A recente lei 14.843, promulgada em abril de 2024, introduziu alterações significativas nas normas relativas à saída temporária de presos, previstas na Lei de Execução Penal (LEP). Essas mudanças, que incluem a implementação de monitoramento eletrônico e a introdução de critérios mais rigorosos para a concessão do benefício, são fundamentais para entender o atual contexto de reintegração progressiva dos presos à sociedade.
Tradicionalmente, a saída temporária permite que presos em regime semiaberto fortaleçam laços familiares e sociais e participem de atividades que facilitam sua reintegração. Esta concessão é previamente condicionada ao bom comportamento e ao cumprimento de parte da pena. Contudo, as novas diretrizes restringem o acesso ao benefício para condenados por crimes hediondos ou que envolvam violência ou grave ameaça, além de exigirem monitoramento eletrônico e realização de exames criminológicos para progressão de regime.
No Brasil, que possui a terceira maior população carcerária mundial, as questões de superlotação e condições prisionais subumanas são frequentemente apontadas como violações graves dos direitos humanos em decisões judiciais nacionais e internacionais. Por certo, a restrição das saídas temporárias, ao limitar a progressão para regimes menos severos, agravará esses problemas.
Apesar de os crimes cometidos durante as saídas temporárias serem raros e a maioria dos beneficiados retornar ao presídio sem incidentes, a exigência de exames criminológicos e a carência de profissionais para realizá-los podem burocratizar o processo e aumentar a população carcerária por represamento de pedidos.
Aliás, vale lembrar que essa era a realidade à época da exigência do teste para a progressão de regime.E, justamente pela incapacidade do Estado em realizar o ato em prazo razoável, é que a Lei nº 10.792/03 extinguiu obrigatoriedade do exame criminológico, reservando a aplicabilidade a situações específicas, nas quais o juiz deve motivar a decisão com base nas peculiaridades do caso.
Por isso, a introdução do exame criminológico como requisito para a concessão da saída temporária, conforme estipulado pela lei 14.843/24, levanta preocupações.
Primeiramente, persiste a notória carência de psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais qualificados para realizar esses exames em tempo hábil, o que resultará, em muitos casos,no substancial atraso na análise dos pedidos de saída. Além disso, a aplicação desses exames impõe uma camada adicional de burocracia ao processo, aumentando o custo e a complexidade da administração prisional sem qualquer garantia de que essas avaliações contribuem efetivamente para decisões mais precisas sobre a reintegração dos presos.
Como consequência, a prática pode inadvertidamente estender o tempo de encarceramento de indivíduos já elegíveis para benefícios de reintegração, contradizendo os objetivos de ressocialização e recuperação que fundamentam a política de execução penal.
Os vetos presidenciais ao art. 2º do PL foram bastante acertados porque visaram manter as saídas para visitas familiares, sustentados na proteção dos laços familiares, um princípio constitucional reafirmado pela decisão da ADPF 347 pelo Supremo Tribunal Federal, que sublinha a importância dessas medidas para mitigar os efeitos degenerativos do encarceramento.Ao vetar essas alterações, o presidente assegurou que a legislação penal continue a reconhecer a importância da humanização das penas, contribuindo significativamente para os esforços de ressocialização e redução da reincidência criminal.
Portanto, a lei 14.843/24 representa um marco na legislação penal brasileira, sinalizando uma tendência de incremento no controle e rigor. A extinção da saída temporária, defendida por alguns setores, não apenas falharia em reduzir a criminalidade, mas também prejudicaria o processo vital de ressocialização, contrariando diretamente os objetivos de preservação dos direitos humanos e dignidade dos presos.
Portanto, a inclusão do exame criminológico como pré-requisito para a concessão de saídas temporárias configura um equívoco substancial. Esta exigência, embora aparentemente fundamentada na segurança, na verdade impõe barreiras desnecessárias que podem comprometer a eficácia da ressocialização, ao burocratizar excessivamente o processo e potencialmente prolongar o encarceramento por mais tempo do que o permitido por lei.
Para mitigar o provável acúmulo de pedidos represados devido à exigência do exame criminológico, é imprescindível que as secretarias de administração prisional dos estados tomem medidas proativas. É vital promover o aumento do quadro de servidores especializados, como psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, que são fundamentais para a realização desses exames. Além disso, as secretarias deveriam considerar a possibilidade de firmar convênios com profissionais liberais ou entidades privadas qualificadas para realizar essas avaliações. Essas ações ajudariam a evitar atrasos na análise dos pedidos de saída temporária e garantiriam um processo mais ágil e eficiente, alinhado aos objetivos de ressocialização e reintegração dos detentos ao convívio social.
De outro lado, não se pode esquecer que o aumento do quadro funcional somado ao custo material necessários à realização de exames criminológicos em escala industrial – sempre levando em conta um sistema carcerário em constante progressão – exigirá expressivo investimento que irá sobrecarregar ainda mais a cambaleante economia da maioria das unidades federadas.
De fato, ao reconhecermos que aos olhos do administrador existem outras escolhas politicamente mais atraentes do que priorizar a progressão de regime ao apenado, fica evidente o retrocesso no campo político-criminal, seja pela imprestabilidade do exame criminológico para coibir eventual reincidência, seja pela sólida possibilidade de manutenção dos apenados em regimes mais severos por tempo maior do que o determinado em lei.