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A governança nas contratações públicas: Princípios, estruturas e desafios

Contratações públicas exigem governança eficiente e transparente para garantir uso correto dos recursos, conforme legislação vigente e para evitar práticas corruptas.

27/6/2024

Introdução

As contratações públicas são processos essenciais para o funcionamento da administração pública, visto que envolvem a aquisição de bens, serviços e obras necessárias para a estrutura do próprio Órgão/Entidade e, principalmente, para o atendimento das demandas da sociedade. A governança, nesse contexto, refere-se à maneira como essas contratações são planejadas, executadas e monitoradas, garantindo que os recursos públicos sejam utilizados de forma eficiente, transparente e em observância aos regramentos legais.

Segundo dados do Ministério da Economia, as contratações públicas movimentam cerca de 12% do PIB brasileiro por ano. Esse volume de recursos destaca a importância da construção de um sistema robusto de governança que assegure o uso adequado do dinheiro público, permitindo a mitigação de vulnerabilidades a práticas de corrupção, fraudes e ineficiências administrativas.

Ao longo dos anos, diversos países têm avançado na implementação de mecanismos legais e administrativos para fortalecer a governança nas contratações públicas. No Brasil, sua premissa geral encontra-se fincada no art. 37, inciso XXI da CF/88, reforçada atualmente por legislações esparsas, que, entre outras, incluem a lei 13.303/16 (das Estatais), lei 8.429/92 (Improbidade Administrativa), lei 12.846 (Anticorrupção), lei 12.527 (Acesso à Informação) e mais recentemente a lei 14.133/21 (Licitações e Contratos Administrativos).

Este trabalho tem como objetivo introduzir, de forma sucinta, os conceitos fundamentais da governança nas contratações públicas, passando pelos principais princípios e diretrizes, além de analisar alguns desafios e perspectivas futuras para o aprimoramento desse sistema.

Governança nas contratações públicas: Conceitos, diretrizes e importância

Consoante o RL - Relatório de Levantamento 01724520176 do Plenário do TCU,, governança “é o sistema pelo qual as organizações são dirigidas e controladas. Pode ser entendido como o conjunto de ações e responsabilidades exercidas pela alta administração da empresa, órgão ou entidade, com o objetivo de oferecer orientação estratégica e garantir que os objetivos sejam alcançados, com simultânea gerência de riscos e verificação de que os recursos são utilizados de forma responsável”.

Nos termos da Portaria Seges/ME 8.678/21, governança nas contratações públicas significa o conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a atuação da gestão das contratações públicas, visando agregar valor ao negócio do órgão ou entidade, e contribuir para o alcance de seus objetivos, com riscos aceitáveis.

Ainda segundo a Portaria, a governança nas contratações públicas tem por função assegurar o alcance dos seguintes objetivos: a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto; o tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição; evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos; e incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável. 

Visando permitir que se cumpram tais objetivos, o normativo apresenta as seguintes diretrizes:

  1. Promoção do desenvolvimento nacional sustentável, em consonância com a Estratégia Federal de Desenvolvimento e com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável;
  2. Promoção do tratamento diferenciado e simplificado à microempresas e à empresa de pequeno porte;
  3. Promoção de ambiente negocial íntegro e confiável;
  4. Alinhamento das contratações públicas aos planejamentos estratégicos dos órgãos e entidades, bem como às leis orçamentárias;
  5. Fomento à competitividade nos certames, diminuindo a barreira de entrada a fornecedores em potencial;
  6. Aprimoramento da interação com o mercado fornecedor, como forma de se promover a inovação e de se prospectarem soluções que maximizem a efetividade da contratação;
  7. Desburocratização, incentivo à participação social, uso de linguagem simples e de tecnologia, bem como as demais diretrizes do Governo Digital;
  8. Transparência processual; e
  9. Padronização e centralização de procedimentos, sempre que pertinente.

Desse modo, fica evidente que, ao garantir que as organizações sejam dirigidas e controladas de maneira estratégica, com gerência de riscos e utilização responsável dos recursos, a governança desempenha papel crucial na promoção de uma administração pública eficiente, transparente e ética, impactando positivamente na prestação dos serviços públicos à sociedade.

Princípios de governança nas contratações públicas

Os princípios da governança pública estão dispostos especialmente no decreto 9.203/17, que dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. São eles:

  1. Capacidade de resposta;
  2. Integridade;
  3. Confiabilidade;
  4. Melhoria regulatória;
  5. Prestação de contas e responsabilidade; e
  6. Transparência.

A capacidade de resposta é a habilidade que a administração tem para manifestar-se de forma clara e eficaz às demandas apresentadas pelas partes interessadas. Do ponto de vista do agente público, segundo a ONU, capacitação técnica e postura ética e profissional são fatores imprescindíveis para ampliar a capacidade de resposta no setor público.

A integridade, conforme o TCU,  refere-se ao alinhamento consistente e à adesão de valores, princípios e normas éticas comuns para sustentar e priorizar o interesse público sobre os interesses privados no setor público. Ou seja, se resume na atuação focada na priorização do interesse público, pautando-se em valores morais e conduta ética.

A confiabilidade representa a capacidade das instituições de minimizar as incertezas para os cidadãos nos ambientes econômico, social e político (OCDE, 2017c, p.24). Por isso, uma instituição confiável tem que se manter o mais fiel possível aos objetivos e diretrizes previamente definidos, passar segurança à sociedade em relação a sua atuação e, por fim, manter ações consistentes com sua missão institucional.

A melhoria regulatória representa o desenvolvimento e a avaliação de políticas e de atos normativos em um processo transparente, baseado em evidências e orientado pela visão de cidadãos e partes diretamente interessadas. Não se restringe, portanto, à regulação econômica de setores específicos realizada pelas agências reguladoras.

A prestação de contas e responsabilidade (accountability) diz respeito à obrigação que têm as pessoas ou entidades às quais se tenham confiado recursos de assumir as responsabilidades de ordem fiscal, gerencial e programática que lhe foram conferidas, e de informar a quem lhes delegou essas responsabilidades. Em resumo, é mecanismo para prestação de contas, controle social e responsabilização pelo desempenho e resultados das ações na gestão pública.

Por fim, a transparência é a garantia de acesso às informações legítimas e fidedignas aos cidadãos. Diz respeito a permitir que a sociedade obtenha informações atualizadas sobre operações, estruturas, processos decisórios, resultado e desempenho do setor público, a fim de que se exerça plenamente o controle social. 

Todos os princípios supramencionados, em maior ou menor intensidade, estão alinhados aos regramentos das contratações públicas. A lei 14.133/21 consagra expressamente em sua aplicação a transparência e a publicidade como princípios e determina que todos os atos praticados no processo licitatório são públicos, ressalvados apenas os casos de sigilo imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, na forma da lei. Além disso, a referida legislação amplia a transparência no âmbito das contratações públicas ao criar o PNCP - Portal Nacional de Contratações Públicas, sítio eletrônico oficial para promoção da transparência e manifestação social.      

Mecanismos de governança na lei de licitações e contratações públicas

A lei 14.133/21, entre relevantes inovações, previu mecanismos de liderança, estratégia e controle para avaliação, direcionamento e monitoramento dos processos licitatórios.

O parágrafo único do art. 11 aduz que “a alta gestão do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, (...), promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.

No capítulo III, denominado “Do Controle das Contratações”, o art. 169  estabelece que “as contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante a adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa:

  1. Primeira linha de defesa, integrada por servidores e empregados públicos, agentes de licitação e autoridades que atuam na estrutura de governança do órgão ou entidade;
  2. Segunda linha de defesa, integrada pelas unidades de assessoramento jurídico e do controle interno do próprio órgão ou entidade;
  3. Terceira linha de defesa, integrada pelo órgão central de controle interno da Administração e pelo tribunal de contas.

O modelo das três linhas, conforme o IIA - The Institute of Internal Auditors, auxilia as organizações a identificar estruturas e processos que melhor ajudem no atingimento dos seus objetivos e facilitam uma forte governança e gerenciamento de riscos. No âmbito das contratações públicas, o modelo, embora claramente simplificado, estrutura e sugere colaboração entre os atores da governança.

Retornando às inovações legislativas, a lei 14.133/21 incentiva a implementação de programas de integridade, por parte dos licitantes: ao determinar que nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto (originalmente acima de R$ 200.000,000,00), o edital deverá prever a implementação do programa pelo licitante vencedor (§4º - art. 25); ao inseri-lo como um dos critérios de desempate (inciso 4º - art. 60) e ao adicioná-lo como condição de reabilitação do licitante sancionado (parágrafo único – art. 163).          

Os programas de integridade consistem em conjuntos de medidas e políticas internas adotadas por organizações, com propósito primordial de prevenir, detectar e combater práticas ilícitas, com ênfase na corrupção. No contexto das licitações, esses programas são essenciais para fomentar a concorrência justa e garantir o uso ético e eficiente dos recursos públicos.

Conclusão

Embora o tema esteja cada vez mais presente nas organizações públicas brasileiras, a implementação adequada de uma estrutura de governança das contratações enfrenta inúmeros desafios, sobretudo nos pequenos municípios, em razão, por exemplo, da falta de pessoal especializado, fragilidade de estrutura organizacional e baixo investimento na capacitação da força de trabalho.

No entanto, essas dificuldades não podem ser vistas como obstáculos intransponíveis. A alta administração, seja em nível municipal, estadual ou federal, tem a responsabilidade de implementar e manter mecanismos de governança das contratações públicas. Nesse sentido, como expõe a Rede Governança Brasil, “para a transformação acontecer partirá do ente responsável a iniciativa de estruturar seu próprio modelo de governança adequado a sua realidade, ao seu contexto, a sua estrutura, a sua rede, ao seu formato de articulação e aos seus potenciais”.    

A centralização e padronização de normas são fundamentais para assegurar consistência e clareza nas práticas administrativas, evitando interpretações divergentes e facilitando a fiscalização e o controle dos processos. A criação de manuais e guias operacionais oferece um referencial prático e acessível para os agentes, fortalecendo a segurança jurídica e orientando suas atividades cotidianas.

Os programas de capacitação contínua são essenciais para manter os servidores atualizados com as melhores práticas, novas legislações e tecnologias emergentes. Qualificações regulares, com a promoção, inclusive por parte dos órgãos de controle, como os tribunais de contas, contribuem para um serviço público mais consciente e preparado para as demandas da sociedade.

O investimento em tecnologia é outro ponto crucial. Sistemas integrados de gestão permitem um acompanhamento mais preciso e em tempo real dos processos, promovendo a transparência, a simplificação e a rapidez na execução das tarefas. Isso não só melhora a eficiência administrativa, mas também permite um controle mais rigoroso, reduzindo possibilidades de fraudes e irregularidades.

Promover um ambiente íntegro e confiável é igualmente importante. Isso pode ser alcançado por meio de políticas que incentivam a participação social e a inovação, criando uma cultura organizacional baseada na ética e na responsabilidade. A sociedade, ao sentir-se parte do processo e ver seus interesses sendo considerados, tende a confiar mais na administração pública.

Ao implementar essas práticas, os órgãos públicos não só cumprem com as exigências legais, mas também constroem uma cultura de integridade e responsabilidade que resulta em processos de contratação mais justos e eficientes.

Paulo Henrique Gomes Marques
Especialista em Gestão Pública e Direito Administrativo com ênfase em licitações e contratos administrativos.

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