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Entre cachimbos e bergamotas: Problemáticas envolvendo a interpretação dos memorandos de entendimento

Os memorandos de entendimento são como a obra de Magritte: Representações que não mudam sua natureza. Seu nomen iuris não altera sua essência, assim como chamar um cachimbo de outra coisa não o torna funcional para fumar.

17/6/2024

René Magritte, em sua obra “A traição das imagens” pintou um cachimbo junto dos dizeres “Ceci n'est pas une pipe – Isto não é um cachimbo”. Quando questionado sobre a obra, sempre respondia que “claro que não é um cachimbo, tente-o preencher com tabaco!”. 1 Servimo-nos, portanto, da metáfora de René Magritte, para trazer esta grande lição à luz da análise da natureza jurídica dos memorandos de entendimento, diante de discussões que certamente tendem a surgir envolvendo os temas.2

De fato, trata-se apenas da representação de um cachimbo. Uma imagem. Tintas sobrepostas. Na modernidade, pixels em sua tela. Dar outros nomes para tal não alteraria sua especificidade, nem transformaria o quadro surrealista em um instrumento para fumo.

O mesmo acontece no direito brasileiro. Inúmeros debates foram travados ao longo dos anos, a partir da discussão do nomen iuris de institutos jurídicos e instrumentos contratuais.3 A razão desses debates, a nosso ver, decorre da “importação” de institutos estrangeiros para o direito brasileiro, consequência da economia de mercado globalizada, e da sofisticação de tratativas contratuais.4

Frisamos que este artigo de opinião não busca verificar se tal “importação” é positiva ou negativa para o desenvolvimento da doutrina civilista brasileira, mas sim trazer considerações acerca dos MoU - Memorandum of Understanding – Memorando de Entendimentos” e de relembrar alguns aspectos destes quando da interpretação de tal espécie contratual.

Para todos os efeitos, o MoU é um negócio jurídico que vincula as partes, de modo a estabilizar suas pretensões e preparar o terreno para a consecução do negócio final – o contrato definitivo. Trata-se de verdadeiro instrumento preliminar.5

O MoU busca proporcionar uma maior confiança às partes na implementação de um negócio subsequente, pois formalizar as suas intenções em instrumento com valor legal e estabelecer alguns deveres e obrigações6 resulta em maior segurança jurídica do que um mero acerto verbal, facilmente contornável com um “eu não disse isso!”, se desacompanhado de maiores evidências. É aquilo que está estampado no célebre brocardo jurídico: “fato alegado e não provado é o mesmo que fato inexistente”. 7

Assim, as partes buscam instrumentos contratuais que lhes outorguem segurança jurídica quando da negociação de empreendimentos ou até mesmo em acordos de colaboração institucionais.8 Afinal, como fazer com que dois (ou mais) agentes que não possuem um vínculo de afetividade ou alguma relação de proximidade, confiem um no outro para realizarem um negócio?  

Exemplo de tal realização pode ser encontrado no artigo “Doing What You Say: Contracts and Economics Development” 9, em que o professor Robert Cooter realiza uma associação entre o desenvolvimento econômico empresarial e os contratos firmados pelos agentes. Uma das principais ideias desta obra, que buscamos ilustrar aqui – e que entendemos se aplicar aos MoUs –, é que, quando as partes se comprometem a cumprir com uma promessa futura, devem possuir mecanismos para fazer valer essas obrigações, como atribuir consequências pelo descumprimento, de modo que se mostra mais interessante cumprir com a promessa do que descumpri-la.10

Assim, ao estabelecer deveres e obrigações interpartes, esse negócio jurídico segue a tipicidade do Código Civil, que, se não cumpridas, geram consequências11, assim como qualquer outra obrigação. Fazer com que “estranhos” cumpram o que prometeram requer que estes firmem um compromisso legal. O MoU é um desses instrumentos.

E não poderia ser diferente, pois, apesar do nomen iuris ser diferente de um contrato propriamente dito, o que importa são os termos pactuados, e não o nome do instrumento utilizado para constituir a obrigação. No ditado popular, não é o que está por fora que importa, mas sim o que está no interior.

Nesse sentido, ensina o professor Giovanni Ettore Nanni:

15. Ressalte-se que não existe padrão nem disciplina predeterminada a respeito dos direitos e obrigações ínsitos a um memorando de entendimentos nem a uma carta de intenção. Pelo contrário, é um tema em que reina pulverizada gama de aspectos, no qual o nomen iuris do pacto pouquíssimo representa. Tudo varia de acordo com o que convencionam as partes no respectivo caso concreto.

16. Na realidade, as cartas de intenção, que muitas vezes recebem outras denominações, inclusive memorando de entendimentos, apresentam tipologia aleatória, em que cada situação contempla disciplina particular. É impossível categorizar seu alcance, uma vez que nela são inseridas as mais variadas disposições, com realidades absolutamente distintas. Talvez o denominador comum seja que se cuida de instrumento fruto da prática internacional, representativo de estágio interino de negociações preliminares.12 (Grifo nosso)

Para que fique claro: A responsabilização à qual referimos não se trata de uma responsabilização pré-contratual, simplesmente por estarmos tratando de um MoU, posto que antecede o contrato ou negócio definitivo, mas sim de uma responsabilização pelo descumprimento do que foi acordado nesse instrumento, desde que tal responsabilização também seja abarcada pela ordem jurídica, sob o prisma constitucional.13

Afinal, se não houvesse consequências pelo descumprimento do que foi celebrado em um MoU, não haveria razão para se pactuar esse instrumento em primeiro lugar. Especialmente por se tratar de uma obrigação que antecede outra, é necessário ter especial cautela com o que está sendo acordado.

Até porque se cria uma expectativa de que o negócio subsequente venha a se concretizar, caso sejam respeitadas as condições pré-definidas. Sob esta perspectiva, é óbvio que, se uma das partes altera seu comportamento e descumpre o que foi pactuado, tal comportamento torna-se passível de sanção.

Nosso ordenamento jurídico obriga os contratantes a observarem, tanto na execução quanto na conclusão do contrato, os princípios de probidade e boa-fé, conforme estabelece o art. 442 do Código Civil. Daí surge, entre várias outras ramificações do princípio da boa-fé, sua função corretora, atuando como um mecanismo para orientar condutas no âmbito social durante o exercício de direitos.14

O princípio do venire contra factum proprium veda comportamentos contraditórios que minem a relação de confiança recíproca, minimamente necessária para o desenvolvimento de uma relação entre as partes15, servindo de instrumento para resguardar a parte que, levada por uma legítima expectativa, teve como infortúnio acreditar que o acordado com seu “parceiro” seria cumprido.

O professor Anderson Schreiber, em sua obra “A Proibição de Comportamento Contraditório”, destaca que o Direito Civil brasileiro contemporâneo valoriza cada vez mais a tutela da confiança, ao ponto de buscar reprimir comportamentos de agentes que sejam lesivos aos interesses e às expectativas legítimas despertadas no outro.16

Por isso, a nosso ver, não faz sentido deixar de atribuir as mesmas consequências de um descumprimento contratual ao descumprimento dos termos pactuados em um MoU, apenas pelo fato de o nome ser diferente.

Seria como pagar mais caro por uma bergamota do que por uma mexerica17, apesar de o conteúdo ser o mesmo. A única diferença dessas frutas é a forma como são chamadas em diferentes regiões do Brasil.

A reparação do dano causado pelo descumprimento do que foi pactuado no MoU dependerá, especificamente, do que fora pactuado entre as partes na consecução do negócio jurídico, bem como da conduta do infrator. Portanto, não importa se o termo mexerica ou bergamota está previsto como nomen iuris, mas sim o conteúdo do contrato.18

Um exemplo é que, se decorrente de uma conduta contraditória – a qual seria responsável por quebrar a confiança do outro, como um comportamento abusivo – , o ofendido poderá ser indenizado19, não por se tratar de um MoU, mas porque existe disposição em lei que tipifica tal conduta como elemento para a pretensão de direitos.20

Se, por outro lado, a violação ocorrer diante de alguma obrigação nele contida, o devedor responderá por perdas e danos, nos termos do art. 389 e subsequentes do Código Civil. Isso sem mencionar outras penalidades que, se previstas no instrumento, como por exemplo cláusulas penais21, também serão aplicáveis.

Diante do exposto, buscaram os autores trazer uma reflexão acerca das problemáticas envolvendo os memorandos de entendimento. Fato é que não é necessário ser um juiz Hércules22 para verificar que os memorandos de entendimento são, antes de qualquer nomenclatura, negócios jurídicos que, dependendo do estipulado entre as partes, terão obrigações e deveres diversos, não podendo o nomen iuris definir seu cumprimento de modo genérico.

Entre cachimbos e bergamotas, é necessário avaliar o objeto e o conteúdo dos acordos, sem nos apegarmos às nomenclaturas. Seja conhecido como Memorandum of Understanding, Memorando de Entendimentos – no vernáculo brasileiro –, ou acordo de intenções, o que mais importa é o que as partes buscaram pactuar, e não o nome dado ao seu acordo de vontades. Foquemos nisso: em respeitar a vontade livremente manifestada das partes e não em buscar desqualificá-la por meio de alegorias semânticas.

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1 MAGRITTE, René. La Trahison des Images. 1929. 60.33 cm × 81.12 cm (23.75 in × 31.94 in).

2 Mencionamos, principalmente, o caso da XV Edição da Competição Brasileira de Arbitragem da CAMARB. Aproveitamos para congratular a comissão organizadora da competição, bem como reiterarmos que qualquer semelhança com as discussões é mero “caso do acaso”. Disponível em: https://camarb.com.br/wpp/wp-content/uploads/2024/04/xv-cbam-caso-consolidado.pdf.

3 A título exemplificativo, temos as discussões envolvendo a atribuição de nomen iuris nas mais diversas “áreas” do direito, seja na Arbitragem, no Processo Civil, Direito Tributário, entre outras. Respectivamente:

WEBER, Ana Carolina. Comentário ao Artigo 23 da Lei de Arbitragem. In: WEBER, Ana Carolina; e LEITE, Fabiana de Cerqueira. Lei de Arbitragem Comentada – Lei 9.307/1996, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2023, p. 288;  BARBOSA MOREIRA, A sentença mandamental. Da Alemanha ao Brasil. In: Revista de Processo: RePro, São Paulo, v. 25, n. 97, p. 251-264, jan./mar. 2000; e Recurso em Mandado de Segurança nº 16.456/SP, Min. Rel. Min. Aliomar Baleeiro, julgado em 1968;

4 Como exemplos, podemos ver a produção científica civilista no sentido de trazer uma análise do enquadramento de cláusulas “estrangeiras” perante o direito brasileiro. Especificamente: MARTINS-COSTA, Judith. A cláusula break up fee: qualificação perante o direito brasileiro. Revista de Direito Societário e M&A. vol. 1. ano 1. São Paulo: Ed. RT, jan.-jun. 2022; GONDINHO, Juliana Doria. Uma análise da possibilidade de revisão de contratos de take or pay. Tese (Graduação em Direito) Faculdade de Direito,  Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2023; e SILVEIRA, Vladmir Oliveira da. A Cláusula de Hardship nos Contratos de Comércio Internacional. Revista Tributária e de Finanças Públicas. vol. 65/2005. São Paulo: Ed. RT, nov-dez. 2005.

5 SURERUS, Paula. VIEIRA, Maria Cecilia. Definição da Forma Jurídica para a Operação: Aquisição de Ações, de Ativos ou de Estabelecimento? In: SUSSEKIND, Carolina S; FREITAS, Fernanda; CAVALCANTI, Flávia (Org.). Fusões e Aquisições em Foco: Uma Abordagem Multidisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 37.

6 FRITZ, Karina Nunes. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual. Curitiba: Juruá, 2009, p. 27.

7 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, vol. I, 47, ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.478

8 Aqui mencionamos, como exemplo, o Memorando de Entendimento firmado entre o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e a Comissão da Concorrência da Índia (CCI) em matéria concorrencial. O memorando em questão serviu como forma de estabilizar trabalhos futuros que ambas as autoridades antitruste pretendiam desenvolver, em médio e longo prazo, de forma colaborativa. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/acesso-a-informacao/convenios-e-transferencias/acordos-internacionais/2021/Cade%20MOU%20PORTUGUES.pdf.

9 COOTER, Robert. Doing What You Say: Contracts and Economics Development. In: Alabama Law Review, vol. 59, n. 1133 2007-2008, pp. 1107-1133, jan./2007. Disponível em: https://lawcat.berkeley.edu/record/1121213?ln=en&v=pdf. Acesso em: 01/06/2024.

10 Ibid, p. 1116.

11 GOMES, Orlando. Obrigações. 19. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2019. E-book.  Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530986025/. Acesso em: 02 jun. 2024. pp. 9-11.

12 NANNI, Giovanni Ettore. Memorando de entendimentos não vinculante: não ocorrência de perda de chance. Inexistência de violação de obrigação de confidencialidade (parecer). Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 24. ano 7. p. 317-346. São Paulo: Ed. RT, jul.-set./2020.

13 FERREIRA, Olavo Alves. Controle de constitucionalidade e seus efeitos. São Paulo: Método, 2003. p. 21-24.

14 MARTINS COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2018, p. 625.

15 Ibid, p. 676.

16 SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório. 4. ed, rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2016, p.60.

17 Fonte da imagem: https://www.giassi.com.br/laranja_bergamota_kg_32832/p. Imagem das frutas com as bandeiras foram elaboradas pelos autores.

18 Num paralelo, o Professor alemão Jan Schapp observa tal como sendo a concepção da “injustiça”, haja visto que estaríamos tratando de uma violação de um direito que, por gerar uma quebra, apenas poderia ser reparada por meio do nascimento de uma pretensão ao reestabelecimento da medida no caso de violação, servindo tanto para a doutrina da pretensão (Anspruch) de direitos, quanto para a pretensão de ressarcimento na doutrina das obrigações. SCHAPP, Jan. Metodologia do Direito Civil, tradução de Maria da Glória Lacerda Rurack; e Klaus-Peter Rurack. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004, p. 32 e seguintes.

19 SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório. 4. Ed, rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2016, p.108.

20 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Tomo I. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, pp. 25-26, 1954.

21 SEABRA, André Silva. Limitação e Redução da Cláusula Penal. São Paulo: Editora Almedina, 2022, p. 279 e seguintes.

22 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 165.

Lucas Morimoto
Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (Capes/Proex). Advogado Associado em Reis, Souza, Takeishi & Arsuffi Advogados. Coach do Time de Arbitragem da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisador no Instituto EthikAI (Ethics as a service). Membro fundador do projeto "Jovens no Canal" - Canal Arbitragem. Integrante da Lista de Árbitros da Arbtrato.

João Pedro Rönnau
Graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Estagiário na área de Resolução de Disputas Cíveis no Carvalho, Machado e Timm Advogados. Membro da Diretoria Executiva do Comitê de Jovens Arbitralistas (CJA). Ex-competidor de competições de Arbitragem pela Equipe de Arbitragem da Unisinos.

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