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Investigação criminal: Não estamos mais no século 19

A prisão de um inocente traz consigo o outro lado da moeda, qual seja, a permanência dos culpados nas ruas. O que pode ser pior para a segurança pública?

3/7/2024

A jurisprudência dos nossos tribunais é maciça no sentido de que a palavra da vítima basta para condenar. Os argumentos mais utilizados para tanto são: em delitos patrimoniais, cometidos, em regra, na clandestinidade, a palavra das vítimas tem especial relevância e deve ser prestigiada; ou, a vítima (ou a testemunha) não teria motivos para incriminar alguém de forma mentirosa.

Realmente, no cotidiano da justiça criminal é muito raro ver uma pessoa incriminando outra gratuitamente, de forma mentirosa ou até criminosa, mas pode acontecer. E a reação de quem é acusado de um crime que não cometeu não poderia ser outra senão incompreensão.

Como justificar que alguém possa ser condenado somente com as palavras de outra pessoa, tendo somente a memória (tão falha) como prova, ou até um testemunho mentiroso?

Não há como negar o especial valor das palavras da vítima, como diz a jurisprudência, especialmente porque boa parte dos crimes são praticados na clandestinidade, em locais ermos, ou até dentro da própria casa, como acontece em crimes sexuais e, também, em roubos.

No entanto, é justo o sentimento de indignação de uma pessoa inocente que se vê na obrigação de suportar uma ação penal ou até uma prisão preventiva em função de um erro daquele que acusa, ainda que esse erro seja involuntário, como ocorre na grande maioria das condenações erradas.

Quem erra ao reconhecer um inocente como se fosse criminoso, via de regra, acredita que acerta, o que torna a situação aflitiva. E para fazer frente a isso servem as demais provas previstas pelo nosso sistema, as quais, no entanto, não preponderam como os depoimentos.

Não é exagero, e muito menos mera retórica, dizer que o ser humano foi para a lua na década de 1960, há mais de 50 anos, e até hoje o nosso sistema ainda se vale da prova testemunhal para condenar ou absolver. Isso explica a quantidade de condenações e de prisões erradas.

O Innocence Project, a partir de erros ocorridos por décadas nos EUA, identificou como preponderantes as seguintes causas de erros judiciários: i) reconhecimentos errados; ii) perícias erradas; iii) confissões falsas; iv) informantes não confiáveis; e v) defesa insuficiente.

Nem mesmo as perícias são totalmente seguras. Novamente segundo o Innocence Project: dos 225 erros judiciários corrigidos por testes de DNA, mais de 50% (116) envolveram perícia invalidada ou imprópria.

Não só a prova testemunhal, portanto, mas a própria perícia é tema bastante delicado, pois envolve procedimentos e métodos científicos que buscam a certeza, mas que, ao falharem, dificultam a identificação das falhas. Em termos de justiça criminal, isso resulta em prisões erradas que passam despercebidas, turvando vertiginosamente a idoneidade e a legitimidade do Direito.

É por isso que a investigação criminal é um momento de grande importância ao sistema jurídico criminal.

Os relatos de erros judiciários e de abusos do sistema de Justiça criminal de uma forma geral têm sido frequentes. Eles quase sempre resultam em medidas cautelares, imposição de perdas econômicas severas e o clássico da prisão da pessoa errada ou por mais tempo do que deveria. Tudo isso em consequência, muitas vezes, de investigações malfeitas.

Há casos em que a suspeita vem errada por uma série de circunstâncias, inclusive por conta do nosso racismo estrutural ou por outras formas de preconceito, e é o inquérito policial, com o seu detalhado regramento, o instrumento jurídico para corrigir esses erros.

Os vários casos de erros judiciários estão aí para demonstrar o quanto uma investigação falha ou malfeita gera consequências seríssimas para o processo penal. Afinal, a prisão de um inocente traz consigo o outro lado da moeda, qual seja: a permanência dos culpados nas ruas, praticando outros crimes. O que pode ser pior do que isso para a segurança pública? 

A investigação policial criminal é instrumento de política pública criminal destinada ao esclarecimento do fato. Convém lembrar que estamos no século 21, que temos tecnologia para aprimorar as provas técnicas, como as provas periciais e outras que envolvam diferentes tecnologias, com a finalidade de depender menos da prova testemunhal.

O sistema de Justiça criminal não pode operar como se estivesse ainda no século 19, quando as bases para o atual modelo foram implementadas e não havia muito mais do que um julgamento público, feito geralmente somente a partir da colheita do interrogatório do próprio acusado ou, se muito, a partir de prova testemunhal.

Assim como os reformadores - juristas do final do século 18 e início do século 19 - desenvolveram instrumentos jurídicos modernos para a época, buscando um sistema penal mais racional e funcional, que se acomodasse melhor aos regimes que ganhavam espaço (republicanos e/ou parlamentaristas), é chegado o momento de nossa sociedade fazer a sua parte. É hora de incorporarmos instrumentos mais modernos em nosso modelo de Justiça criminal.

Ciência, tecnologia e conhecimento nós temos para isso; basta sair do lugar comum.

José Carlos Abissamra Filho
Advogado criminalista, Doutor e Mestre pela PUCSP, foi diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) por quase uma década e é autor de, entre outros, Política Pública Criminal - Um Modelo de Aferição da Idoneidade da Incidência Penal e dos Institutos Jurídicos Criminais, livro lançado em agosto pela Juruá Editora.

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