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Um novo paradigma nos contratos empresariais - Parte I

Como os contratos de SPA vêm modificando a estrutura dos contratos empresariais, aproximando-os dos modelos americanos de contrato. Primeiro artigo de uma série que visa analisar essas mudanças.

4/7/2024

A teoria clássica dos contratos no Brasil sempre seguiu o modelo continental europeu, seja na sua forma, seja na tipicidade dos acordos, seja no estudo das suas cláusulas.  

O modelo continental europeu, em especial os sistemas jurídicos francês e italiano, sempre tiveram grande influência sobre a teoria dos contratos no Brasil. As características principais desse modelo incluem:

  1. Formalismo e tipicidade: A rigidez formal e a tipicidade dos acordos são marcas registradas dos contratos baseados no modelo europeu. Há uma clara delimitação dos tipos contratuais, com pouca flexibilidade para a criação de novos modelos de contrato, apesar da previsão legal (Código Civil) de atipicidade.
  2. Estrutura clássica: A estrutura dos contratos seguia o esquema objeto-preço-obrigações-cláusulas penais, refletindo uma abordagem mais estática e previsível.

Na academia, o estudo dos contratos empresariais seguia padrões uniformes que se espalhavam em diversos modelos de contratos típicos e atípicos, invadindo a práxis dos escritórios de advocacia que partiam do já citado esquema objeto-preço-obrigações-cláusulas penais.

Com a abertura da economia de mercado no Brasil, sobretudo na década de 90 do século XX, os contratos empresariais começaram a ser repensados. Não é à toa que a professora Paula Forgioni tenha iniciado sua obra “Contratos Empresariais” alertando sobre o caráter complexo do contrato empresarial, não como ato, mas como um processo. Como bem salientou Forgioni “o contrato é um filme, não é uma fotografia1.

Com o interesse do capital estrangeiro na abertura econômica brasileira, sobretudo na área de fusões e aquisições (M&A), houve uma aproximação da linguagem usada internacionalmente para as operações societárias dentro do país, também em função da capacitação dos advogados brasileiros para atuar na área de negociações empresariais complexas nos Estados Unidos.

Essa linguagem padrão se refletia (e ainda se reflete) nas cláusulas que são adotadas nos contratos de SPA - Share Purchase Agreement e que se diferenciam das cláusulas contratuais observadas em contratos de transferência de tecnologia, de trespasse de estabelecimento comercial, de franquia, de distribuição e de tantos outros contratos empresariais.

Mas não são apenas as cláusulas contratuais dos SPA que se distanciaram do modelo contratual clássico brasileiro. O caminho de tratativas que vai culminar na assinatura do contrato de fusão ou de aquisição também foi restruturado, dando-se importância aos acordos de confidencialidade (NDA), extremamente necessários nas negociações de M&A e nos memorandos de entendimento (MOU – Memorandum Of Understanding) que vão reforçar as características processuais do modelo de contrato dentro do subsistema societário.

A função geral do contrato é trazer para os negócios jurídicos uma estabilização acerca dos eventos futuros e da assimetria de informações através de regras que expressem justiça e proporcionalidade dentro dos objetivos e pretensões das partes, com o máximo de efetividade para o negócio jurídico. Com a popularização dos modelos de contratação próprios das operações societárias no mercado brasileiro, a práxis contratual começou a utilizar em outros tipos de negócios jurídicos as estruturas típicas dos contratos norte-americanos. Houve, na verdade, a percepção de que o modelo norte-americano de contratação poderia ser replicado em outras variedades contratuais com o objetivo de justamente dar mais efetividade à função do contrato como mecanismo estabilizador das relações negociais.

Isso não quer dizer que as cláusulas norte-americanas sejam de total desconhecimento do direito contratual brasileiro. Os memorandos de entendimento e os acordos de confidencialidade já estavam previstos no nosso sistema no espectro do contrato preliminar previsto no art. 462 do Código Civil. As famosas cláusulas de declarações (representations) já estariam previstas no art. 209 também do Código Civil.

O que muda, no entanto, é a função destas previsões no corpo dos contratos. A práxis também muda: se os contratos preliminares eram raros na produção contratual brasileira, os memorandos e acordos de confidencialidade passaram a ter grande importância a partir do momento em que se percebeu a natureza processual da contratação.

Por sua vez, cláusulas interpretativas, comuns nos modelos americanos, começaram a se tornar mais populares em diversos exemplos de contratos empresariais, fortalecendo o pacta sunt servanda sobre o império da lei, como deixou clara a previsão da lei 13.874/19 que deu a redação atual do art. 113 do Código Civil2.

Esses impactos, que foram sentidos no dia a dia dos advogados contratualistas brasileiros, podem ser sumarizados da seguinte forma:

Obviamente, há um risco em fazer a importação de um modelo que foi construído para um sistema bem diferente do brasileiro como advertem Ana Carolina Rocha Cupino e André Marques Cupido3, ambos esteados em Forgioni.

Mas esses novos paradigmas contratuais vieram para ficar. São modelos que já estarão incorporados a tecnologias inteligentes generativas e logo serão repetidos à exaustão sem que se pense quando tudo isso começou.

A partir desse artigo introdutório iniciaremos uma discussão sobre uma nova teoria contratual, com o objetivo de que as negociações, no futuro, não sejam padrões repetitivos gerados exclusivamente por inteligências artificiais.

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1 Forgioni, Paula A. Contratos Empresariais: Teoria Geral e Aplicação, 3ª edição, São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 21

2 § 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.

3 Rocha Cupido, Ana Carolina; Marques Francisco, André, Efeitos do Conhecimento e as Cláuuslas de Sandbagging, in M&A e Restruturação de Empresas, São Paulo, Quartier Latin, 2018

André Mussalem
Advogado especialista em Direito Administrativo, Tributário e empresarial, sócio do Cossart Mussalem Advogados, Professor de Direito Constitucional, Mestre em Direito/UFPE

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