1. Autonomia da vontade e autonomia privada
É sabido que a LAB - Lei de Arbitragem 9.307/96, é uma clara expressão da autonomia privada. Primeiro porque o Estado cedeu parte do seu poder judicante para os particulares quando se trata de operações relacionadas e limitadas a conflitos sobre direitos patrimoniais disponíveis. Segundo quando no seu texto são estabelecidos limites à sua utilização, na medida em que esse modo de solução de pendências tiver sido a opção das partes, livremente estabelecida. Tem havido um alargamento no campo da arbitragem, como ocorreu pela possibilidade da administração pública direta e indireta utilizar-se do instituto para dirimir, da mesma forma, conflitos relacionados a direitos patrimoniais disponíveis, conforme o § 1º do art. 1º da LAB, como fruto de nova redação dada pela lei 13.129/15. Estuda-se no momento a utilização da arbitragem quanto a alguns aspectos do direito tributário.
Veja-se que os ordenamentos jurídico construídos no ambiente romano-germânico do século XIX foram uma expressão do Estado Liberal e que se refletiram nos códigos nascidos até, pelo menos, a metade do século passado e que operavam sob o modelo da autonomia da vontade. Significa dizer, no campo do direito privado, que vigorava o poder das partes de celebrarem contratos de forma absolutamente livre, sujeitando-se o devedor de alguma obrigação a cumpri-la tal como estabelecida, extremamente limitada a sua defesa em poucos casos como, por exemplo, a prova de vício da vontade. Pacta sunt servanda sempre!1
Tratando-se da compra e venda rezava o art. 1.126 do CC/1916 que, quando pura, considerava-se obrigatória e perfeita, desde que as partes acordassem no objeto e no preço. Nesse sentido, não havia escapatória para o comprador a não ser pagar o preço e para o vendedor de entregar o bem. Não havia qualquer adjetivação naquela norma.
Veja-se que a LAB abre para qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes a possibilidade de serem árbitros (art. 13). Disso decorre que, contrariamente a um pensamento incorreto em voga, não somente advogados podem assumir tal encargo, ainda que os percalços do instituto tenham levado a um entendimento que no tocante ao processo arbitral eles se revelam mais aptos. Quanto ao elemento confiança, trata-se de sua denotação no próprio instituto da arbitragem e não da pessoa do árbitro, caso em que – se esse fosse a correta interpretação - poderia se entender que ele seria representante da parte que o indicou e que verdadeiramente seria autônomo tão somente o presidente do tribunal arbitral porque escolhido pelos dois outros árbitros.
2. A arbitragem e a autonomia privada no campo do direito material
A evolução mais recente do direito quanto à política legislativa teve lugar quando do advento do Estado Liberal, no qual o absolutismo da vontade cedeu lugar à autonomia privada, segundo a qual ela se expressa na construção de contratos limitada a determinados parâmetros, de interesse público, cerceadores da liberdade das partes. Exemplo claro está no art. 421 do CC/02, onde se lê que a liberdade contratual será exercida nos limites e na função social do contrato. Por sua vez, a revisão contratual ficou subordinada aos princípios da intervenção mínima da sua excepcionalidade, ao passo que estabelece-se uma paridade nos contratos civis e empresarias, somente cabível o afastamento dessa presunção na presença de elementos concretos em contrário, conforme o parágrafo único inserido naquele mesmo artigo, e o art. 421-A, por obra da lei 13.874/192.
Por oportuno tenha-se se em vista uma muito preocupante proposta, presente no anteprojeto de reforma do CC, mediante a introdução do parágrafo 2º ao art. 421, pretendendo-se a nulidade de pleno direito da cláusula contratual que violar a função social do contrato. Tendo sido de longa data contrário à inclusão da função social do contrato, mais ainda discordo dessa proposta, que traria incerteza e consequente insegurança sem medida nas relações contratuais, bastando pedir que o paciente leitor pense no que seja essa função social na sua acepção abstrata, de maneira a que possa ser aplicada a todo e qualquer contrato que possa ser celebrado, típico ou atípico. Os interessados nessa matéria podem buscar as fontes aqui indicadas3.
Diversas outras fontes jurídicas limitam a liberdade de contratar, como fenômeno da autonomia privada, mostrando-se o direito do consumidor como exemplo frisante dessa visão mais moderna.
Deve-se ter em conta que o intervencionismo jurídico estatal no direito, no plano material, pode fazê-lo retornar a uma maior limitação da autonomia privada, reduzindo a liberdade de se fazer negócios, distorcendo o modelo constitucional presente nos princípios gerais da atividade econômica, especialmente os da propriedade privada e da livre concorrência (art.170 da CF, incisos II e IV). Essa orientação restringiria o apetite dos agentes econômicos para continuarem ou darem início a uma atividade, tendo em vista o incremento dos custos correspondentes de externalidades negativas e de efeitos de segunda ordem.
No tocante ao direito material a autonomia privada é regida em sentido amplo pelos princípios gerais inerentes à atividade civil e empresarial econômica, percebidos aqui e ali no CC/02, anotada criticamente a ausência de uma teoria geral a seu respeito. Espraia-se, entre outras fontes, pelos princípios gerais do direito societário, presentes no mesmo código civil e, principalmente, na lei 6.404/76, que cuida das companhias e também no tocante aos princípios gerais regedores dos títulos de crédito, na forma da Convenção de Genebra.
No sentido acima um ponto relacionado aos limites estabelecidos ao exercício da autonomia privada se encontra na tutela da invalidade do mérito do negócio jurídico, na forma dos arts. 166 e 167 do CC, referindo-se a negócio ilícito, impossível ou de objeto indeterminável ou, ainda, na existência de simulação. Assim sendo, a existência, a validade e a eficácia das operações arbitrais estão vinculadas ao tratamento dos atos e dos negócios jurídicos, o que se dá também no campo das operações societárias e dos títulos de crédito em geral.
A particularidade dos diversos institutos relacionados à atividade econômica demonstra na sua individualidade o exercício da autonomia privada como, por exemplo, no contrato de locação, nos termos da lei de locação de imóveis 8.245/91, que apresenta alto nível de cerceamento da liberdade das partes, como é o caso da proibição da retomada pelo locador do imóvel alugado, durante o prazo para a duração do contrato (art. 4º, caput). Essa e outra previsão da lei mencionada está teoricamente fundada na pressuposição nem sempre verdadeira, de que o locador é a parte mais forte na relação jurídica correspondente e, portanto, titular de maior poder.
Os exemplos de intervenção jurídico/estatal nos contratos em espécie são inumeráveis, devendo o aplicador da lei estar apto a discernir neles o que é público e o que é privado. Uma tarefa bastante ingente, como se percebe.
3. A arbitragem e a autonomia privada no processo arbitral
De maneira geral e em atendimento ao princípio das coerências interna e externa do processo arbitral, dá-se a superação da autonomia privada nos casos em que os poderes outorgados ao tribunal arbitral excedam os limites de competência a eles atribuídos pela LAB ou nas situações que que se torna necessária a adoção de uma medida cautelar e de urgência, de forma a que não fique prejudicado ou eventualmente perdido o direito da parte interessada. Esse é o divisor de águas entre os dois universos de solução de conflitos sobre direitos patrimoniais disponíveis.
Sob este aspecto é preciso considerar que o processo arbitral se inicia e prossegue livremente segundo as normas próprias da LA, mas que não é plenamente autônomo, cingido pela tutela do Judiciário nos casos em que se entende estar presente o interesse público. Nesse sentido a arbitragem não é um instituto que viva por si mesmo. Há uma questão sempre presente nos meios arbitrais, relativa a uma percepção de que a pedido de uma das partes ou mesmo ex officio, o Judiciário ultrapassaria muitas vezes os limites de sua competência no processo arbitral.
Inicialmente, sem ter assumido o caráter no novidade jurídica, o art. 2º, § 1º da LAB autoriza que as partes poderão escolher livremente as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. Como se sabe, essa vedação já se encontrava presente em nosso ordenamento jurídico.
No sentido acima a ofensa à ordem pública já se encontra agasalhada no art. 104, II do CC/02, quando trata da validade do ato jurídico, obrigatoriamente vinculado a objeto lícito. No tocante aos bons costumes, o art. 113 do CC/02, ao tratar da interpretação do contrato, determina que atenda os usos do lugar da celebração daquele. Ora, como se sabe, cabe às Juntas Comerciais o assentamento dos usos e práticas mercantis, nos termos do art. 8º da lei 8.93, os quais certamente somente merecerão tal registro nos casos em que não infringirem qualquer norma legal, caso em que seriam classificados contra legem.
A liberdade das partes no processo arbitral de escolherem se a arbitragem será de direito ou por equidade, é limitada obrigatoriamente à primeira opção, tratando-se da administração pública como uma das partes (art. 2º da LA).
No exercício de sua liberdade as partes podem escolher a arbitragem institucional (que transcorrerá no âmbito de algum órgão arbitral institucional ou entidade especializada – caso das Câmaras de Arbitragem) ou a arbitragem ad hoc, quando elas mesmas estipularão a forma convencionada para a instituição e, consequentemente, o processo arbitral (art. 5º da LAB).
Nos casos em que foi celebrada a cláusula compromissória e a parte provocada para a sua instituição resistir ao pedido, interrompe-se provisoriamente o exercício da autonomia privada para que o juiz competente, a pedido da interessada, determine a citação da parte resistente a fim de que compareça em juízo, de modo a que possa ser lavrado o termo de compromisso (art. 5º da LA). Não poderia ser de outra forma, dado que o tribunal arbitral não detém esse poder.
Na sequência, o juiz tentará um acordo entre as partes objetivando a celebração do compromisso arbitral, cabendo-lhe em última análise sentenciar a respeito, inclusive pela nomeação dos membros do tribunal arbitra, passando o processo arbitral a seguir o seu trâmite regular (arts. 5º a 12).
Outro momento da intervenção do Judiciário diz respeito à nomeação do terceiro árbitro quando as partes não tiverem chegado a um consenso sobre esse tema (art. 13, § 1º).
Por meio de uma mudança na LAB, feita pela lei 13.129/15, foram introduzidos os arts. 22-A e 22-B, na tutela de competência externa à autonomia privada, a previsão do pedido de medidas cautelares e de urgência, para o fim do resguardo de interesses imediatos de alguma das partes, de maneira a que não fiquem prejudicados ou mesmo perdidos de forma definitiva, conforme já foi dito acima.
Há duas situações: (i) Em se tratando de pedido relacionado à instituição da arbitragem, a eficácia da medida cautelar que tenha sido concedida cessará no caso em que a parte não requerer a instituição do processo arbitral no prazo de trinta dias, contado da data da efetivação da respectiva decisão. Uma vez instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário. (ii) Estando já instituída a arbitragem o poder a respeito dessas medidas se localiza no tribunal arbitral.
Ainda atendendo os parâmetros da autonomia privada no campo da arbitragem e sua ligação ao Poder Judiciário, outra mudança na LAB foi referente ao poder outorgado aos primeiros para a emissão de carta arbitral, instituída pelo seu novo art. 22-C. Considerada a ausência de enforcement em mãos do tribunal arbitral este pode tomar medida de tal natureza, diretamente dirigida ao juiz territorialmente competente para que pratique o ato por determinado no curso do processo arbitral. Assim sendo, elimina-se uma instância, que seria a concernente ao pedido do tribunal arbitral ao juiz da comarca onde a arbitragem tem curso o qual, por sua vez, deprecaria ao juízo designado para o cumprimento da referida carta arbitral, eliminando-se custos e ganhando-se tempo.
Como se percebe, a carta arbitral não é um instrumento de diminua a competência do tribunal arbitral, pelo contrário, ela estende os poderes deste.
No final da jornada do processo arbitral é proferida a sentença, extinguindo-se a competência do tribunal arbitral, que remanesce provisória tão somente para responder a eventual pedido de esclarecimentos feito por alguma das partes, que tenha o intuito de pedir a correção de qualquer erro material da sentença; esclareça alguma obscuridade ou contradição; ou, ainda, se pronuncie sobre algum pondo eventualmente omitido (art. 30). Como se sabe a sentença arbitral não abre espaço para recurso segundo o modelo do nosso ordenamento jurídico.
É facultado, por sua vez, à parte interessada, pleitear ao Poder Judiciário a declaração da nulidade da sentença arbitral, comprovada alguma das situações taxativamente enumeradas no art. 32 da LAB (art. 33). Essa prerrogativa decorre, precisamente da inexistência de competência pelo tribunal arbitral de conhecer recurso em tal sentido, na medida do modelo adotado pelo direito brasileiro, não podendo haver prejuízo para a parte interessada que possa ter razão no caso concreto. Esse foi um limite legalmente adotado internamente, em redução da competência privada, que poderia ter sido objeto de solução diversa, e que consolida o processo arbitral, devendo as partes estarem devidamente informadas sobre a inexistência de recurso e das dificuldades para a anulação da sentença arbitral conforme os parâmetros estabelecidos pela LAB. Note-se que nenhum dos casos de nulidade previstos contempla a reforma da arbitragem no plano do mérito, mantendo-se neste ponto a força da autonomia privada.
Finalmente, a LAB trata do reconhecimento e da execução de sentenças arbitrais estrangeiras, naturalmente de competência do Judiciário pátrio na pessoa do STJ.
4. À guisa de conclusão
Conforme se procurou demonstrar neste texto, a autonomia privada na arbitragem está marcada pelo controle episódico do Judiciário, no mais das vezes em coerência com os modelos do direito comparado. Em algumas situação tal intervenção foi o resultado da escolha do legislador, outras em função da estrutura do direito interno, tanto no plano material quanto processual. Aberturas de nível mais aprofundado ou, pelo contrário, a implementação de novas situações de intervenção do Judiciário podem acontecer pelas mãos do legislador, se este entende que o instituto da arbitragem merece alguma correção diante de falhas que tem apresentado. Mas esse é um tema voltado para outra discussão.
1 Sobre o tema vide nosso artigo O “pacta sunt servanda” e a arbitragem, Migalhas de 19.07.2024.
2 Veja-se a respeito nosso “O velho e o novo princípio da intervenção mínima do Estado nos contratos empresariais. Novos parâmetros para a intervenção do juiz”, Migalhas de 16.05.2019.
3 Vide o item 7.7, função social do contrato na obra "Teoria Geral do Contrato - Fundamentos da Teoria Geral do Contrato" (Ed. Dialética, São Paulo, 2022), em coautoria com Rachel Sztajn, itens 7.7. e o artigo dos mesmos autores “A indefinível, impraticável e perigosa função social do contrato na reforma do Código Civil – Agravada a reincidência de um erro”, Migalhas de 18.07.2024.