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Vou pagar quanto? A nova disciplina dos juros remuneratórios nos contratos de mútuo em razão da lei 14.905/24

O contrato de mútuo envolve empréstimo de coisa fungível, podendo ou não gerar juros conforme se destine ou não a fins econômicos, compensando a privação do capital emprestado.

4/7/2024

O contrato de mútuo, de forma geral, é definido como o “empréstimo de coisa fungível” (CC – art. 586). A essência do contrato é a entrega de bens fungíveis, que podem ser trocados por outros da mesma quantidade e qualidade, por uma pessoa (mutuante) para outra (mutuário), com a obrigação de restituição da coisa emprestada.

Caso o mútuo não se destine a fins econômicos, não se presumem devidos os juros. De outro lado, caso de destine a fins econômicos, presumem-se devidos os juros chamados de remuneratórios. Enquanto o capital não está nas mãos do credor, este deve ter ao menos uma compensação por essa indisponibilidade, daí falar-se também em juros compensatórios. Em última análise, os juros remuneratórios representam frutos civis do capital emprestado, enquanto ele não é restituído. Enquanto o capital está à disposição do mutuário, ele vai render frutos que devem ser restituídos juntamente com o montante principal.

Tais juros também são chamados de compensatórios, na medida em que representam uma compensação pelo fato “de o credor estar privado da utilização de seu capital”1, vale dizer, “os juros representam um valor que se paga para a aquisição temporal da titularidade do dinheiro2. Eles representam prestações acessórias normalmente ligadas à concessão de crédito, vale dizer, são essas prestações que incentivam a concessão de crédito.

Por decorrerem dessa indisponibilidade, os juros remuneratórios incidem a partir da disponibilidade do capital pela taxa que houver sido pactuado entre as partes. A princípio, prevalece a autonomia da vontade, aplicando-se a taxa que houver sido estipulada contratualmente.

A ideia geral de liberdade na pactuação dos juros remuneratórios, salvo nos casos vedados, traz à tona a questão da existência ou não de um teto na estipulação desses juros, isto é, há limite a autonomia privada na fixação dos juros remuneratórios?

Falando especificamente do mercado financeiro, Glauber Moreno Tavalera diz que “tantas e tão diversas entre si são as variáveis que atuam na determinação da taxa de juros praticada pelos agentes do mercado financeiro que não se concebe submetê-las a um mecanismo imobilizador de suas flutuações provocadas ora por influxos endógenos, ora por influências exógenas”3. Apesar disso, nosso sistema normativo traz algumas regras impondo limites aos juros remuneratórios, cuja extensão deve ser entendida de forma clara.

Historicamente, tem-se vedado a prática da chamada usura, entendida como a remuneração abusiva pelo uso do capital. Por motivos de origem religiosa ou moral, proíbe-se historicamente a prática da usura, chegando-se inclusive a punir criminalmente sua prática. De todo modo, o que houve foi o estabelecimento de determinados limites de remuneração para o uso do capital.

Nesse sentido, o art. 1º do decreto 22.626/33 (lei da usura) estabelece que “é vedado, e será punido nos termos desta Lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal”. De modo similar, o art. 591 do Código Civil afirma que o mútuo destinado a fins econômicos não pode ter juros superiores aos previstos no art. 406 do CC. Reforçando o limite, o art. 1º da MP 2.172 declara nulas as estipulações usurárias, como aqueles que estipulem juros acima do limite legal para os mútuos civis.

Registre-se, desde já, que a previsão genérica de limite na lei da usura, bem como para os contratos de mútuo não se aplica aos contratos das instituições financeiras em geral, dada a especificidade do regime jurídico aplicável a estas. Em sede de recurso especial repetitivo, o STJ firmou a tese da liberdade da pactuação dos juros remuneratórios nos contratos bancários. Concluiu-se que: “a) As instituições financeiras não se sujeitam à limitação dos juros remuneratórios estipulada na lei de usura (decreto 22.626/33), súmula 596/STF; b) A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade; c) São inaplicáveis aos juros remuneratórios dos contratos de mútuo bancário as disposições do art. 591 c/c o art. 406 do CC/02; d) É admitida a revisão das taxas de juros remuneratórios em situações excepcionais, desde que caracterizada a relação de consumo e que há abusividade (capaz de colocar o consumidor em desvantagem exagerada,  art. 51, §1º, do CDC) fique cabalmente demonstrada, ante às peculiaridades do julgamento em concreto4.

Fora do sistema financeiro, o STJ vinha reconhecendo a aplicação dos limites legais de juros a contratos de mútuos entre particulares5. Ocorre que estamos diante de uma nova disciplina jurídica.

A lei 14.905/24 altera a redação do art. 591 do CC, não havendo mais limite estabelecido, registrando-se que a taxa legal se aplicaria apenas no silêncio das partes.

De outro lado, o art. 3º da lei 14.905/24 estabeleceu que  não há mais aplicação dos limites da lei da usura às operações envolvendo contratos entre pessoas jurídicas ou que sejam representados por títulos de crédito ou valores mobiliários, nem às operações realizadas nos mercados financeiro, de capitais ou de valores mobiliários. Também não se aplicam mais as disposições da lei da usura às operações que tenham como credores  instituições financeiras,  fundos ou clubes de investimento, sociedades de arrendamento mercantil e empresas simples de crédito e OSCIP - organizações da sociedade civil de interesse público que se dedicam à concessão de crédito.  

Especialmente no que tange a operações entre pessoas jurídicas e operações representadas em títulos de crédito, haverá um grande impacto dessa alteração legislativa. Portanto, ainda que não se trate de uma operação bancário, vê-se que não há mais limite legal para os juros remuneratórios, que passam a se inserir dentro da liberdade das partes e das influências do mercado, ressalvadas eventuais operações com pessoas naturais, não representadas em títulos de crédito. Contudo, isso não inibe o controle de eventuais abusos, tendo em vista os mecanismos gerais de revisão previstos no Código Civil e eventualmente no CDC, quando aplicável.

Além disso, é importante ressaltar que os contratos existentes até o início da vigência da lei 14.905/24 não serão alcançados por essa nova disciplina, por representarem atos jurídicos perfeitos. Diz-se que os atos jurídicos perfeitos são aqueles consumados, isto é, aqueles que reúnem os elementos essenciais para produzir efeitos sob a égide de determinada lei. Consumado o ato sob a égide de determinada lei, ele é um ato jurídico perfeito protegido constitucionalmente de qualquer ingerência de leis novas. Mesmo efeitos futuros daquele ato estão salvos da incidência da nova lei, diante do disposto no art. 5º, XXXVI da Constituição Federal.

Leis novas ainda que expressamente pretendam não podem incidir sobre efeitos de atos jurídicos perfeitos, na medida em que a proteção que é assegurada a estes é constitucional, isto é, a proteção do ato jurídico perfeito não pode ser quebrada por nenhuma norma que deva obediência a Constituição, como as leis em geral. E não se invoque que as normas de ordem pública devem incidir de imediato, porquanto tal incidência seria retroativa e “a lei retroativa é, em princípio, contrária a ordem pública”6.

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1 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, v. 2, p. 67.

2 SANTOS, Francisco Cláudio de Almeida. Os juros compensatórios no mútuo bancário. In: WALD, Arnoldo (organizador). Direito empresarial: direito bancário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, v. 7, p. 289.

3 TAVALERA, Glauber Moreno. Aspectos jurídicos controversos dos juros e da comissão de permanência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 144.

4 STJ - REsp 1061530/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/10/2008, DJe 10/03/2009.

5 REsp n. 2.076.433/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 9/10/2023; REsp n. 1.854.818/DF, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, relator para acórdão Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 7/6/2022, DJe de 30/6/2022.

6 ALVES, José Carlos Moreira. As leis de ordem pública e de direito público em face do princípio constitucional da irretroatividade, p. 15.

Marlon Tomazette
Advogado no escritório Tomazette, Franca e Cobucci Advogados.

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