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Precedentes vinculantes: Possibilidade de superação pelo juiz singular

Deve-se reconhecer a possibilidade de superação do precedente no julgamento do caso concreto em primeiro grau (art. 489, §1º, VI, CPC/15) em razão das enormes barreiras da jurisprudência defensiva que impedem a (re)discussão nos tribunais superiores.

12/6/2024

O CPC/15, seguindo os passos largos da valorização das decisões judiciais no Brasil, estabeleceu em seu art. 927 os chamados precedentes vinculantes.

Igualdade, coerência, isonomia, segurança jurídica e previsibilidade são princípios que justificam a valorização das decisões judiciais e a necessidade de que os órgãos judiciais sigam o que anteriormente foi firmado por seus hierarquicamente superiores, somente podendo deixar de fazê-lo em razão da distinção (distinguishing) entre o precedente e o caso concreto e/ou da superação (overruling) do precedente vinculante.

O poder vinculante de um precedente não está meramente na tese estampada – no caso dos recursos repetitivos, por exemplo – ou no enunciado de súmula, mas sim nas razões de decidir que levaram o órgão judicial formador do precedente a adotar aquele entendimento. O que vincula é a denominada ratio decidendi1, que nada mais é do que os fundamentos determinantes da decisão. Se somente a ratio decidendi tem força vinculante, é certo que todos os demais fundamentos utilizados pelo órgão formador prescindíveis ao resultado do julgamento incluem-se na fundamentação obter dicta, conforme lição de Luiz Guilherme Marinoni2.

Diante da adoção dos precedentes obrigatórios pelo CPC, não poderiam deixar de existir formas de não aplicação do precedente no caso concreto. Nas palavras de Daniel Amorim Assumpção Neves, é excluída a aplicação do precedente judicial apenas para o caso concreto em razão de determinadas particularidades fáticas e/ou jurídicas, mantendo-se o precedente válido e com eficácia vinculante para outros processos.3

O fenômeno da distinção nada mais é do que a afirmação de que, para o caso em julgamento, não existe precedente. Isso porque a ratio decidenci vinculante outrora firmada não deve ser aplicada no caso em julgamento diante de alguma peculiaridade que o distingue da situação na qual foi formada o precedente. O distinguishing não é objeto da presente reflexão.

Existem situações, no entanto, nas quais o precedente foi firmado em situação similar ao caso em julgamento, mas sua ratio decidendi não mais se justifica, devendo ser adotado entendimento diverso daquele outrora firmado. É o que ocorre na superação.

A superação, denominada pelo direito norte-americano de overruling, pode ocorrer de maneira expressa (express overruling), quando o órgão judicial, em sua nova decisão, revoga o entendimento esposado no antigo precedente ou de maneira tácita (implied overruling), que se verifica quando a nova decisão firma entendimento contrário ao que vinha sendo aplicado, sem qualquer alusão ao posicionamento outrora firmado.

Não se olvida que a superação deve ocorrer com extremo cuidado, ponderação e, o mais importante, raramente.Apesar disso, poderá haver momento no qual o precedente não é mais adequado para regular determinada situação fático-jurídica, impondo-se sua alteração. A bem da verdade, a força vinculante do precedente não impede que uma determinada tese dominante, antes sedimentada, possa ser superada, passando-se a um novo processo de ‘normatização pretoriana’.5

Na doutrina, há muita preocupação com os efeitos da superação do precedente em razão da inegável quebra da confiança ocasionada pela alteração do entendimento firmado.6

No entanto, questão ainda mais complexa e que está longe de resolução é a relacionada à forma de superação dos precedentes, pois o Diploma Processual não estabelece o procedimento a ser adotado, limitando-se a dispor no seu art. 927, §2º, que a alteração do entendimento estampado no enunciado de súmula ou em julgado de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.

Formou-se entendimento majoritário na doutrina7 no sentido de que somente o órgão formador do precedente ou o tribunal hierarquicamente superior poderiam dar por superado qualquer precedente e, a partir de então, formar outro. É dizer que o tribunal hierarquicamente inferior ao formador do precedente e/ou principalmente o juiz singular não poderiam deixar de aplicar o precedente sob o fundamento da sua superação se o tribunal formador do entendimento vinculante não tiver previamente assim o declarado.

Em que pese o entendimento majoritário, fato é que não se pode deixar de autorizar que o juiz singular, vislumbrando a necessidade de superação do entendimento firmado em razão das alterações sociais ou sistêmicas, deixe de aplicar o precedente, ainda que não haja nenhuma movimentação nesse sentido no tribunal prolator do precedente vinculante.

Tal possibilidade é crucial para o adequado funcionamento dos sistemas de precedentes no Brasil, considerando a dificuldade de se levar questões ao conhecimento dos Tribunais Superiores diante da denominada jurisprudência defensiva, como bem explicado pelo Ministro Humberto Gomes de Barros em seu discurso de posse no cargo de presidente do STJ no ano de 2008:

Criado para funcionar como instância excepcional, o Tribunal da Federação desviou-se. Passou a dedicar mais da metade de sua atividade ao trato de agravos de instrumento – apelos indiscutivelmente ordinários.

Essa circunstância nos relega ao status de Corte semi-ordinária.

O exagerado número de feitos intensificou a freqüência dos julgamentos, aumentando a possibilidade de erros, tornando insegura a jurisprudência.

[...]

Para fugir a tão aviltante destino, o STJ adotou a denominada “jurisprudência defensiva” consistente na criação de entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos.8

Nas palavras de Marcelo Mazzola, ao longo do tempo, as cortes criaram filtros ilegítimos, requisitos não previstos em lei e obstáculos abusivos. Tudo isso para tentar ‘gerenciar’ o volume e a carga de trabalho.9

Assim, na prática, a jurisprudência defensiva acaba por dificultar – e por vezes coibir – que matérias que efetivamente necessitam de (re)apreciação sejam levadas ao STJ ou STF.

Na questão em comento, isto é, precedentes que demandariam superação, essa dificuldade resta escancarada por força dos enunciados sumulares 7 do STJ e súmula 279 do STF, que impedem levar ao conhecimento dos Tribunais Superior recursos nos quais se discutem matérias fáticas, mostrando-se ainda mais salutar que a superação do precedente desgastado possa se dar pelo juiz de primeiro grau, quem analisa os fatos.

Assim, se o jurisdicionado não consegue acessar os Tribunais Superiores para provocar discussões acerca da revisão de determinado precedente ultrapassado por força manobras oriundas da jurisprudência defensiva, não há como negar que os julgadores de primeira instância possam deixar de aplicar o precedente que dá sinais de superação.

Sem perder de vista todas as importantes vozes em contrário, é certo que o próprio Código de Processo Civil parece garantir ao magistrado essa prerrogativa ao estabelecer em seu art. 489, §1º, VI que

Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

Deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento (destacou-se).

Ao estabelecer que não se considera fundamentada qualquer decisão que deixa de seguir precedente sem demonstrar a superação do entendimento, e, de outro lado, não se estabelecendo procedimento ou qualquer regra o overruling, o CPC parece permitir que todo e qualquer órgão do Poder Judiciário, na análise do caso concreto, deixe de seguir precedente formado se vislumbrar sua superação. Nesse sentido o entendimento de Leonard Ziesemer Schmitz.10

Essa é, aliás, medida de segurança jurídica, confiança e justiça, já que seria temerário obrigar o juiz a seguir precedente que já se mostra antiquado e, por vezes, até contrário aos valores sociais prestigiados no momento do julgamento do caso concreto.

Desnecessário dizer que ao deixar de seguir o procedente a decisão deve ser extremamente bem fundamentada, devendo essa medida ser aplicada de maneira excepcional, não podendo o julgador confundir a possibilidade de superação do precedente com a simples inobservância do entendimento firmado por ser contrário às suas próprias convicções – o que, por óbvio, desautoriza a não aplicação do precedente.

Em conclusão, novamente sopesando a respeitável doutrina em sentido contrário, a superação do precedente desatualizado pelo juízo singular tem parece ter respaldo no próprio art. 489, §1º, VI do CPC, que nenhuma ressalva faz acerca da legitimação nele contida.

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1 Ou holding no direito norte americano.

2 MARINONI, Luiz Guilherme. Uma nova realidade diante do projeto de CPC: A ratio decidendi ou os fundamentos determinantes da decisão. Revista do Ministério Público. Rio de Janeiro: MPRJ, n. 47, p.181 – 237, jan./mar. 2013.

3 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil – 3. ed. São Paulo: MÉTODO, 2016. p. 503

4 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil – 3. ed. São Paulo: MÉTODO, 2016. p. 509.

5 TUCCI, José Rogério Cruz e. Comentários ao Código de Processo Civil – vol. 4 (arts. 926 a 1.072). Cassio Scarpinella Bueno [coord.]. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 41.

6 Valendo pontuar que o artigo 927, §3º do CPC prevê expressamente a modulação dos efeitos da superação do precedente, ficando a critério do órgão formador estabelecer o alcance dos efeitos e a retroatividade do novo entendimento, o que, ainda que superficialmente, parece solucionar maiores problemas ao deixar sob responsabilidade do poder judiciário a fixação da data a partir da qual o novo posicionamento terá eficácia vinculante.

7 BIZARRIA, Juliana Carolina Frutuoso. Ação rescisória e precedentes. São Paulo: Revista dos Tribunais, Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 110.

8 Discurso Posse Gomes de Barros. https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/16933/Discurso_Posse_Gomes%20de%20Barros.pdf?ref=blog.juit.io. Acesso em 24.5.2024.

9 Primazia de mérito e jurisprudência defensiva dos tribunais. https://www.conjur.com.br/2018-jul-16/marcelo-mazzola-primazia-merito-jurisprudencia-defensiva/#:~:text=H%C3%A1%20muito%20se%20critica%20a,em%20lei%20e%20obst%C3%A1culos%20abusivos. Acesso em 24.5.2024.

10 “De toda forma, o novo CPC está aí, e precisa ser bem utilizado. O inciso VI se apresenta como uma complementação do inciso V, ambos do art. 489, § 1.º. O juiz segue um julgado precedente quando demonstra discursivamente sua aplicabilidade ao caso, e deixa de segui-lo quando, também de forma discursiva, deixa claro tratar-se de caso diferente (portanto, não aplicável), ou quando consegue manifestar um raciocínio que supere o entendimento firmado pelo tribunal que editou o precedente. O argumento da superação é perigoso. Quis o código deixar abertos os limites dentro dos quais isso pode ocorrer – o que é saudável, se bem compreendido. Assim, tanto modificações sociais, históricas, políticas e sociais podem impor solução diversa para a mesma questão, quanto pode um caso concreto apresentar fundamentos novos, não enfrentados até então, que sejam capazes de “derrubar” a tese fixada como precedente. Daí a importância de que o julgamento que servir de parâmetro normativo (a súmula, a “jurisprudência” ou “precedente”, nos termos do inciso VI) seja bem analisado. Todas as questões e fundamentos que já foram enfrentados pelo tribunal naquele caso devem ser considerados superados. A repetição de um daqueles fundamentos não pode, por si só, caracterizar “superação” por parte do juiz que não aplica um precedente. O argumento ou o raciocínio precisa ser novo, a ponto de, contrastado com o precedente, fazer suas razões de decidir enfraqueceram. Superar um precedente significa explicitar sua incompatibilidade com o direito. A decisão que não aplica um precedente por superação pretende ser uma resposta mais adequada ao caso do que a que já foi dada anteriormente”. SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das decisões judiciais. São Paulo: RT, 2015. p. 342.

Flávia Pereira Ribeiro
Pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, da ABEP, do CEAPRO e do IASP. Idealizadora da tese da "desjudicialização da execução civil" que é referência ao PL 6.204/2019/SN. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Sociedade de Advogados.

César Augusto Costa
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo; Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pós-graduado em Direito Imobiliário na Universidade SECOVI/SP; Integrante do 2º grupo de estudos avançados em Processo Civil (GEAP) organizado pela Fundação Arcadas. Advogado no escritório Flávia Ribeiro Sociedade de Advogados.

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