Migalhas de Peso

Os Tribunais de Contas estão aplicando retroativamente as regras sobre prescrição?

Tribunais de Contas, como o TCE/PE, aplicam nova lei sobre prescrição retroativamente, beneficiando jurisdicionados em casos de pretensões punitivas e de ressarcimento.

14/7/2024

No dia 1/5/24, por meio da lei Estadual 18.527/2024, o Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco incluiu em sua Lei Orgânica regras sobre a prescrição quinquenal das pretensões punitivas e de ressarcimento e sobre prescrição trienal intercorrente.

Além do TCE/PE, passaram a recentemente possuir regras expressas sobre prescrição (por meio de alterações na Constituição Estadual, previsões em Leis ou edição de normativos internos) o TCU; o TCM/SP; o TCE/CE; o TCE/MA; o TCE/PA; o TCM/PA; o TCE/PB; o TCDF, o TCM/GO; o TCE/AM; TCE/PI e o TCE/SC.

Diante de tal realidade, que é bem recente no âmbito dos Tribunais de Contas, fica a dúvida: os órgãos de controle externo estão fazendo uso da retroatividade da lei mais benéfica para aplicar as novas regras de prescrição em benefício dos seus jurisdicionados?

Bom, conforme se pode ver abaixo, no TCE/PE tivemos duas decisões (uma da primeira, outra da segunda câmara, mas ambas relatadas pelo mesmo Conselheiro-Substituto) aplicando a retroatividade benigna das novas normas sobre prescrição para fulminar as pretensões punitivas e de ressarcimento:

“1. As pretensões punitivas e de ressarcimento decorrentes do exercício de controle externo pelo Tribunal de Contas prescrevem em 5 anos, contados a partir da data: (I) do vencimento do prazo para a apresentação da prestação de contas ao Tribunal de Contas, no caso de omissão de prestação de contas; (II) da apresentação da prestação de contas final ao órgão competente para a sua análise inicial; (III) do conhecimento da irregularidade ou dano quando forem constatados em fiscalização realizada pelo Tribunal de Contas, pelos órgãos de controle interno, pela própria Administração, por denúncia ou por representação, desde que, da data do fato, não se tenha ultrapassado o prazo de 5 anos; e, (IV) da cessação do estado de permanência ou de continuidade, no caso de irregularidade permanente ou continuada (art. 53-B, incisos I, II, III e IV, da lei Estadual 18.527/24). 2. Incide a prescrição intercorrente no processo que ficar paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento, despacho ou manifestação, sem prejuízo da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso (art. 53-E, da lei Estadual 18.527/24)” (TCE/PE, Acórdão 895/24 – Primeira Câmara, Processo TCE-PE 15100376-2, relator: conselheiro-Substituto Marcos Flávio Tenório de Almeida)

“As pretensões punitivas e de ressarcimento decorrentes do exercício de controle externo pelo Tribunal de Contas prescrevem em 5 anos, contados a partir da data do conhecimento da irregularidade ou dano quando forem constatados em fiscalização realizada pelo Tribunal de Contas, pelos órgãos de controle interno, pela própria Administração, por denúncia ou por representação, desde que, da data do fato, não se tenha ultrapassado o prazo de 5 anos, nos termos do art. 53-B, inciso III, da lei Estadual 18.527/24” (TCE/PE, Acórdão 944/24 – Segunda Câmara, Processo TCE-PE 1407957-4, relator: conselheiro-Substituto Marcos Flávio Tenório de Almeida)

Em ambos os casos, e a questão ainda está em debate naquela Corte de Contas, vê-se que o que retroagiu foram as regras sobre a prescrição quinquenal, não tendo havido, até o presente momento, uma decisão aplicando retroativamente as regras sobre prescrição intercorrente.

Neste particular, a prescrição intercorrente aparenta ser mais “problemática” pelo fato de que nela, o fato de o processo ficar paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, abre margem para a responsabilização “funcional decorrente da paralisação” a incidir sobre o agente público (e aqui utilizaremos como padrão a norma do TCU, no caso, o art. 8º da Resolução TCU 344/22).

A preocupação seria a de punir alguém com base numa norma de conduta até então inexistente, vez que, caso o agente público soubesse que a prescrição trienal redundaria em sua responsabilização, é presumível que ele envidaria esforços em promover o impulsionamento da marcha processual.

Bom, não nos parece ser tal preocupação motivo suficiente para os Tribunais de Contas deixem de aplicar retroativamente as regras sobre prescrição intercorrente para beneficiar seus jurisdicionados vez que, como bem se sabe, o vetor jurídico extraído do brocardo latino Nullum Crimen, Nulla Poena Sine Previa Lege - e que, no ordenamento jurídico brasileiro é uma projeção do princípio da legalidade na esfera penal previsto tanto na CF/88, quando no Código Penal - certamente impediria a responsabilização do agente público na hipótese descrita no parágrafo anterior.

E, analisando a jurisprudência do TCU, do TCM/SP, do TCE/PA, do TCE/PB, do TCDF e do TCE/AM, verifica-se que, de fato, ao aplicarem de forma retroativa regras sobre prescrição intercorrente, a preocupação alhures ventilada sequer foi objeto de debate, conforme se pode ver a seguir:

“O transcurso de mais de três anos sem a prática de ato que evidencie o andamento regular do processo ou que interfira de modo relevante no curso das apurações implica a incidência da prescrição intercorrente, que atinge as pretensões punitiva e ressarcitória do TCU” (art. 1º, §1º, da lei 9.873/99 c/c art. 8º, caput e §1º, da Resolução TCU 344/22) (TCU, Acórdão 2381/22 - Plenário, relator: Benjamin Zymler)

“Deve-se reconhecer a prescrição intercorrente se o processo ficar paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho. Art. 9º, Res. TCMSP 10/23” (TCM/SP, Processo TC/005338/04)

“1. A prescrição principal (quinquenal) se difere, em finalidade e em alcance, da prescrição intercorrente. Enquanto a prescrição principal opera em favor do responsável e contra o órgão julgador, a fim de obrigar o julgamento dentro de um limite temporal razoável (cinco anos) em atenção à segurança jurídica, a prescrição intercorrente ocorre em caso de paralisação do processo, quando descumpridos o dever de impulso processual e a razoável duração do processo por parte do órgão de controle. Assim, os dois institutos prescricionais, embora semelhantes na obrigação de um atuar célere e contínuo, não se confundem. 2. O STF, na ADI 5.509/CE, tratou à exaustão o tema relacionado à aplicação da prescrição no âmbito dos Tribunais de Contas e consolidou seus precedentes para reafirmar a aplicação da lei 9.873/99 à matéria, reconhecendo que, em questão prescricional, aos processos que tramitam no âmbito dos Tribunais de Contas se aplicam as regras do processo administrativo, bem como ratificou, nesse julgamento, que as regras prescricionais dos Tribunais de Contas dos demais entes da federação deveriam guardar simetria com o TCU. 3. Por se tratar de matéria de ordem pública, não é cabível, no âmbito deste Tribunal de Contas, aplicar regras prescricionais de forma destoante ao que consolidado no âmbito da ADI 5509/CE, notadamente por estar-se diante de aplicação subsidiária da Resolução 344/22 do TCU, de modo que não resta possível a aplicação do entendimento segundo o qual a prescrição intercorrente não se opera antes da consumação da citação. 4. O transcurso de mais de três anos sem a prática de ato que evidencie o andamento regular do processo ou que interfira de modo relevante no curso das apurações implica a incidência da prescrição intercorrente, que atinge a pretensão punitiva e ressarcitória, com base no que dispõe a Resolução 344/22 do TCU, o que conduz ao arquivamento do processo” (TCE/PA, Acórdão 64.582, Processo TC/505491/2013)

“Decurso de lapso superior a 3 anos entre a formalização do processo e a primeira manifestação técnica. Ausência de outras causas interruptivas ou suspensivas do prazo prescricional. Reconhecimento e Declaração da prescrição intercorrente. Arquivamento” (TCE/PB, Acórdão AC1-TC 0.0270/24, Processo TC-08.815/17)

“Tomada de contas especial – TCE instaurada com o objetivo de apurar possíveis prejuízos ao erário em decorrência da inexecução do projeto de infraestrutura para a construção da quadra poliesportiva coberta em Santa Maria, por meio do Contrato 7/01, celebrado entre a Secretaria de Estado de Esporte do Distrito Federal – SESP/DF e a empresa ENEPLAN – Engenharia e Empreendimentos Imobiliários Ltda. Decisão 2.096/20. Citação. Nesta Fase: Unidade Técnica pugna pelo reconhecimento da prescrição intercorrente, ocorrida na fase interna da TCE e arquivamento dos autos. Cota adicional do Secretário de Contas. Reconhecimento da prescrição intercorrente e arquivamento ou, alternativamente, pela citação por edital de um dos responsáveis. Parecer divergente. Pelo não reconhecimento e não ocorrência da prescrição intercorrente no âmbito do controle externo e pela citação por edital do responsável. Voto. Convergente com a Unidade Técnica. Pelo reconhecimento da prescrição intercorrente e arquivamento dos autos” (TCDF, Decisão 3181/2023, Processo 15.359/19)

“EMENTA: Prestação de Contas referente ao Termo de Convênio 10/16. Reconhecimento da prescrição. Arquivamento. Ciência. 8- ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos estes autos acima identificados, ACORDAM os Excelentíssimos Senhores Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Amazonas, reunidos em Sessão da Primeira Câmara, no exercício da competência atribuída pelo art. 11, inciso IV, alínea "i", da Resolução 4/02-TCE/AM, a unanimidade, nos termos do voto do excelentíssimo senhor conselheiro-relator, em consonância com pronunciamento do Ministério Público junto a este Tribunal, no sentido de: 8.1. Reconhecer a prescrição intercorrente das pretensões punitiva e ressarcitória desta Corte de Contas, com fulcro no §4º do art. 40 da Constituição do Estado do Amazonas, c/c § 1º do art. 1º da lei Federal 9.873/99” (TCE/AM, Acordão 2.038/23, Processo 10550/20)

Outra questão que passou ao largo de quaisquer considerações nas decisões dos Tribunais de Contas que empregaram a retroatividade benigna para aplicar as regras de prescrição intercorrente foi o posicionamento do STF no julgamento do Tema 1.199.

Ali, ao se apreciar a constitucionalidade das alterações na Lei de Improbidade Administrativa, restou decidido pela Suprema Corte que “o novo regime prescricional previsto na lei 14.230/21 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei”.

Veja, antes do julgamento do Tema 1.199 pelo STF, o STJ possuía entendimento no sentido de ser aplicável o princípio da retroatividade da norma penal mais benéfica no âmbito dos processos submetidos ao regime do direito administrativo sancionador, conforme se verifica, por exemplo no RMS 37.031/SP.

E, mesmo após o julgamento do Tema 1.199 pelo STF em 18/8/22, há entendimentos do STJ (no caso o proferido no AgInt no AgREsp 2.183.950/RJ) no sentido de que “a norma sancionadora, inclusive de natureza administrativa, pode retroagir para beneficiar o infrator”.

Mas, voltando ao julgamento do Tema 1.199 pelo STF, cabem os seguintes alertas feitos pelo Professor Anderson Pedra1: “se trata de um julgamento controverso ocorrido em um momento de delicada conjuntura política, com uma votação dividida (6 x 5) e que foram apresentados fundamentos múltiplos em cada um dos votos, tanto pela irretroatividade quanto pela retroatividade, inclusive quanto à extensão dos efeitos” e ainda que “não é demais frisar que o Tema 1.199 foi cunhado objetivando resolver a celeuma da (ir)retroatividade da lei 14.230/21 que alterou a lei 8.429/92 (lei de improbidade administrativo) e que adotou os seguintes vetores conforme destacado no voto do relator min. Alexandre de Moraes: ‘Na presente hipótese, portanto, para a análise da retroatividade ou irretroatividade não da norma mais benéfica trazida pela lei 14.230/21 – revogação do ato de improbidade administrativa culposo – o intérprete deverá, obrigatoriamente, conciliar os seguintes vetores: (1) A natureza civil do ato de improbidade administrativa definida diretamente pela Constituição Federal; (2) A constitucionalização, em 1988, dos princípios e preceitos básicos, regras rígidas de regência da Administração Pública e responsabilização dos agentes públicos corruptos, dando novos contornos ao Direito Administrativo Sancionador (DAS); (3) A aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador ao sistema de improbidade administrativa por determinação legal; (4) Ausência de expressa previsão de ‘anistia gera’ aos condenados por ato de improbidade administrativa culposo ou de ‘retroatividade da lei civil mais benéfica’; (5) Ausência de regra de transição”.

De tal sorte, mesmo que não mencionado pelos Tribunais de Contas quando da aplicação da retroatividade benigna das suas novas regras sobre prescrição, o julgamento do Tema 1.199 pelo STF não nos parece, pelo que até aqui foi exposto, um óbice válido para vedar a aplicação retroativa de normas prescricionais mais benéficas aos jurisdicionados dos órgãos de controle externo.

Posto isso, respondemos à pergunta do título afirmando que os Tribunais de Contas estão acertadamente aplicando de forma retroativa as suas novas regras sobre prescrição para beneficiar seus jurisdicionados.

------------------------

1 Pedra, Anderson, A nova lei de licitação e a (im)possibilidade de conjugação dos regimes sancionatórios à luz do Direito Administrativo sancionador, ONLL Observatório da Nova Lei de Licitações, 17.04.2024. Disponível na internet: https://www.novaleilicitacao.com.br/2024/04/17/nova-lei-de-licitacao-e-impossibilidade-de-conjugacao-regimes-sancionatorios-direito-administrativo-sancionador/ acesso em 09/07/2024.

Aldem Johnston Barbosa Araújo
Advogado em Mello Pimentel Advocacia. Membro da Comissão de Direito à Infraestrutura da OAB/PE. Especialista em Direito Público.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Partilha de imóvel financiado no divórcio

15/7/2024

Inteligência artificial e Processo Penal

15/7/2024

Você sabe o que significam as estrelas nos vistos dos EUA?

16/7/2024

Advogado, pensando em vender créditos judiciais? Confira essas dicas para fazer da maneira correta!

16/7/2024

O setor de serviços na reforma tributária

15/7/2024