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A decisão dos jurados e a inércia do legislador ordinário

A pretensão do artigo é demonstrar que as decisões dos jurados contrariamente às provas dos autos no Tribunal do Júri carece ainda de regramento legal pelo legislador ordinário.

26/6/2024

Frequentemente tomamos conhecimento pelos meios de comunicação de que os Tribunais Superiores ou os Tribunais de Justiça anularam a condenação ou a absolvição proferida pelo Tribunal do Júri1. Comumente a razão para a anulação da decisão do júri consiste numa decisão manifestamente contrária às provas dos autos. Os jurados simplesmente condenam ou absolvem, discordando das provas dos autos ou as "ignorando".

Quem estuda, atua ou costuma assistir as sessões de julgamento no Tribunal do Júri sabem que os jurados julgam apenas os fatos. Questões de direito e interpretação das leis não são da alçada do conselho de sentença. Os jurados estão ali para dizer se existe prova de que o crime ocorreu, se existe prova de quem o praticou e se existe prova dos motivos para a prática do crime. Essa as razões pelas quais os Tribunais Superiores e os TJ's anulam as decisões do júri em direta interpretação do art. 593, III, d, do CPP - Código de Processo Penal2.

Se a decisão dos jurados é anulada porque discordaram da prova ou porque a ignoraram, a culpa é de quem? Será dos jurados a culpa? Ou a culpa é dos oradores (Promotor de justiça e Defensor)? Ou será que a culpa é do legislador ordinário?

A culpa não pode ser dos jurados. O próprio CPP diz no art. 4723 que o juiz presidente deve advertir aos jurados que em nome da lei examinarão a causa com imparcialidade e proferirão a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça.

Onde nesse dispositivo diz que os jurados devem julgar de acordo com as provas dos autos? Em lugar nenhum! A consciência dos jurados não está necessariamente nas provas constantes dos autos. Tampouco os ditames da justiça pode significar que ser justo é decidir o jurado de acordo com essa ou aquela prova. A possibilidade de um falso testemunho ou a obtenção de uma prova ilícita exemplificam bem essa situação. Enfim, apesar dos jurados serem juízes dos fatos, a eles também se impõe a vedação do non liquet.

E a razão disso é muito simples. Os jurados julgam conforme suas convicções íntimas. Não é o jurado obrigado a se justificar porque condena ou absolve o acusado por um homicídio simples ou qualificado. Aliás, o art. 472 do CPP fala que em nome da lei os jurados examinarão a causa. Mas a qual lei o legislador se refere?

Conforme a concepção íntima de cada um, a "lei" que o rege pode ou não coincidir com as leis do Estado. E quando decide contra as provas dos autos igualmente está seguindo uma lei. Qual lei? Não importa porque não é obrigado a motivar sua decisão.

Isso nos faz pensar que existe leis que orientam e obrigam os magistrados togados e de  outras "leis" que orientam os juízes de fato no Tribunal do Júri. E aqui a ideia de ditames da justiça reflete bem o entendimento daqueles jurados que julgam seus pares no Tribunal do Júri sentindo como eles o que é injustiças e desigualdades na sociedade. E contra esse sentimento de injustiça decide com justiça, ainda que contra as provas dos autos.

Vale lembrar aqui a música "Zé Ninguém" do Biquini Cavadão quando diz "eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém, aqui embaixo as leis são diferentes". Qualquer "Zé Ninguém" pode ser jurado! E poderá julgar seus pares, inclusive os magnatas, em nome da lei, mas também em nome da "lei" do povo, que como já dissemos não coincide necessariamente com as leis do Estado. Todos são iguais perante a lei. Mas nem todas as leis são iguais para todos. E parece que é essa desigualdade e injustiça, impossíveis de serem resolvidas pelas leis do Estado, que a Constituição quis que a instituição do júri resolvesse quando lhes deu o poder do voto secreto e soberano. Daí porque os juízes de fato julgam pelo e para o povo, até porque são eles a mais legítima, vívida e fiel expressão do povo no Poder Judiciário. 

Portanto, a culpa não é dos jurados, porque julgam a causa em nome da lei, aplicando os ditames da justiça e de suas consciências no caso concreto, refletindo a experiência de cada um na sociedade.

Como se vê, a questão de decidir contra ou a favor das provas dos autos não é um problema dos jurados.

Será, então, culpa dos oradores, os jurados decidirem a causa contrariamente às provas dos autos?

Tampouco a culpa pode ser dos promotores de justiça ou dos defensores. Provo.

A eloquência e a genialidade de um ou outro orador pode sim influenciar na decisão dos jurados no Tribunal do Júri. E a vitória ser de quem tem mais poder de oratória do que o outro. Mas não é esse o ponto que mais vibra nas regras do CPP e dos princípios da CF/88 que disciplinam a instituição e o julgamento no Tribunal do Júri.

O que mais importa para os oradores é lidar com as provas dos autos. Isso porque o que não está nos autos não existe no mundo do direito. Então, bastaria juntar aos autos tudo que se entende que possa provar alguma coisa para dizer que o argumento é baseado nessa ou naquela prova para condenar ou absolver o réu? A resposta é não. Porque é necessário haver uma lei que defina o que é prova e também quando ela é válida.

Se considerarmos a lei 11.690/08, que deu nova redação ao art. 155 do CPP4, perceberemos claramente que prova é aquela produzida em juízo sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, enquanto que os elementos de informação produzidos no inquérito policial (observadas as ressalvas do art. 155 do CPP) não são prova, justamente por serem feitas unilateralmente.

Antes, porém, da lei 11.690/08 era muito comum o Ministério Público não produzir nenhuma prova no sumário de culpa e no plenário perante o conselho de sentença, e mesmo assim, obter a condenação válida dos réus tão somente com os elementos de informação do inquérito policial. Para a defesa e doutrina isso sempre constituiu uma decisão dos jurados contrárias as provas dos autos. Nem por isso, nesse tempo, os Tribunais anulavam as decisões dos conselhos de sentença pelo país afora. Tudo o que era produzido na fase pré-processual e na fase processual era considerado prova válida sem distinções.

Por outro lado, se analisarmos os julgamentos realizados no Tribunal do Júri desde de 2008, pelo entendimento dos Tribunais Superiores sobre a lei 11.690/08, prova válida para a condenação no Tribunal do Júri passou a ser só aquela efetivamente produzida em audiência de instrução de julgamento. Nesse sentido, e apesar das novas regras e do entendimento jurisprudencial, o Ministério Público continuou a obter condenações no Tribunal do Júri valendo-se tão somente dos elementos informativos do inquérito policial. Contudo, agora tais condenações são consideradas inválidas.

É que os Tribunais Superiores passaram a entender que os elementos de informação do inquérito policial, exclusivamente considerados, não são provas, e não tem validade para a condenação dos réus no Tribunal do Júri, sequer para pronunciá-los(!).

E mais. Não basta mais os elementos de informação obtidos na fase pré-processual serem repetidos em juízo, pois a prova produzida em juízo tem que ter qualidade. Quer dizer, não serve mais só a testemunha do inquérito vir em juízo e repetir o que ouviu dizer sobre a autoria delitiva, é necessário que ela aponte a fonte de seu conhecimento e que também esta seja ouvida em juízo, além de ser prudente obter outras provas de natureza diversa da testemunhal, como uma gravação de vídeo sobre o fato, por exemplo.

Por essas razões, muitos julgamentos realizados no Tribunal do Júri passaram a ser anulados por decisões manifestamente contrária as provas dos autos.

Nesse sentido, não é culpa dos defensores os jurados absolverem seus clientes mesmo com testemunhas presenciais no inquérito policial apontando o réu como autor do crime após a lei 11.690/08. Da mesma forma, o promotor de justiça não tem culpa por ter obtido tantas e tantas condenações de réus, na maioria das vezes pairando sobre estes a dúvida, só com a oitiva de testemunhas e informantes (de ouvir dizer ou não) na delegacia antes da vigência da lei 11.690/08.

Logo, se a culpa não pode ser dos jurados nem dos oradores no Tribunal do Júri pelos julgamentos anulados em função da regra de que a decisão dos jurados não pode ser manifestamente contrária às provas dos autos, a culpa só pode recair sobre o legislador.

Ao contrário do que o legislador fez expressamente ao alterar o caput do art. 155 do CPP determinando a persuasão racional nos procedimentos cujo destinatário das provas são os juízes de direito, não o fez a respeito do sistema de apreciação das provas nos procedimentos do Tribunal do Júri cujos destinatários das provas são (ou deveriam ser!) os juízes de fato.

Os jurados não são nem precisam ser conhecedores da lei. E o legislador esqueceu disso ao deixar que o caput do artigo 155 do CPP seja aplicado tanto aos juízes togados quanto, indireta e veladamente, aos juízes leigos na hora da apreciação da prova.

Não se desconhece a distinção dos princípios do livre convencimento motivado e do livre convencimento íntimo, e a quem eles se destinam. Mas a verdade é que, na prática, a inércia do legislador permitiu a fusão desses princípios no art. 155 do CPP na medida em que os Tribunais Superiores ou de Justiça aplicam a alínea d do inciso III do art. 593 do CPP para anularem as decisões dos jurados com base no art. 155 do CPP ao revisarem as mesmas provas dos autos sob apreciação dos jurados. É dizer, os Tribunais acabam impondo e influenciando os jurados com o convencimento motivado deles (Tribunais Superiores) apontando qual ou quais provas devem os jurados apreciarem e, às vezes, como apreciarem!

O ideal, e coerente, para preservar a convicção íntima dos jurados, seria o legislador ter inserido um outro parágrafo no art. 155 do CPP através da lei 11.690/08, ou por outra lei posterior, prevendo expressamente que a prova válida para apreciação dos jurados seria só aquela produzida pelas partes perante o conselho de sentença no plenário de julgamento, como se pode extrair da lição do professor Aury Lopes Júnior5.

Veja. Se o legislador tivesse previsto na lei 11690/08 que a prova válida para apreciação dos jurados seria só aquela produzida pelas partes no plenário de julgamento, com certeza eliminaria as inconsistências na aplicação da alínea d do inciso III do art. 593 do CPP, ou, pelo menos, reduziria sensivelmente a probabilidade das diferentes interpretações dos Tribunais Superiores acerca da expressão "manifestamente contrária as provas dos autos". Isso porque os elementos de informação produzidos nos inquéritos policiais só serviriam para o Parquet oferecer denúncia e as provas produzidas em audiência de instrução no sumário de culpa só serviriam para o juiz de direito pronunciar o réu. Logo, as provas para condenar ou absolver o réu só podem ser aquelas produzidas no plenário perante os jurados, que são os juízes do fato. A propósito, qual a razão da existência de uma segunda audiência de instrução e julgamento no plenário do júri, se não for para produzir provas perante e para os jurados?!

Só as provas produzidas na presença dos jurados seriam válidas para condenar ou absolver o réu. Só essas provas poderiam servir de base para objetivamente os Tribunais Superiores e os Tribunais de Justiça dizerem se a decisão dos jurados foi ou não manifestamente contrárias as provas a eles validamente destinadas. Observe que se assim previsse o legislador nenhuma suspeita de violação haveria sobre o sigilo e a soberania dos votos dos jurados porque toda a prova por eles consideradas seriam tão somente aquelas produzidas em plenário, inegavelmente conhecidas por todos. Consequentemente, dessa forma, o legislador preveria expressamente a separação dos princípios do livre convencimento íntimo dos jurados e da persuasão racional dos Tribunais Superiores sobre os julgamentos realizados no Tribunal do Júri.

Em arremate, é preciso que o legislador reconheça que é por sua culpa que os Tribunais consideram manifestamente contrárias as provas dos autos as decisões dos jurados resultando em anulações de julgamentos no Tribunal do Júri. Já que os autos do inquérito não podem ser excluídos do processo, nem as provas da fase de pronúncia se destinam aos jurados, melhor seria a previsão expressa de que as provas válidas para apreciação dos jurados são só aquelas produzidas em suas presenças no plenário.

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1. Artigo 5º, XXXVIII, é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

2.  Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: III - das decisões do Tribunal do Júri, quando: d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

3. Art. 472.  Formado o Conselho de Sentença, o presidente, levantando-se, e, com ele, todos os presentes, fará aos jurados a seguinte exortação: Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça. Os jurados, nominalmente chamados pelo presidente, responderão: Assim o prometo. Parágrafo único. O jurado, em seguida, receberá cópias da pronúncia ou, se for o caso, das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação e do relatório do processo. 

4. Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

5. Direto Processual Penal / Aury lopes Jr - 20 ed. - São Paulo : SaraivaJur. 2023. p. 1022

Antonio Oliveira Filho
Advogado Criminalista. Bacharel em direito pela UFMG. Há 20 anos exercendo a advocacia criminal. Defesa criminal em todos procedimentos comuns e especiais, com destaque para o Tribunal do Júri.

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