitucional – um papel muito mais relevante e efetivo para a correção das desigualdades e para o aumento da justiça social. Seu esforço e sua eficácia nessa tarefa corretiva poderão fazer com que (re)obtenha a confiança do jurisdicionado, que hoje está fortemente arranhada.
Através de um desses vetores – numa acepção da chamada jurisdição constitucional – remanesce ainda um amplo espaço para a realização de podas niveladoras na legislação penal desigualitária (que prevê, por exemplo, nos ilícitos patrimoniais, que o cidadão pobre seja tratado mais severamente do que o contribuinte; ou que o membro de setores da elite tenha melhores condições de encarceramento provisório do que o cidadão das classes desfavorecidas). Ainda em termos de jurisdição constitucional, merece consideração o fato de que o incremento legislativo do Estado penal vem ocorrendo em duas frentes – de um lado, a criminalização dos crimes de perigo; de outro, o arrocho da resposta penal aos crimes mais violentos (perpetrados contra os direitos fundamentais das vítimas e que mereceram etiquetação diferenciada pela Constituição da República). Tais frentes, embora paralelas e concomitantes, embora não sejam, poderiam muito bem ser receber tratamentos diferenciados, inclusive comportando posturas jurisdicionais distintas, atributivas de diferentes graus de (i)legitimidade aos documentos normativos respectivos.
Também no outro vetor – a jurisdição criminal de varejo –, vê-se que, em relação às desigualdades patrocinadas pela atividade repressora pré-judicial, a possibilidade corretiva igualmente permanece apenas potencial, sendo, na prática, extremamente tímida ou ineficaz.1 É o que apontam os dados relativos à massa carcerária, em meio à qual, numa proporção muito maior do que a sociedade em geral, são encontradiços miseráveis, analfabetos, enfim, membros da horda de excluídos sociais.
Infelizmente, o que se constata na atividade judicial criminal é a desigualdade dentro da desigualdade – que não corrige, mas agudiza a iniquidade. Sua atuação, na prática, carece de maiores parametrizações, de limite ao abuso de discricionariedade, porque ainda muito pouco ocupada com os imperativos da coerência, previsibilidade e segurança jurídica.
Assim é que, para aperfeiçoar o quadro jurisdicional penal brasileiro, várias posturas e diretivas deveriam ser estimuladas e adotadas. Isso deveria estar na ordem do dia, seja por parte das próprias instituições envolvidas, seja no âmbito da academia, seja no debate público, midiático e parlamentar.
Referentemente aos aspectos anteriores à dicção judicial criminal, dirigida ao mérito das questões penais em espécie, é urgente a ampliação e maior celeridade na tarefa de adequação do arcabouço legislativo à vigente ordem constitucional, em específico, sob o signo do principio igualitário.
Para a contenção dos males desigualitários decorrentes da seletividade arbitrária promovida pela atividade policial de persecução penal, além da efetiva coibição institucional dos abusos, são necessários investimentos permanentes na formação cultural e humanitária dos agentes policiais e dos membros do Ministério Público, sem prejuízo do aperfeiçoamento dos próprios organismos internos de controle (corregedorias e ouvidorias), facilitando-se e protegendo-se, ademais, o acesso e as reclamações da população em geral sobre seus serviços.
As investidas promíscuas de órgãos judicantes nas tarefas próprias à persecução penal devem ser sempre exemplarmente rechaçadas, bem como qualquer resquício de narrativa ou discurso no sentido de que “compete ao Judiciário combater a criminalidade”. Um juiz “combatente do crime” destrói a dialética processual, transforma-se, ele próprio, num criminoso justiceiro. Distorções abusivas não podem ficar impunes. Não por acaso vivenciamos recentemente tempos sombrios, maculados, em que a prática de “lawfare” por alguns termina por colocar em suspeição a atuação correta de outros tantos. E se nada for feito, mantidos o “modus operandi” e a estrutura atual, semelhantes abusos voltarão a ser perpetrados. Não se pode esperar resultado diferente ao se repetir os mesmos erros, teria dito Einstein.
Eros Grau, então ministro do STF alertava ainda nos idos de 2008.2
Isso tem sido no entanto ignorado nos dias que correm, de sorte que alguns juízes se envolvem direta e pessoalmente com os agentes da Administração, participando do planejamento de investigações policiais que resultam em ações penais de cuja apreciação e julgamento eles mesmos serão incumbidos, superpondo os sistemas inquisitório e misto, a um tempo só recusando o sistema acusatório. Este, contemplado pelo nosso ordenamento jurídico, impõe sejam delimitadas as funções concernentes à persecução penal, cabendo à Polícia investigar, ao Ministério Público acusar e ao juiz julgar, ao passo que no sistema inquisitório essas funções são acumuladas pelo juiz. Basta tanto para desmontar as estruturas do Estado de direito, disso decorrendo a supressão da jurisdição. O acusado já então não se verá face a um Juiz independente e imparcial. Terá diante de si uma parte acusadora, um inquisidor a dizer-lhe algo como "já o investiguei, colhi todas as provas, já me convenci de sua culpa, não lhe dou crédito algum, mas estou a sua disposição para que me prove que estou errado"! E isso sem sequer permitir que o acusado arrisque a sorte em ordálias...
Ao Judiciário compete julgar em papel equidistante: do mesmo modo que lhe incumbe dizer e restaurar os direitos do Estado quando tem violados os bens que tutela, compete-lhe dar efetividade aos direitos dos indivíduos contra a repressão ilegítima desse mesmo Estado. E a dúvida – diz o ordenamento jurídico-constitucional – deve ser solvida pro reo.
Quanto à melhoria qualitativa da jurisdição criminal de varejo em si, especialmente sob as óticas da coerência e da igualdade material –, várias medidas podem ser adotadas, inclusive na linha da “revolução democrática da justiça”, propugnada por Boaventura de Sousa Santos.3
Em relação ao aprimoramento da formação da subjetividade do órgão decisor – que deve se iniciar, a rigor, nos bancos escolares –, pode ser relevante uma mudança de enfoque nos procedimentos de seleção ao ingresso às carreiras jurídicas públicas, prestigiando-se as cadeiras de viés humanístico, como a Psicologia Judiciária, Sociologia Jurídica, Filosofia do Direito, Ética, Teoria Geral do Direito, Teoria Geral da Política, valorizando-se, ainda, os exames vocacionais e psicotécnicos admissionais. O mesmo foco deve ser assumido pelas respectivas escolas institucionais – estaduais e nacionais – destinadas à formação e ao aprimoramento cultural de seus membros.
No que se refere a parâmetros de discricionariedade da atividade jurisdicional penal, posturas e ferramentas essenciais ao exercício de uma atuação coerente e isenta devem ser prestigiadas. Nessa seara, importantes instrumentos de contenção e autocontenção de excessos arbitrários podem ser apontados: de um lado, o aumento da publicização efetiva dos atos e bancos de dados oficiais relacionados à atividade jurisdicional; de outro, maior zelo e observação aos precedentes e autoprecedentes, em especial em tempos de massificação de processos, evitando-se, assim, um elevado grau de incerteza quanto ao resultado da jurisdição (“justiça lotérica”).
Em paralelo, sempre que em jogo a análise dos requisitos exigidos à prisão do indivíduo (como, de resto, à limitação de qualquer direito ou garantia), é cabível que se resgate uma postura interpretativa mais formalista, em seu sentido conservador e legalista. No outro extremo, nas situações em que seria o próprio Estado – ou um órgão estatal – o virtual onerado por um mergulho judicial mais livre aos propósitos subjacentes da norma, deve ser, sim, estimulada uma postura mais particularista, em viés ativo/criativo, que possa acudir o cidadão no caso concreto, parte mais vulnerável da relação indivíduo-Estado.
Enfim, reconhecendo que o Poder Judiciário ainda está longe de cumprir bem seu papel de garantidor do ideal igualitário no sistema penal, é lícito pretender – rompendo as barreiras do conservacionismo corporativo – que novas posturas, mecanismos e instrumentos sejam desenvolvidos para, em alguma medida, atender ao objetivo de minimizar o quadro atual de desigualdade e injustiça social. Do contrario, dissimulando lamentos de quem enxuga gelo, qual um Sísifo pós-moderno, a instância judicial seguirá aninhada como eterno instrumento da elite opressora, que calibra a seu bel-prazer a balança de Themis.
Se a Justiça também não fizer sua parte para dar uma chance à vida,
Ao menino-Brasil não restará outra saída,
A não ser a vida bandida:
Jovem preto, novo, pequeno
Falcão fica na laje de plantão no sereno
Drogas, armas, sem futuro
Moleque cheio de ódio invisível no escuro
É fácil vir aqui e mandar me matar,
Difícil é dar uma chance à vida
Não vai ser a solução mandar blindar
O menino foi pra vida bandida.4
1 É a polícia que, na prática, pauta a atuação judiciária, que, por sua vez, acomoda-se, obediente, a essa pauta.
2 Trecho do voto proferido no julgamento do HC 95009-SP.
3 Cf. SANTOS. Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2007.
4 Refrão de Falcão, canção composta pelo rapper Mv Bill.