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Reflexões sobre o sistema de justiça criminal a partir do filme “Anatomia de uma Queda”

O filme "Anatomia de uma Queda" explora a complexidade da advocacia criminal, mostrando que a verdade é multifacetada e o julgamento pode revelar diferentes narrativas sobre um mesmo evento.

5/7/2024

Somos advogados criminais e logo que contamos o nosso trabalho, se dermos sorte, ouvimos coisas como: “jamais conseguiria”, “deve ser muito difícil lidar” e “o ambiente deve ser horrível”. Se dermos azar de encontrar alguém não tão fã das garantias do processo penal (até que delas precise), o tom passa para uma espécie de Tribunal do Júri. A questão é, seja qual for o destino dessa conversa, parece-nos que presumem que passamos a maior parte das nossas horas visitando serial killers em cadeias, bem como tentando absolver esses tais monstros (que são sempre culpados, já que estão sendo acusados).

Todavia, o filme “Anatomia de uma Queda” revela muito melhor o contexto da advocacia criminal. Embora retrate um processo criminal na França, com uma ré alemã, e se trate de uma obra ficcional, há correspondência suficiente com a realidade brasileira para servir de reflexão. Isso porque os casos de criminosos abomináveis em série são uma exceção. Na maioria das vezes, quanto mais nos aproximamos dos fatos, mais difícil de resumir um ser humano à pecha de bandido(a). O longa dirigido por Justine Triet nos mostra isso, ao mesmo tempo que nos provoca a sensação de sermos jurados(as) do caso, é realmente um duplo movimento fascinante.

Em resumo, com a culpa do spoiler, a história retrata a investigação e julgamento da morte de Samuel, em que Sandra, sua esposa, é acusada como possível responsável. No começo da história, as informações são escassas. Assim como o público, Daniel, o filho do casal, uma criança de 11 anos com deficiência visual, descobre apenas no julgamento uma realidade da qual, até então, era protegido por seus pais: Conflitos, questões de saúde mental, vícios e imperfeições de seus genitores, chegando a desconfiar que sua mãe poderia ser a assassina de seu pai.

Durante o processo, a vida da família é escrutinada, mas, nem por isso, os jurados conseguem ter certeza quanto à resposta para as perguntas que movem a trama: Samuel cometeu suicídio, se jogou do sótão de casa ou foi assassinado com um golpe na cabeça e jogado da sacada? Em verdade, a certeza que fica é apenas que a “realidade” é complexa e multifacetada, podendo ser explorada e distorcida de inúmeras formas em um julgamento. A própria acusada alude a essa ideia em vários momentos, dizendo, por exemplo, que uma briga não pode definir todo o seu casamento.

Não há uma verdade clara, e diferentes narrativas podem ser construídas a partir dos mesmos eventos, basta pinçar fatos e apresentá-los de forma coerente. Como escreveu Carlos Drummond de Andrade no poema Verdade, “A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade”. 1

Nesse movimento, a acusação explora a intimidade de Sandra e do casal, tudo para “provar” que ela é culpada. Chega a ler trechos de livros de ficção escritos pela acusada, bem como a mencionar a sua bissexualidade e uma traição que ela teria cometido no ano anterior com outra mulher, dentre outras táticas questionáveis para influenciar o veredito a partir de aspectos morais não relacionados com o suposto crime. Curioso que o promotor do caso busca dar solidez à sua tese da mulher egoísta, sedutora e que teria manchado a honra e sabotado o trabalho de seu marido ainda em vida, através da tentativa de espelhar a fantasia dos livros para a realidade. Da mesma forma, a diretora do filme parece brincar com essa dúvida sobre a verdade desde o nome das personagens. Samuel, o marido, é interpretado por Samuel Theise e a atriz Sandra Hüller é quem faz o papel da ré Sandra.

O que certamente está longe de ser ficção é como Sandra é julgada no plenário do Júri. Naquele Tribunal, essa mulher, assim como diversas outras rés, não é julgada somente pelo suposto crime de homicídio. A todo tempo, a personagem feminina, que é construída como uma mulher forte, bem-sucedida profissionalmente e que não esconde seus desejos sexuais, é violentada por não cumprir o esperado papel da mulher e mãe que se priva de suas vontades como indivíduo. E, mesmo que ela tenha mudado de país apenas por vontade de Samuel, o peso da culpa da mãe e esposa má, que ela não se deixa carregar pelas palavras dele em vida, durante o julgamento, é resgatado por um promotor que veementemente insiste que ela tome como seu.2

Por outro lado, essa dificuldade de construir a verdade através da junção desses fragmentos não parece ser uma tarefa de todos os setores do filme. A sociedade e a mídia têm uma inclinação de julgá-la precipitadamente, ante a hipótese horrenda de que tenha assassinado seu próprio marido. E, como se o processo fosse um instrumento coletivo de controle de crimes a partir de um só indivíduo, quando a personagem Sandra consegue responder em liberdade provisória em razão do filho Daniel, logo é divulgado que a juíza teria feito uma “escolha perigosa”, afirmação essa seguida do questionamento midiático: “Como não vamos nos preocupar com o resto do processo?”

Talvez a tal preocupação seja, em realidade, um certo desejo coletivo pela espetacularização da morte, o que, com uma dose de fantasia, hipóteses e conflitos conjugais, parece deixar tudo mais intrigante. Essa narrativa, que muitas vezes lança vidas reais aos holofotes do espetáculo, é bem traduzida pela frase dita em um programa de televisão durante a película: “A ideia de uma escritora assassinando o marido é muito mais interessante do que a ideia de um professor se suicidando.”

E, como o filme bem mostra, não importa que, para esse entretenimento coletivo – e lucro de alguns – ser alcançado, a vida de quem está intimamente ligada ao processo seja destroçada. Justamente por isso, o filme nos leva a refletir que seu ponto central não se trata de saber, de fato, o que ocorreu no dia em que Samuel morreu. Condenada ou inocentada, Sandra já estava cumprindo sua pena durante o processo, mas não só ela, pois o pequeno Daniel é revitimizado ao longo de todo o julgamento e até mesmo a própria vítima tem intimidades alheias aos fatos expostas, a despeito da tentativa inicial de Sandra em preservar sua memória.

Isso mostra como um processo criminal impacta as pessoas envolvidas, não apenas em quem está sendo acusado. Esse aspecto é negligenciado pelo sistema de justiça no filme, assim como na realidade brasileira, salvo iniciativas pontuais em que se busca dar atenção às necessidades emocionais e psicológicas das pessoas envolvidas.

Em relação especificamente a Daniel, uma criança que perdeu o pai e se vê no centro do julgamento, o sistema de Justiça beira à crueldade. A falta de cuidado com que essa criança é tratada causa espanto, seja pela consequente falta de confiabilidade de seu depoimento, seja pelo processo ter sido uma experiência potencialmente traumatizante. Ele se confunde sobre fatos, muda de ideia e, perto do fim do julgamento, recupera memórias que possivelmente definiram o resultado.

Após ser exposto à reconstituição do crime, com direito a sermões pela confusão sobre como os fatos teriam ocorrido; ao depoimento tomado sozinho e com o evidente sugestionamento para respostas que levassem à responsabilização de sua mãe; e até mesmo à sessão de julgamento em que peritos explicaram as hipóteses da morte de seu pai, em uma daquelas cenas que precisamos nos controlar para não quebrar o silêncio no cinema, a juíza diz ao menino que, no dia seguinte, seriam abordados detalhes que não poderiam ser tratados com censura e, para não machucá-lo, ele não poderia estar presente.

É nesse momento que essa criança de 11 anos confronta a juíza com as palavras de uma criança forçada à adultização após episódios violentos: “Eu já fui machucado, por isso, eu preciso ouvir para poder superar tudo o que aconteceu comigo. E quando foi que alguém se censurou?”.

Há que se ter em mente que os ambientes forenses são locais pouco acolhedores, regidos por um código de conduta rígido (muitas vezes desconhecido) e organizados espacialmente de modo intimidador. Essa disposição do espaço fica muito bem retratada pelo longa, em que muitas vezes a câmera congela na testemunha, centro das atenções, enquanto acusação e defesa fazem perguntas e discutem. Ambientes assim inibem até mesmo adultos. Todavia, Daniel foi verdadeiramente inquirido, como qualquer outra testemunha, sem nenhum cuidado especial, chegando a ser acusado de mentir para ajudar a mãe em vários momentos.3 No Brasil, embora exista previsão de um depoimento especial para crianças, são muitos os exemplos de situações parecidas.4

Em resumo, temos uma história de busca pela verdade, assim como Édipo rei de Sófocles. Essa tragédia retrata perfeitamente a ideia do que Foucault chama de “inquérito”: Uma forma de saber-poder voltada à constituição da verdade a partir da lembrança e do discurso de humanos.5 Contudo, ao contrário da tragédia grega, o filme mostra que a lembrança humana não é tão confiável, e que o discurso é menos ainda. Ademais, a realidade daquela família é bastante complexa, de modo que, quando se agrega mais elementos ao julgamento, a dúvida sobre o que aconteceu aumenta, em vez de diminuir.

A partir disso, é possível problematizar a ideia de busca da “verdade”, quando o processo pode ser influenciado por preconceitos, suposições e erros humanos. Trata-se de um tema de constante reflexão entre os(as) juristas: O processo busca alcançar uma verdade real (o que “verdadeiramente” ocorreu) ou uma verdade formal (decorrente das provas produzidas de forma lícita e juntadas aos autos)?

O filme mostra como esse é um debate importante, pois o que é cognoscível no contexto do processo é imensamente limitado quando comparado à complexidade da vida. Essa ideia é apresentada pela própria Sandra em diversos momentos, como quando diz a seu advogado que um áudio de uma briga que teve com seu marido não era a realidade, talvez pudesse  ser uma parte dela, mas uma parte que não define o todo. Então, o advogado responde “eu não ligo para a realidade, [...] um julgamento não é sobre a verdade”.

Nesse contexto, o filme mostra a contradição que existe no sistema jurídico. Em determinados momentos, os seus atores sustentam que o processo busca esclarecer a verdade, todavia, em outros, deixam claro que o que importa não é “descobrir” verdade, mas, sim, constituí-la a partir do convencimento de si e do outro. O próprio Daniel ouve, de uma funcionária do Tribunal, que se não há como saber o que aconteceu, ele deveria decidir acreditar em uma das versões. Ou seja, diferentes atores do processo aludem à essa ideia de que é impossível chegar à “verdade” e que o julgamento é um jogo de convencimento.

Assim, argumentação, retórica e discurso são elementos importantíssimos, o que fica evidenciado pela barreira de linguagem que Sandra enfrenta. A sua língua materna é o alemão, e ela se comunica principalmente em inglês no julgamento, por não falar francês muito bem. A relevância dessa questão linguística é explicitada, por exemplo, pelo advogado de Sandra, que recomenda que ela fale em francês, e pelos momentos em que ela se perde tentando se defender em uma língua estranha.

Em última análise, “Anatomia de uma Queda” não é apenas uma obra de ficção, mas uma representação de um sistema de justiça criminal que nos permite tirar inúmeras reflexões, inclusive sobre o processo penal brasileiro. Isso porque, ao final, mesmo inocentada6, aquela mulher pergunta a seu advogado o que ela ganha pela vitória no Tribunal, pois aquela conquista parecia merecer algum prêmio. Talvez essa pergunta de Sandra seja o desejo de preencher um vazio deixado em alguém que, após ter sua vida elevada ao espetáculo público e dilacerada por um processo criminal, ganha (apenas) a absolvição judicial.

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1 ANDRADE, Carlos Drummond de. Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1987.

2 É interessante pensar que, apesar do arranjo familiar ser usado pela acusação para argumentar que Sandra era uma má esposa, caso houvesse uma inversão entre os papéis dela e de seu marido, teríamos o retrato de uma família tradicional, o que não é visto como problemático. Ou seja, teríamos um homem bem-sucedido profissionalmente e uma mulher que opta por passar mais tempo com o filho, deixando a carreira de lado, e que jamais poderia responsabilizar seu marido pelas escolhas que ela mesmo tomou.

3 Há que se refletir: mesmo que uma criança eventualmente minta para ajudar a mãe, acusada de matar o próprio pai, como o sistema de justiça deveria agir diante disso? Certamente não deveria colocar tal criança no meio de uma sala de audiência, na presença de dezenas de pessoas desconhecidas, enquanto a acusa de mentir. Não bastaria alertar os jurados sobre as contradições do depoimento, em outro momento, e pedir para desconsiderarem o testemunho, por exemplo?

4 A esse respeito, o exemplo mais revoltante que presenciei foi de uma criança de 12 anos, possível vítima de estupro, sendo ouvida por carta precatória. Ela era tratada como “senhora” e quando perguntada se “houve conjunção carnaval?”, respondeu “como assim?”, mostrando como estava perdida naquela situação.

5 “Parece-me, que há realmente um complexo de Édipo na nossa civilização. Mas ele não diz respeito ao nosso inconsciente e ao nosso desejo, nem as relações entre desejo e inconsciente. Se existe complexo de Édipo, ele se dá não ao nível individual, mas coletivo; não a propósito de desejo inconsciente, mas de poder e de saber. [...] A tragédia de Édipo é, portanto, a história de uma pesquisa da verdade; é um procedimento de pesquisa da verdade que obedece exatamente às práticas jurídicas gregas dessa época”. (FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nau, 2013, p. 39)

6 Para quem não viu o filme, mesmo com o spoiler, entendemos que vale a pena, já que é uma experiência que nos mobiliza a pensar sobre muitos temas, inclusive vários que não são abordados neste texto.

Vinícius André de Sousa
Advogado em Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal.

Ana Maria Martínez
Advogada criminalista em Martínez & Coutinho Advocacia, pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pelo IDP e pós-graduada em Ciências Criminais e Interseccionalidades pela Verbo Jurídico.

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