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O consensualismo é consenso: em defesa da SECEXConsenso

O modelo de solução consensual no âmbito do TCU configura uma evolução marcante e muito positiva na gestão pública brasileira.

11/7/2024

A adoção de soluções consensuais no âmbito da atividade administrativa tem sido uma orientação genérica na doutrina.1 As concepções napoleônicas de gestão pública vêm sendo contestadas desde há muito. O enfoque tradicional da indisponibilidade e da supremacia do interesse público se tornaram superados em vista da tutela aos direitos fundamentais dos particulares. Em suma, um regime democrático incentiva e incorpora a participação dos agentes privados na produção de decisões estatais.

A defesa do consensualismo como modelo de gestão pública decorre não apenas de fatores ideológicos. Também resulta do reconhecimento da inviabilidade de a Administração dominar o conhecimento necessário à construção das soluções mais eficientes e satisfatórias. E da constatação de que soluções consensuais reduzem a conflituosidade e merecem adesão e cumprimento voluntário por parte dos agentes privados. Portanto, a alocação mais eficiente dos recursos econômicos da sociedade pode ser obtida mediante a atuação concertada dos diversos setores da sociedade.

O consensualismo tornou-se ainda mais relevante em vista de contratações administrativas de longo prazo, relacionadas à implantação, ampliação e gestão de infraestruturas de interesse coletivo. No passado, reputava-se que cabia ao edital disciplinar, de modo exaustivo e minucioso, todas as regras pertinentes ao relacionamento entre Poder Público e setor privado durante o prazo de vigência do contrato. Assim, contratos com prazo de vigência de dezenas de anos deviam observar, de modo muito rigoroso, as regras contempladas no edital. Lembre-se que, mesmo nessa época, admitia-se a alteração contratual por ato unilateral da Administração Pública ou mediante consenso entre as partes.  

Mas o próprio pensamento econômico reconheceu que tais contratações se caracterizam como incompletas. Isso significa que é impossível o contrato estabelecer regras minuciosas e suficientes para dispor sobre o relacionamento entre as partes. A dinâmica da realidade e as variações atinentes a objetos contratuais com essa natureza exigem reavaliação constante entre as partes quanto às soluções mais eficientes e satisfatórias para a execução do objeto contratual. Toda a doutrina administrativista brasileira vem-se inclinando nesse sentido. A procedência do enfoque tornou-se ainda mais evidente em vista da experiência da COVID-19, que conduziu à desestruturação da generalidade das contratações administrativas de longo prazo.

O aspecto central reside, portanto, não mais na aspiração de completude, perfeição e satisfatoriedade do modelo contratual originalmente concebido pela Administração, mas de incorporar soluções procedimentais de readequação da disciplina contratual em vista da variação das circunstâncias. Trata-se de admitir que a própria iniciativa privada colabore para a modelagem da contratação.2

É indispensável que o próprio contrato preveja mecanismos para eliminar deficiências identificadas posteriormente à sua pactuação e assegure a incorporação de medidas necessárias e adequadas à implementação de soluções justas para ambas as partes. Isso envolve, como é evidente, a negociação entre Poder Público e agentes privados, visando atingir uma decisão de comum acordo.

Pode-se reputar que a exposição acima reflita o posicionamento da generalidade da doutrina de direito administrativo brasileiro. Ressalvadas algumas diferenças de relevância secundária, todos os especialistas admitem a relevância do consensualismo como modelo inafastável para a gestão dos contratos administrativos, especialmente aqueles de longo prazo.

Ocorre que esse enfoque não foi integralmente incorporado no âmbito da Administração Pública. Mais precisamente, a recepção pelo setor público dessas concepções encontra-se ainda em uma etapa inicial.

Nesse contexto, o Estado brasileiro começou a se deparar, especialmente a partir de 2014, com contratações de longo prazo, modeladas segundo o enfoque tradicional, cuja execução se tornou inviável. Esses contratos envolviam os mais diversos setores (tal como portos, rodovias, aeroportos, energia, telecomunicações). Os impasses decorriam de causas variadas. Em muitos casos, a concepção original adotada pela Administração tornou-se incompatível com a realidade da evolução dos fatos. Em outros, os agentes privados haviam formulado projeções muito otimistas quanto à evolução socioeconômico brasileira. Houve casos em que a Administração deixou de cumprir as obrigações contratualmente assumidas, comprometendo a viabilidade dos projetos privados.

O resultado prático foi a multiplicação de litígios, nas mais diversas órbitas, a paralisação de investimentos privados e a insuficiência de serviços de interesse coletivo indispensáveis para o desenvolvimento nacional.

Essa situação conduzia à evidência da necessidade de soluções consensuais. A superação dos impasses apenas poderia ser atingida mediante a renegociação dos contratos, com a alteração das concepções originalmente adotadas e a implementação de novas soluções contratuais.

No entanto, o problema era o temor generalizado da Administração Pública quanto às implicações de soluções negociadas. A experiência concreta demonstrava que qualquer iniciativa de agentes públicos de renegociar as condições originais de um contrato administrativo resultariam provavelmente na responsabilização pessoal dos envolvidos – inclusive no âmbito penal.

A alternativa mais satisfatória foi proporcionada pelo Tribunal de Contas da União, por meio da Instrução Normativa TCU nº 91/2022. O TCU aprovou um modelo de solução consensual de conflitos, em que a renegociação promovida entre as partes seria por ele próprio acompanhada. A renegociação passou a ser realizada no âmbito do TCU. Isso impedia práticas antiéticas e a imputação de desvios relativamente às partes envolvidas. Atingido o consenso e superados os conflitos, a solução é submetida ao plenário do TCU.

A adequação do modelo introduzido pelo TCU conduziu à multiplicação de pedidos de mediação. Questões extremamente complexas, muitas delas em trâmite há muitos anos, foram encaminhadas ao TCU. A atuação do TCU evidenciou-se como extremamente ágil, especialmente em vista da dedicação e do comprometimento dos servidores do TCU alocados na SecexConsenso.

Esse é o contexto a ser considerado em vista de críticas dirigidas ao modelo.3 A rejeição ao modelo de soluções consensuais não é acompanhada de qualquer proposta alternativa. Não existe nenhuma cogitação quanto ao destino a ser dado aos impasses existentes, às arbitragens em curso, aos processos judiciais intermináveis. Não significa negar a possibilidade de aperfeiçoamento do modelo. Mas, até o presente, o procedimento de Solicitação de Solução Consensual, tal como concebido e aplicado pelo TCU, afigura-se como a resposta jurídica mais adequada para a superação de problemas que, por outra via, se apresentavam como insolúveis.

Enfim e para concluir, uma solução consensual que se revele como satisfatória para a Administração Pública e para os agentes privados não se encontra eivada, de modo necessário e intrínseco, de defeito ético. Um conluio somente se configura quando existirem benefícios indevidos e reprováveis, obtidos ao menos por uma das partes.

Nem existe vício em uma solução que implique a redução de vantagens asseguradas originalmente a quaisquer das partes. A solução consensual se traduz precisamente em concessões recíprocas, em que a renúncia a um benefício potencial é compensada pela eliminação de pretensões da outra parte.

Para concluir, o modelo de solução consensual no âmbito do TCU configura uma evolução marcante e muito positiva na gestão pública brasileira. Espera-se que o aperfeiçoamento atinja a própria modelagem dos futuros contratos, de modo a superar impasses que as concepções tradicionais produziram no passado.4

____________

1 Nesse sentido, confiram-se Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo. 36. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2024, p. 66; Irene Patrícia Diom Nohara. Direito administrativo. 3. ed. Barueri (SP): Atlas, 2024, p. 25; e Vitor Rhein Schirato; Juliana Bonacorsi de Palma. Consenso e legalidade: vinculação da atividade administrativa consensual ao Direito. Revista Brasileira de Direito Público (RBDP). Belo Horizonte: Fórum, 2009, out./dez., pp. 67-93.

2 Nesse sentido, a ampliação do prestígio da figura do Procedimento de Manifestação de Interesse – PMI e do diálogo competitivo, inovações marcantes da Lei 14.133/2021. 

3 A questão foi objeto de uma extensa reportagem da Revista Piauí, denominada “Vai, Bruno!”, edição 214, Julho de 2024.

4 O autor reputa relevante revelar que forneceu, mediante remuneração, parecer favorável à instauração de uma Solicitação de Solução Consensual conduzida perante o TCU. Ademais, o escritório a que se vincula atuou em um dos casos em que foi atingida uma solução consensual para litígio extremamente relevante e ainda atua em pelo menos outro caso. Essas considerações em nada afetam a imparcialidade do autor para avaliar o tema. Aliás, o autor tem defendido concepção favorável ao consenso desde 2002. Confira-se O Direito das Agências Reguladoras Independentes. São Paulo: Dialética, 2002. Na primeira edição de seu Curso de Direito Administrativo (São Paulo: Saraiva, 2005), o tema também foi tratado de modo explícito, tal como vem se sucedendo nas sucessivas edições posteriores.

Marçal Justen Filho
Mestre e doutor em Direitodo Estado pela PUC/SP. Sócio da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados.

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