“Direito Administrativo do Medo”1 não é uma expressão de efeito. Sintetiza a realidade dos agentes públicos brasileiros. A inovação e a criatividade são solapadas pela incerteza de como serão vistas pelos órgãos de controle, num futuro que pode ser muito distante. Ousar é uma temeridade quase inexplicável.
O resultado é conhecido: a paralisia administrativa. Sua manifestação mais evidente é a terceirização da função de resolver problemas. A opção segura é sempre aguardar que alguém nos determine o que fazer. Repetir timidamente o passado e esperar uma ordem em outro sentido é sempre o melhor caminho. Não importa que os problemas se ampliem, que juros se acumulem ou que os cidadãos permaneçam desatendidos. Não interessa a frustração da eficiência. A ineficiência é de todos, a ousadia é individual. Dizia-se que ninguém jamais foi demitido por comprar uma IBM.
Não é de hoje que esse estado de coisas vem sendo questionado. Em 2018, um grande avanço legislativo foi a reforma da LINDB, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Dez novos dispositivos pretenderam dar segurança aos agentes públicos impondo balizas à atividade de controle. Outras iniciativas foram na mesma direção. A Lei de Mediação, de 2015, estabeleceu disciplina clara para a autocomposição e a mediação, inclusive na Administração Pública. Seu artigo 40 é modelar: “[o]s servidores e empregados públicos que participarem do processo de composição extrajudicial do conflito, somente poderão ser responsabilizados civil, administrativa ou criminalmente quando, mediante dolo ou fraude, receberem qualquer vantagem patrimonial indevida, permitirem ou facilitarem sua recepção por terceiro, ou para tal concorrerem”. A partir de uma regra como essa, nenhum agente público de boa-fé deveria ter qualquer temor em resolver litígios do modo mais eficiente e célere. Sem receber ou facilitar o recebimento de vantagem patrimonial indevida, ninguém deveria temer ser responsabilizado civil, administrativa ou criminalmente.
Mas a realidade é outra. Os avanços normativos não bastaram para acabar com as obras paralisadas ou com a multiplicação insustentável de litígios envolvendo a Administração Pública. Não resolveram os impasses nas concessões complexas. Não permitiram que os efeitos da pandemia da Covid-19 deixassem de continuar a afetar os serviços públicos no Brasil. Mudar a lei não resolveu porque o problema não era normativo, mas prático.
Foi nesse contexto que o Tribunal de Contas da União (TCU) adotou uma das iniciativas recentes mais revolucionárias no caminho da concretização do consensualismo.
Na teoria, todos são a favor do consensualismo. Não há como ser contra. Sempre é melhor que as coisas se resolvam sem litígio, mediante a consideração adequada de todos os interesses em jogo. Mas a prática do consensualismo implica a liberdade para, com responsabilidade, resolver problemas mediante concessões recíprocas. Não é consensualismo a mera adesão a uma decisão unilateral imposta por uma das partes. O núcleo do consensualismo é a substituição da imposição unilateral pela construção conjunta do caminho mais satisfatório. Não se pode ser a favor do consensualismo e contra os mecanismos para a sua realização efetiva.
No final de 2022, o TCU percebeu que, se a grande trava para a realização efetiva do consensualismo era o temor dos órgãos de controle, a única solução possível era aproximar as fases de controle e de consenso. A estrutura tradicional não servia por uma razão simples: não haveria o que se controlar, pois o consenso não seria jamais atingido para ser posteriormente controlado. A insegurança o bloqueava antes mesmo de existir. Com isso, medidas eficientes, legítimas, fundamentais para o progresso e apoiadas por todos os envolvidos permaneciam dormentes.
A experiência iniciada com a Instrução Normativa 91/22, depois atualizada pela Instrução Normativa nº 97/2024, foi um estrondoso sucesso. A SecexConsenso foi estruturada para coordenar as negociações entre os envolvidos em cada litígio, mediante processo estruturado e célere. Já são dezenas de casos em andamento ou resolvidos, em diversos setores – notadamente litígios complexos, que se arrastavam há anos e, na maioria, em áreas de infraestrutura. O que é igualmente significativo: vários casos foram extintos sem acordo. Talvez essa seja a demonstração mais eloquente da liberdade com que as partes do litígio se veem sob a mediação da SecexConsenso. Nem os entes administrativos nem os particulares se constrangem, pela mera presença do TCU, em concluir pela inexistência de consenso e encerrar a discussão.
De modo mais limitado e menos institucionalizado, experiências similares existiam em diversos Tribunais de Contas dos estados por meio das chamadas “mesas técnicas” e dos termos de ajustamento de gestão (TAG). O protagonismo do TCU na promoção das soluções consensuais amplificou a visibilidade dessas iniciativas. Vários Tribunais de Contas estaduais já contam com regulamentações similares para colaborar com a realização do consensualismo também no âmbito de suas competências.
A partir da Constituição de 1988, uma série de fatores impulsionaram o papel do TCU na vida administrativa brasileira. Tornou-se a principal referência para a orientação da conduta da Administração Pública. Por isso, uma iniciativa como a SecexConsenso é tão relevante. Além de efetivamente destravar negócios, resolver problemas e promover a construção criativa de soluções talvez até então impossíveis em outro ambiente, o TCU estabelece um exemplo e um modelo.
Os frutos já estão aí.2 Em 21.12.2023, a ANTT e a Procuradoria Federal junto à ANTT editaram a Instrução Normativa Conjunta nº 1 criando a Câmara de Negociação e Solução de Controvérsias (COMPOR), destinada a promover soluções consensuais no âmbito da sua esfera de atuação.3 Em julho de 2024, a AGU editou portaria que institui a Plataforma de Autocomposição Imediata e Final de Conflitos Administrativos (PACIFICA). O Decreto 12.091, também de julho de 2024, criou a Rede Federal de Mediação e Negociação (RESOLVE) – uma rede de mecanismos de solução consensual. Todos esses atos revelam uma profunda compreensão dos instrumentos de solução extrajudicial de conflitos, notadamente os autocompositivos. É significativo, por exemplo, que o Decreto 12.091 reconheça (de modo preciso) a confidencialidade como um princípio da mediação mesmo quando a Administração Pública esteja envolvida.
Cada vez mais o Brasil se aproxima de um ambiente que efetivamente prestigie a prevenção e a solução dos conflitos, não a sua eternização inercial e temerosa. As realizações e o exemplo do TCU e da SecexConsenso não podem ser colocados em risco.4 O caminho está no início e o progresso até agora acumulado é importante, promissor, mas delicado. Os esforços devem dirigir-se à implementação de aprimoramentos, não ao abandono dos mecanismos de consenso que já se mostram eficazes. O Brasil não pode dar-se ao luxo de retroceder.
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1 A expressão foi consagrada em SANTOS, Rafael Valgas dos. Direito administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.
2 Ver também, sobre o assunto: PEREIRA, Cesar. Mediação com a administração pública na Lei 14.133. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 78, p. 359-381, 2023.
3 Merece destaque o fato que, pouco após sua instituição, a Compor aprovou em maio de 2024, o primeiro acordo, entre a agência e a Via Eco 050, conforme divulgado em: Notícias ANTT. ANTT aprova primeiro acordo na Câmara COMPOR com a Via Eco 050. Disponível em: . Acesso em: 11 de julho de 2024.
4 JUSTEN FILHO, Marçal. O consensualismo é consenso: em defesa da SECEXConsenso. Migalhas (11 de julho de 2024). Disponível em: . Acesso em: 11 de julho de 2024.