A recente decisão da Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária de 10/7 de aprovar, de forma apressada, um projeto-piloto para a implantação da bula digital de medicamentos no Brasil tem gerado intensos debates e preocupações. Esse movimento, resultante de uma lei controversa, levanta questões sobre os interesses que estão sendo priorizados e as possíveis consequências para a população. A reunião da Diretoria Colegiada, marcada por peculiaridades, chancelou uma minuta publicada menos de 48 horas antes, inserindo pontos controversos contra a bula impressa de medicamentos dentro da caixa. Dentre esses pontos, destaca-se a possibilidade de reduzir as informações contidas nas bulas impressas e decidir quais serão as informações mínimas necessárias. A seguir, apresento minhas considerações sobre essa decisão.
Fruto do orgulho e indiferença
A decisão de adotar a bula unicamente digital parece ser fruto de um orgulho institucional, uma atitude de "donos da verdade" que ignora a opinião de 85% da população, conforme dados de uma pesquisa recente do Instituto DataFolha. Esta postura revela um desrespeito pela vontade popular e uma decisão tomada de gabinete, alheia às reais necessidades da sociedade. A substituição da bula impressa pela digital não considera as dificuldades enfrentadas por uma parcela significativa da população, incluindo idosos e pessoas com baixa escolaridade ou dificuldades financeiras. Esse grupo depende da bula impressa para obter informações cruciais sobre os medicamentos que consome. Ignorar essa realidade é uma demonstração de intolerância e indiferença para com os mais vulneráveis.
Maledicência e a desinformação
Os defensores da bula unicamente digital argumentam que a medida trará benefícios ambientais, uma vez que reduziria o uso de papel. No entanto, é importante destacar que o papel utilizado para a confecção das bulas é feito a partir de árvores de reflorestamento, sem causar danos ao meio ambiente. Além disso, a decisão parece ser impulsionada por interesses econômicos das indústrias farmacêuticas, que se beneficiariam com a redução de custos de impressão, dobradura e distribuição das bulas. Isso levanta a questão: a quem realmente interessa essa mudança? Certamente não é ao paciente, que pode ficar desinformado e correr riscos à saúde devido à falta de acesso fácil e imediato às informações sobre os medicamentos.
Fragilização do SNCM - Sistema Nacional de Controle de Medicamentos: A real causa da tentativa de acabar com a bula impressa para a população
A decisão de implementar a bula digital também revela a fragilização do SNCM. A lei de 2009, que deveria instituir o SNCM (lei 11.903/09) e criou o SNCM nunca foi plenamente cumprida, sendo que a lei de 2022, a qual introduziu a bula digital, retalhou as previsões originais.
Por que essa lei nunca foi cumprida?
Contexto e obrigações da lei de 2009
A lei de 2009 estabelecia obrigações para os laboratórios farmacêuticos, incluindo a inserção de sinais bidimensionais, como QR Codes, para rastreabilidade em cada caixinha de remédio. Essa lei foi pensada, testada e debatida por mais de dez anos, criando o SNCM, um sistema completo com uma nuvem de dados administrada pela Anvisa. Se implementado corretamente, o SNCM mitigaria a falsificação de remédios, reduziria o roubo de cargas, controlaria estoques nacionais de medicamentos e localizaria os remédios.
Mudanças e controvérsias com o PL 3.846/21
A lei de 2009 deveria ter entrado em vigor em março/12. Após sucessivas prorrogações, já estava previsto vigorar a partir de março/22. Mas, enquanto parte da indústria farmacêutica se adequou, outra parte não o fez. Oportunamente, em novembro de 2021, o PL 3.846/21 foi introduzido, propondo a bula unicamente eletrônica. Este projeto, sugerido e impulsionado pelo deputado federal André Fufuca, justificava a mudança pela facilidade de leitura via QR Code, similar a cardápios de restaurantes, e pela suposta justificativa ambiental contra o uso de papel. O projeto foi votado em regime de urgência e aprovado com pouca discussão, alterando significativamente as obrigações da lei de 2009. A nova lei da bula digital eliminou a necessidade de serialização das caixinhas de remédio e a nuvem de dados da Anvisa, favorecendo economicamente a indústria farmacêutica que resistia às mudanças.
Impactos para os consumidores e sistema de saúde
A adoção da bula digital levanta preocupações sobre o acesso à informação, especialmente para idosos e pessoas sem recursos tecnológicos. A justificativa ambiental para a bula digital é completamente falsa, pois o papel das bulas é produzido a partir de árvores de reflorestamento, sem danos ambientais. A mudança também transfere a responsabilidade da acessibilidade da bula para farmácias e consumidores, aumentando os riscos para a saúde pública. A lei aprovada possui ambiguidades que podem facilitar a transição total para a bula digital, sem garantir o direito do consumidor à informação completa e acessível.
Em suma...
A implementação da bula digital, como prevista na nova lei, representa uma manobra conveniente para alguns setores da indústria farmacêutica, diminuindo suas obrigações e potencialmente prejudicando os consumidores. A manutenção da bula impressa é essencial para assegurar o acesso à informação e proteger a saúde dos pacientes. É crucial que as decisões regulatórias priorizem o bem-estar da população e a transparência no controle de medicamentos.
Abaixo o escopo que o SNCM previa1:
A promessa de um sistema robusto de rastreabilidade dos medicamentos se perdeu em algum lugar do futuro, deixando o controle e a transparência do setor em uma nuvem de incertezas.
Realidade por trás dos oito pilares
O diretor da Anvisa, Daniel Pereira, justificou a decisão com "oito pilares", uma tática semelhante à usada pela diretora Meiruse Sousa Freitas na reunião de 6/12/23. No entanto, essas justificativas parecem ser apenas palavras vazias que reforçam os interesses econômicos das indústrias farmacêuticas em detrimento da saúde pública. A própria Consulta Pública realizada pela Anvisa mostrou que a maioria da população é favorável à manutenção da bula impressa, mas essa vontade foi desconsiderada. Pergunto: para que realizam consultas públicas se o seu resultado soberano o não é respeitado?!?
Além disso, em meio a uma longa sessão de autoelogios e justificativas não pertinentes, o diretor Daniel repetiu a retórica da diretora Meiruse, citando exemplos de países de primeiro mundo, como Japão, Austrália, Luxemburgo e Singapura, onde a bula digital poderá substituir as impressas dentro das caixas. No entanto, ele ignorou as diferenças populacionais, estruturais e desenvolvimento entre esses países e o Brasil. Uma realidade totalmente distinta!
Ganância e indiferença
A decisão de adotar a bula unicamente digital reflete uma ganância desmedida, onde o lucro é priorizado a qualquer custo, mesmo que isso signifique pisar na cabeça dos consumidores e ignorar instituições como o Ministério Público, Idec, Procon, o Conselho Nacional de Saúde e a Defensoria Pública da União. A indiferença em relação aos riscos à saúde da população, especialmente dos mais velhos e dos profissionais de saúde, é alarmante. A cada nova resolução, uma nova armadilha é criada, preparando um futuro incerto e perigoso para os pacientes brasileiros.
Conclusão: Um bolo amargo para os pacientes servido no prato de um SNCM fragilizado
Apesar de tudo, ainda há esperança de que o projeto piloto se esvaia pela própria insanidade ou pela atuação de outros órgãos responsáveis pela saúde no Brasil. No entanto, é necessário estar atento, pois o projeto-piloto possui várias fases que, se bem-sucedidas em ambientes controlados, poderão ser expandidas. A lógica desse jogo de regras não abre espaço para contestação, culminando na extinção da bula impressa de medicamentos nas caixas em detrimento do direito à informação da população. Lembrando que, neste projeto-piloto, em 60 dias, o risco já estará potencializado pois agentes de saúde e hospitais, entre outros, já receberão caixas de remédio sem a bula impressa, dependendo única e exclusivamente da tecnologia para acesso.
A proposta de que aqueles que quiserem a bula impressa poderão solicitá-la não resolve o problema de acessibilidade e coloca mais um fardo sobre os consumidores e estabelecimentos comerciais, como farmácias. Este cenário reflete um movimento que parece priorizar interesses econômicos sobre a saúde pública, culminando em um potencial retrocesso nos direitos dos pacientes. Receber a bula após pedido na farmácia nos remete à canção de Jorge Ben Jor: a bula "vai chegar num envelope azul índigo". Contudo, lembrando nossa MPB, a “festa de arromba”, de passar a obrigação de obtenção de informações do laboratório para farmácias, hospitais, pacientes e consumidores pode não ser tão festiva para a saúde pública brasileira.
Em suma, a decisão da Anvisa de adotar a bula unicamente digital é um "bolo amargo" que será mal servido aos doentes do Brasil. Em nome de uma verdade egoísta e interesses econômicos, a agência tem ignorado a vontade popular e os riscos à saúde pública. É imperativo que essa decisão seja reavaliada, garantindo que a saúde e o bem-estar da população sejam prioritários e que a bula impressa continue sendo uma fonte acessível e segura de informação para todos.
O pulso ainda pulsa!
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1 Disponível em: https://www.pwc.com.br/pt/consultoria-negocios/operacoes/serializacao-e-rastreabilidade-de-medicamentos.html