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U.S. FEPA: Nova ferramenta de combate à corrupção transnacional completa meio ano de vida

Por ora não há um grande caso de FEPA a ser usado como precedente capaz de responder aos questionamentos discutidos neste artigo. O FEPA ainda é novo, completa agora seus primeiros seis meses, mas é provável que até o seu primeiro ano já surjam os primeiros casos de relevo com base nesta nova lei.

20/6/2024

Introdução:

A mais recente lei federal estadunidense de combate à corrupção transnacional, o U.S. Foreign Extortion Prevention Act (FEPA), completa seis meses de existência em 22 de junho de 20241.

Trata-se de um novo instrumento legal destinado a alcançar o lado receptor da corrupção, ou seja, o agente público estrangeiro (i.e., o funcionário público não estadunidense) que “demanda, busca, recebe, aceita ou concorda em receber ou aceitar”2  qualquer coisa de valor, pessoalmente, por meio de terceiros ou entidades não governamentais, de qualquer cidadão estadunidense, residente ou pessoa no território dos Estados Unidos em troca de: (a) ser influenciado na execução de um ato oficial; (b) ser induzido a fazer ou deixar de fazer qualquer ato em violação de suas atribuições oficiais; ou (c) atribuir qualquer vantagem indevida3.

Conforme sabido por aqueles que atuam na área, o U.S. Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), amplamente utilizado pelas autoridades estadunidenses para processar empresas brasileiras durante a Operação Lava-Jato, concentra-se na responsabilização de empresas e seus executivos por pagarem subornos a funcionários de governos estrangeiros. O FEPA, por outro lado, centra-se na punição de funcionários de governos estrangeiros por solicitarem ou aceitarem suborno.

Considerando a tipicidade criminal brasileira, nota-se que a prevenção à corrupção transnacional nos EUA priorizava4 a punição da corrupção ativa da empresa e seus funcionários e, com o FEPA, passou a cobrir também a corrupção passiva, incluindo atos de concussão, uma forma qualificada de extorsão. Consequentemente, o FEPA, ao mesmo tempo em que supre limitações do FCPA, altera a dinâmica processual e a análise de risco de FCPA também para empresas e seus executivos, como explicaremos a seguir.

Inovações do FEPA:

Definição mais ampla do conceito de funcionário estrangeiro: O FCPA já define “funcionário estrangeiro” de forma ampla, incluindo “qualquer funcionário ou agente de um governo estrangeiro ou qualquer departamento, agência ou instrumentalidade deste”. O FEPA vai além, ao incluir “qualquer pessoa que atue a título não oficial” para tais entidades, bem como “qualquer figura política estrangeira de alto escalão”, e ainda cobre pagamentos por vantagem de terceiros.

Sanções mais severas: As disposições antissuborno do FCPA contêm uma multa máxima de US$ 100.000 e prisão máxima de cinco anos, enquanto uma violação do FEPA pode acarretar multas de até US$ 250.000 ou três vezes o valor do suborno e/ou prisão de até 15 anos. Se a tendência ao agravamento das sanções continuar, não seria surpreendente uma futura majoração das sanções do FCPA para manter maior proporcionalidade entre o FEPA e o FCPA.

Ampliação dos poderes do DOJ para abarcar mais casos: O FEPA poderia atribuir poderes para o Departamento de Justiça estadunidense (DOJ) investigar e processar empresas por condutas não abrangidas pelo FCPA, como pagamentos a terceiros e agentes atuando a título não oficial. Assim, dependendo de como o FEPA for interpretado e aplicado pelo DOJ, as empresas podem enfrentar novas investigações e possíveis processos por conspiração para violar o FEPA. Este risco é mais significativo considerando que o FEPA cria incentivos para que agentes públicos cooperem com o DOJ em troca de benefícios processuais, de modo que provas adicionais obtidas no contexto de acordos podem evidenciar violações também ao FCPA.

Principais Desafios para a Aplicação do FEPA:

A expansão da lei antissuborno nacional5 para incluir “funcionários estrangeiros” entre aqueles abrangidos pelas suas proibições introduz potenciais complexidades na sua aplicação.

Com efeito, a inclusão de agentes públicos estrangeiros foi inserida por meio da ampliação do alcance da lei antisuborno doméstica e não por meio de uma emenda ao FCPA que cobra corrupção transnacional. Por conta disso, e seguindo tradição jurídica local, é possível que tribunais estadunidenses interpretem o FEPA através das lentes do suborno doméstico, provavelmente de forma mais restrita do que o FCPA.

Nada obstante, o grande desafio na implementação do FEPA surge no âmbito da cooperação internacional. O FCPA, há muito, gera debates sobre a extraterritorialidade da lei estadunidense. O FEPA certamente trará discussões semelhantes e potencialmente mais complexas, pois terão o agravante de envolver autoridades em outros países. É, de fato, questionável o quão realista é esperar receber multas de funcionários de outros governos e qual seria a efetividade disso para o combate à corrupção transnacional de forma mais ampla.

Como desdobramento desses desafios, vários funcionários estrangeiros acusados poderão argumentar que estão fora do alcance do FEPA, invocando imunidades locais. Além dos debates sobre o alcance das imunidades no plano multijurisdicional, tema com histórico de respeito no âmbito da Corte Internacional de Justiça6, as imunidades poderão ser invocadas na ordem interna como entraves para que o país do agente público realize atos de cooperação jurídica, como levantamento de sigilos ou tomada de depoimentos.

De igual forma, haverá restrição ao processamento de um caso FEPA quando a instrução ou a persecução em solo estadunidense implicar pedido de extradição. Tal possibilidade poderá ser negada, além de gerar eventuais tensões diplomáticas entre os Estados Unidos e os países estrangeiros cujos funcionários foram acusados.

Pode também haver obstáculos por interesses particulares escusos de blindar um agente público que possua influência política ou que possa, ao ser processado, cooperar e implicar outros funcionários com poder político. Isso poderia desincentivar ou dificultar a cooperação internacional tão relevante para o combate à corrupção transnacional9.  

Por outro lado, devido a essas dificuldades, é provável que a aplicação do FEPA foque nos ativos, servindo como base legal para medidas de bloqueio de contas ou sequestro de bens de autoridades estrangeiras, especialmente se esses ativos estiverem em território estadunidense. Os debates sobre extraterritorialidade, possivelmente, também serão levantados, mas, em uma primeira perspectiva, sem o envolvimento do país de origem do agente público.

Não se pode descartar ainda que, dentro do uso das ferramentas de cooperação internacional, autoridades de outros países possam realizar transmissões espontâneas de informações, instituto previsto em convenções como a de Mérida, de Palermo e da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) contra suborno transnacional, ou mesmo em tratados bilaterais de cooperação jurídica em matéria penal. Por essa possibilidade, outro debate que o FEPA pode suscitar é a caracterização ou não do bis in idem internacional.

Por fim, aguardam-se precedentes claros para verificar se os promotores federais estadunidenses fariam acusações dos dois lados da mesma transação corrupta na mesma acusação, usando tanto o FCPA quanto o FEPA. Pela experiência na ordem doméstica, tal medida é viável do ponto de vista jurídico, mas complexa do ponto de vista procedimental perante um júri nos Estados Unidos8.

Conclusão:

O FEPA traz novas consequências à prática de corrupção transnacional que vão além da possibilidade de que funcionários públicos sejam processados.

Para as companhias multinacionais, estadunidenses ou estrangeiras, sujeitas à legislação dos Estados Unidos, como ocorre com certas empresas brasileiras que se beneficiam do mercado de capitais ou do sistema financeiro estadunidense, o FEPA é um novo elemento a ser considerado no âmbito de políticas e procedimentos, alinhando-se com as novas disposições.

O FEPA também muda a dinâmica de investigações internas e governamentais em andamento ou futuras, pois fatos relacionados ao lado do receptor da propina e sua esperada estratégia processual ganham maior relevância. Outro desdobramento inevitável é a necessidade de revisar estratégias de mitigação de riscos e treinamento, especialmente para funcionários com maior interação com agentes públicos de outras jurisdições.

De imediato, as empresas não terão necessariamente que fazer um self-report, mas poderão, de forma inovadora, comunicar de maneira mais ampla pedidos ou exigências de vantagens indevidas, tanto na jurisdição da autoridade infratora quanto nos Estados Unidos, para resguardar suas responsabilidades, reputação e evitar sanções com base no FCPA.

É possível também que agentes públicos estrangeiros denunciem nos Estados Unidos empresas que ofereçam suborno por violações ao FEPA, seja nos casos em que não aceitaram a propina, seja nos que receberam, mas querem retalhar a empresa que o denunciou ou buscar algum tipo de benefício processual atrelado a sua cooperação.

Resta claro, portanto, que a introdução do FEPA adiciona uma nova dimensão à prática de cooperação e self-reporting por parte das empresas multinacionais sujeitas à jurisdição dos Estados Unidos. Sob o FCPA, a prática de self-reporting tem sido, majoritariamente, uma estratégia reconhecida para mitigar multas e outras penalidades, demonstrando a boa-fé e o compromisso da empresa com a conformidade. No entanto, o FEPA oferece uma oportunidade adicional e diferenciada para as empresas, permitindo que se posicionem não apenas como cumpridores da lei, mas também como vítimas de extorsão – o que pode, eventualmente, gerar até um ganho reputacional.

Por ora não há um grande caso de FEPA a ser usado como precedente capaz de responder aos questionamentos discutidos neste artigo. O FEPA ainda é novo, completa agora seus primeiros seis meses, mas é provável que até o seu primeiro ano já surjam os primeiros casos de relevo com base nesta nova lei.

______________ 

1 O FEPA foi aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos em 14 de dezembro de 2023 e entrou em vigor no dia 22 de dezembro daquele ano.

2 No original: “demand, seek, receive, accept, or agree to receive or accept”.

3 No original: (a) “being influenced in the performance of any official act”; (b) “being induced to do or omit to do any act in violation of the official duty of such foreign official or person”; ou (c) “conferring any improper advantage.”

4 Dizemos priorizava pois, antes do FEPA, as autoridades estadunidenses buscavam enquadrar a conduta do agente público estrangeiro como outros crimes, como lavagem de dinheiro, para tentar não o deixar impune. Ocorre, conduto, que isso exigia a comprovação de outros elementos além da prática de corrupção passiva, como a realização de transações fraudulentas.

5 A inclusão de agentes públicos estrangeiros foi inserida por meio da expensão do alcance da lei antisuborno doméstica e não por meio de uma emenda ao FCPA. Por conta disso, é possível que tribunais estadunidenses interpretem o FEPA através das lentes do suborno doméstico, provavelmente de forma mais restrita do que o FCPA.

6 Vejam-se, por exemplo, os casos Congo v. Bélgica (2002) e Alemanha v. Itália (2008), ambos julgados pela Corte Internacional de Justiça.

7 Ao ser questionado sobre o tema, durante palestra proferida em 22 maio de 2024, durante o 13th annual conference on Anti-Corruption, Integrity & ESG-Brazil, em São Paulo/SP, David Fuhr, Chief da FCPA Unit da Fraud Section do DOJ, disse não acreditar que o FEPA reduzirá a cooperação internacional que, na sua visão, já é bastante consolidada entre Brasil e Estados Unidos.

8 A questão é que no âmbito doméstico a disposição do US Code é a mesma seção § 201(b)(1), para corrupção ativa e § 201(b)(2), para corrupção passiva. A existência de duas normas distintas pode eventualmente confundir os jurados.

Marcelo Ribeiro
Sócio da prática de Penal Empresarial do Lefosse Advogados.

Rafael Szmid
Counsel no escritório global Reed Smith. Advogado licenciado no Brasil e nos Estados Unidos (Nova Iorque). Mestre e Doutor, Universidade de São Paulo. LL.M., Stanford Law School. Membro da International Association of Independent Corporate Monitors. Autor do livro "Monitores Corporativos Anticorrupção no Brasil: Um Guia para sua Utilização no Processo Administrativo e Judicial" e de artigos acadêmicos sobre anticorrupção, antitruste e compliance.

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