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A continuidade dos processos de licenciamento em situações de greve nos órgãos ambientais

As normas federais oferecem solução clara e não contenciosa para garantir a continuidade dos serviços de licenciamento ambiental, qual seja, o convênio de cooperação entre os diferentes entes federados, para compartilhamento da condução dos licenciamentos ambientais.

5/7/2024

No último dia 1º de julho, os funcionários do IBAMA e do ICMBio iniciaram greve geral em 25 estados.  O IBAMA já se encontrava em “operação-padrão” desde o início do ano, trabalhando com um corpo reduzido de funcionários.  Em 02.07.2024, os dois órgãos ingressaram com medida judicial perante o Superior Tribunal de Justiça buscando o reconhecimento da ilegalidade/abusividade da greve de seus servidores, o retorno imediato ao desempenho das respectivas funções, e, alternativamente, a delimitação de limites ao exercício do direito de paralisação Pet nº 16931/DF (2024/0240494-7). Em 4 de julho, o Ministro Paulo Sérgio Domingues deferiu o pedido de tutela de urgência para determinar que fossem garantidas as atividades de licenciamento ambiental, gestão de unidades das unidades de conservação, resgate e reabilitação da fauna, controle e prevenção de incêndios florestais e emergências ambientais.

Sem discutir a legitimidade e relevância dos pleitos dos servidores das autarquias federais, certo é que a decisão proferida pelo Ministro Domingues é digna de nota, pois, as atividades cuja execução foi assegurada, são serviços públicos essenciais e não podem ser interrompidas em razão de paralisação do funcionalismo. Sem paralisação das demais atividades administrativas ambientais que inadmitem interrupções, nos debruçaremos, no presente artigo, na imprescindibilidade do licenciamento ambiental.

O direito de greve dos servidores públicos é assegurado pela Constituição Federal (art. 37, VII). O Supremo Tribunal Federal reconhece desde 2007 a legitimidade da greve de tais funcionários e a inconstitucionalidade da omissão legislativa (Mandados de Injunção n. 670, 708 e 712). Ao decidir, determinou a aplicação da lei sobre o exercício geral do direito de greve (Lei 7.783/1989) à paralisação de atividades pelos servidores públicos, até que seja editada norma específica sobre o tema.

O STF também destacou a necessidade de manutenção dos serviços considerados essenciais por força dos princípios da supremacia do interesse público e da continuidade dos serviços públicos.

Dentre outros, a Lei 7.783/1989 considera como serviços ou atividades essenciais o tratamento e abastecimento de água e a produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis. Portanto, nos termos da Lei e do posicionamento do STF, a condução de tais atividades não pode ser interrompida em caso de greve.

Contudo, a condução de tais atividades é condicionada à emissão, na maior parte das vezes pelo IBAMA, de licenças ambientais, nos termos da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente. Trata-se de atividade-meio fundamental para a condução das atividades essenciais acima. Na medida em que a interrupção dos serviços de licenciamento ambiental impede a realização de tais atividades legalmente consideradas como essenciais, entendemos que os serviços de licenciamento ambiental devem ser também vistos como abrangidos pela Lei 7.783/1989.

Firme nesse entendimento, está claro e corroborado pela tutela antecipada proferida na Pet nº 16931/DF (2024/0240494-7) que a condução dos processos de licenciamento ambiental das atividades de infraestrutura não pode ser interrompida.

A reforçar a natureza essencial do licenciamento ambiental e ainda de que tal atividade não pode ser paralisada em caso de greve, vale destacar voto do Ministro Herman Benjamin, proferido no julgamento do AgRG na Pet n.7.883/DF:

“O que se tem aqui é uma greve em órgão público que envolve servidores de diversos setores e com atribuições as mais diversas. Contudo, pelo que conheço da organização do IBAMA, dois serviços são absolutamente indispensáveis, na sua integralidade, a saber, o licenciamento ambiental e a fiscalização.

(...)

Para mim, em análise perfunctória, a greve está vedada naqueles dois serviços acima indicados; as demais questões serão apreciadas oportunamente e com a oitiva das partes. Acredito ser mais prudente, nesse exame inicial, assegurar aqueles dois serviços absolutamente essenciais com multa, mas sem, claro, inviabilizar o direito de greve em sí, pois há possibilidade de ela depois vir a ser considerada legítima.”  (grifos nossos).

Face à essencialidade do licenciamento ambiental, importante refletir sobre a alternativas não contenciosas que estejam aptas a assegurar sua continuidade.

Ao nosso ver, um caminho constitucionalmente ponderado para dar eficácia aos objetivos da República acima citados sem descuidar de outros nem afrontar o direito de greve, é apresentado pelo Decreto 7.777/2012.

Em 2012, o Decreto 7.777 dispôs sobre as medidas para a continuidade de atividades e serviços públicos dos órgãos e entidades da administração pública federal durante greves, paralisações ou operações de retardamento de procedimentos administrativos promovidas pelos servidores públicos federais. Em 2022, o STF confirmou a constitucionalidade de tal Decreto no tocante a serviços públicos essenciais e inadiáveis (ADI 4.857). Na oportunidade, reforçou a necessidade de manutenção dos serviços públicos essenciais e inadiáveis, o que não tem por objetivo o esvaziamento dos movimentos grevistas, mas a proteção da supremacia do interesse público.

A alternativa enunciada pela norma converge com o princípio da cooperação entre os entes federados previsto na Lei Complementar 140/2011, que disciplina a cooperação entre os entes federados nas ações administrativas ambientais, entre as quais está incluído o licenciamento ambiental.

Ao disciplinar o exercício da competência ambiental comum da União, dos Estados e dos Municípios, a Lei Complementar estabelece a possibilidade de atuação supletiva e subsidiária da União em relação aos Estados e dos Estados em relação aos Municípios. A referida norma, todavia, é silente sobre a hipótese de ação dos Estados e Municípios relativamente a eventual inação ou incapacidade de desempenho de funções por parte da União, fato que poderia levar a entendimento equivocado de que tal substituição seria desprovida de lastro legal.

Contudo, a perspectiva das atuações supletivas e subsidiárias dos e municípios relativamente à União, encontra lastro nos incisos III, VI e VII do art. 23 da Constituição Federal e que os artigos 1º a 6º da Lei Complementar 140/2011 enfatizam a possibilidade de cooperação entre eles. Essa interpretação é também extraída do posicionamento do STF na ADI 4.757 que ao avaliar a constitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar, trouxe importantes posicionamentos sobre a cooperação e atuação suplementar dos entes federativos no processo de licenciamento ambiental.

A condução das ações de cooperação para compartilhamento da execução de atividades de competência da União, paralisadas em razão de greve com Estados, Distrito Federal ou Municípios, em conformidade com o Decreto 7.777/2012, compete aos Ministros de Estado supervisores dos órgãos ou entidades em que ocorrer a greve. A cooperação para compartilhamento será materializada mediante a celebração de convênio.

Portanto, em primeira leitura, caberia à Ministra do Meio Ambiente a promoção das iniciativas de elaboração e aprovação do convênio para cooperação e compartilhamento. Contudo, o Decreto 7.777 não pode ser lido fora do sistema normativo de competências ministeriais. Face à Lei 14.600/2023, merece reflexão a possibilidade de tal atribuição ser compartida, também com o Ministro da Casa Civil, pois referida autoridade recebeu funções relevantes no que concerne à coordenação: (i) de atividades dos demais ministérios e entidades federais e (ii) de políticas públicas necessárias à execução de empreendimentos de infraestrutura. Vejamos:

Art. 3º À Casa Civil da Presidência da República compete assistir diretamente o Presidente da República no desempenho de suas atribuições, especialmente nos seguintes aspectos:

I - coordenação e integração das ações governamentais

III - avaliação e monitoramento da ação governamental e da gestão dos órgãos e das entidades da administração pública federal

IV - coordenação e acompanhamento das atividades dos Ministérios

VII - coordenação, articulação e fomento de políticas públicas necessárias à retomada e à execução de obras de implantação dos empreendimentos de infraestrutura considerados estratégicos.

XIV - acompanhamento da ação governamental e do resultado da gestão dos administradores, no âmbito dos órgãos integrantes da Presidência da República e da Vice-Presidência da República, além de outros órgãos determinados em legislação específica, por intermédio da fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial.” (grifos nossos).

Depreende-se, portanto, que, mediante intepretação que pondera os diversos princípios e objetivos constitucionais em jogo, há solução não contenciosa para assegurar a continuidade dos serviços de licenciamento ambiental – qual seja, o convênio de cooperação entre os diferentes entes federados, para compartilhamento da condução dos licenciamentos ambientais. Em verdade, trata-se de velho conhecido dos que atuam na seara do Direito Ambiental e frequente meio de descentralização de atividades fiscalizatórias por agências reguladoras. Ao nosso ver, esta alternativa é capaz de possibilitar a ponderação entre o direito à prestação de atividades públicas essenciais e o direito à greve dos servidores públicos ambientais.

Roberta Jardim de Morais
Sócia no Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados, é pós-Doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Doutora em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Mestre em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Pós-Graduada em Diritto Del Commercio Internazionale pelo Instituto Universitario Europeo - Torino, Itália.

Carolina Teixeira Piñeira
Associada do Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados, é pós-graduanda em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, graduada com menção honrosa em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Rafael Baleroni
Sócio das áreas de ESG, óleo e gás do Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados. É formado em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, especislista em Direito do Petróleo e Gás Natural, mestre em Direito pela University of Chicago Law School e pela UERJ.

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