O presente parecer objetiva esclarecer os aspectos jurídicos da alteração nas disposições relativas à aplicação e regulamentação do piso salarial dos agentes comunitários de saúde e agentes de controle de endemias e da inovação legal sobre o direito ao cômputo do tempo especial após a lei 9.646/22. Abaixo elencamos os principais pontos de atenção da categoria profissional na promulgação da Emenda Constitucional nº 120 de 05 de maio 2022, na publicação do Acórdão pelo STF no Tema 1.132 da Repercussão Geral e na afetação do Tema 347 pela TNU - Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais.
Aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal a PEC 9/22, ora vigente Emenda Constitucional 120 de 05 de mai/22, trata da política remuneratória e da valorização dos profissionais que exercem atividades de agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias.
Como sabido, entre outras garantias, a nova emenda, que acrescenta os §§ 7º, 8º, 9º, 10 e 11 ao art. 198 da CF/88, estabeleceu que o vencimento dos agentes comunitários de saúde e dos agentes de combate às endemias não será inferior à 2 salários mínimos, bem como prevê o pagamento de adicional de insalubridade e aposentadoria especial a estes profissionais.
As disposições representam forte conquista de direitos e garantias fundamentais à categoria, pois implementam um mecanismo de estímulo ao sistema de saúde e de valorização profissional, e não apenas como instrumento de proteção mínima aos servidores estatutários municipais, mas também visa estabelecer um patamar para a remuneração mínima atrelada ao vencimento inicial da categoria.
Acontece que enquanto não publicado o Acórdão do julgamento pelo STF do Tema 1.132 da Repercussão Geral, a aplicabilidade do novo piso salarial de 2 salários mínimos estava pendente.
Recorda–se que o Tema 1.132 da Repercussão Geral, representativo de controvérsia RE 1.279.765, teve seu mérito apreciado no dia 27/4/23, quando o Tribunal, por maioria, deu parcial provimento ao recurso extraordinário para, reformando em parte a decisão recorrida, declarar a constitucionalidade da fixação do piso salarial, nos termos regulamentados pela lei 11.350/06, e determinar que na implementação do pagamento para a categoria aos servidores estatutários municipais, seja considerada a interpretação ora conferida à expressão “piso salarial”, nos termos do voto do relator, o min. Alexandre de Moraes.
Para ele, até o advento da lei 9.646/22, a expressão “piso salarial” para os Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias corresponde à remuneração mínima: soma do vencimento do cargo e da gratificação por avanço de competências.
Dessa forma, a maioria da Corte entendeu que, na implementação do pagamento do piso nacional aos servidores estatutários municipais, seja considerada interpretação de piso salarial das parcelas fixas, permanentes e em caráter geral para toda a categoria.
Mais recentemente, em 19/2/24, o STF publicou o inteiro teor do Acórdão com a tese do Tema 1.132 assim fixada:
- É constitucional a aplicação do piso salarial nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias, instituído pela lei 12.994/14, aos servidores estatutários dos entes subnacionais, em consonância com o art. 198, § 5º, da Constituição Federal, com a redação dada pelas Emendas Constitucionais 63/10 e 120/22, cabendo à União arcar com os ônus da diferença entre o piso nacional e a legislação do ente municipal;
- Até o advento da lei 9.646/22, a expressão "piso salarial" para os Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias corresponde à remuneração mínima, considerada, nos termos do art. 3º, inciso XIX, da lei 8.629/14, somente a soma do vencimento do cargo e da gratificação por avanço de competências.
A fixação da tese colocou fim a argumentação de que a regulamentação pela União de um piso nacional violaria o pacto federativo, uma vez que a responsabilidade pelo pagamento dos vencimentos ficou sob responsabilidade da própria União: os recursos destinados ao pagamento serão consignados em seu orçamento geral, com dotação própria e exclusiva, não havendo desrespeito à competência dos entes federativos.
Assim, eventual diferença entre o piso regional e o piso nacional será coberta com recursos da União Federal, não havendo qualquer motivo para o não cumprimento do piso salarial aos agentes comunitários de saúde e controle de endemias pelos entes da federação.
Outro ponto de extrema relevância trazido pela EC 120/22 foi a garantia à categoria de aposentadoria especial, sem a necessidade de comprovação de efetiva exposição aos agentes nocivos biológicos.
Sabe-se que as funções dos agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias, ainda que tenham como linha precípua de atuação o esclarecimento e verificação das condições sanitárias da população, envolvem o tratamento, reabilitação e manutenção da saúde dos pacientes em contato direto com agentes infectocontagiosos.
Neste raciocínio, pode se dizer ser notório que a função de agente comunitário de saúde coloca os trabalhadores em contato direto com vários tipos de doenças, expondo-os a riscos diversos, potencialmente causadores de danos à saúde. A Jurisprudência consolidou o entendimento de que quando se pondera especificamente sobre agentes biológicos, os conceitos de habitualidade e permanência são diversos daqueles utilizados para outros agentes nocivos, pois o que se protege não é o tempo de exposição, mas, sim, o risco de exposição.
Ou seja, ainda que a exposição ao agente biológico não perdure por toda a jornada de trabalho, bastaria um único contato com o agente infeccioso para que o risco de prejuízo à saúde do trabalhador se torne permanente, de modo a caracterizar a especialidade do trabalho.
Ainda assim, antes da EC 120/22 o trabalhador da área da saúde (como os agentes comunitários de saúde e agente de controle de endemias) tinha que demonstrar sua efetiva exposição ao risco, ainda que intermitente, para resguardar o direito à contagem de tempo especial para aposentadoria. Portanto, a disposição da emenda (vigente após mai/22) representa uma espécie de enquadramento profissional automático da categoria.
Mas resta a dúvida quanto a aplicabilidade da nova disposição aos períodos trabalhados antes de maio de 2022. Nesse sentido a TNU, afetou o Pedilef 5000482-58.2022.4.04.7010/PR, relator juiz federal Neian Milhomem Cruz como representativo de controvérsia no Tema 347 para:
Saber se o § 10 do art. 198 da CF/88, acrescentado pela EC n. 120/22, alcança os períodos de labor anteriores à sua edição, bem como se a inovação legislativa implica a desnecessidade de aferir a probabilidade de exposição ocupacional a agentes biológicos com base na profissiografia.
Além da TNU, é possível que os demais tribunais superiores (STJ e/ou STF) se pronunciem sobre a questão, uma vez que o enquadramento profissional para aposentadoria especial já havia sido abolido da legislação desde 1997. Com o julgamento do tema, trazemos novas informações.
Por ora, nos resta refletir. Principalmente após a pandemia de covid-19 e as constantes epidemias de doenças altamente contagiosas e letais, como a dengue, zika, chikungunya, etc, qual valor e quais garantias queremos para os profissionais diretamente ligados ao cuidado, prevenção e tratamento da população brasileira. Qual tratamento o Estado, na figura de seus Tribunais Superiores, dará aos mais de 400 mil agentes comunitários de saúde e agentes de combate de endemias?