O SUS foi expressamente previsto na CF/88, que reconheceu a saúde como um direito social e fundamental.
Além disso, o Poder Público, conforme a Constituição (art. 196), tem o dever de garantir a saúde “por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
A fim de implementar a saúde como direito e como dever (prestação obrigatória) do Estado, a Constituição (art. 197) estabeleceu que as ações e serviços de saúde são executadas pelo próprio Poder Público “ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”. O § 1º do art. 199 da Constituição é ainda mais claro ao dispor que “as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde”. Isto é, a Constituição facultou a atuação complementar de instituições privadas de assistência à saúde no SUS.
No plano infraconstitucional, a lei 8.080/90 (lei orgânica da saúde) também previu a participação de entidades privadas no SUS, em caráter complementar, ao dispor que a referida norma regula “as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado” (art. 1º).
Há outros dispositivos da lei 8.080/90 que reconhecem a participação da iniciativa privada, em caráter complementar, no SUS. O § 2º do art. 4º prevê: “a iniciativa privada poderá participar do SUS, em caráter complementar”. O art. 8º estabelece, por sua vez, que “as ações e serviços de saúde, executados pelo SUS, seja diretamente ou mediante participação complementar da iniciativa privada, serão organizados de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade crescente”. O decreto 7.508/11, que regulamenta a lei 8.080/90, em seu art. 3º, também reconhece a “participação complementar da iniciativa privada” no SUS.
A participação das instituições privadas de assistência à saúde no âmbito do SUS ocorre “quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área” (art. 24 da lei 8.080/90), evidenciando o caráter complementar dessa atuação.
De maneira mais específica, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria n. 2.567, de 25/11/16, estabeleceu a participação dos serviços privados de assistência à saúde quando “a oferta de ações e serviços de saúde públicos próprios forem insuficientes e comprovada a impossibilidade de ampliação para garantir a cobertura assistencial à população de um determinado território” (art. 3º).
Ressalte-se que a CF/88 (§ 1º do art. 199) e a lei 8.080/90 (art. 25) estabelecem que, no âmbito da participação complementar dos serviços de saúde ofertados pela iniciativa privada, terão preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. Tais instituições, como as Santas Casas de Misericórdia, historicamente sempre exerceram relevante apoio ao sistema de saúde brasileiro.
Conforme o § 2º do art. 3º da Portaria 2.567/16, do Ministério da Saúde, assegurada a preferência às entidades filantrópicas e sem fins lucrativos, a participação complementar das entidades privadas de saúde com fins lucrativos ocorre apenas se persistir a necessidade quantitativa dos serviços demandados. A norma denota um caráter residual da participação das entidades com fins lucrativos no SUS. Porém, não é raro atualmente haver dificuldades por parte do Poder Público em encontrar entidades filantrópicas e sem fins lucrativos eficientes e com gestão profissional para a prestação de serviços de saúde.
De todo modo, não existe qualquer impedimento para que instituições privadas com finalidades lucrativas participem do SUS. Da mesma forma, uma instituição privada de assistência à saúde com fins lucrativos pode, cumulativamente, prestar serviços no âmbito do SUS e na esfera privada, não havendo norma que imponha exclusividade.
Ao prestar serviço público de assistência à saúde ao SUS, a entidade privada não perde sua natureza de pessoa jurídica de direito privado, havendo apenas o direcionamento de seus serviços, total ou parcialmente, para os usuários do SUS. Na prática, isso significa que a instituição privada usa sua própria estrutura física e tecnológica, bem como seus recursos humanos, para prestar o serviço de saúde ao usuário do SUS.
A contratação pode ocorrer de diversas formas. O credenciamento, por meio de chamamento público, tem sido um mecanismo bastante utilizado para a contratação de entidades privadas de assistência à saúde no âmbito do SUS, conforme previsão na Portaria 2.567/16 do Ministério da Saúde. A propósito, a lei 14.133/21, a nova lei de licitações e contratos, que revogou a lei 8.666/93, definiu expressamente o credenciamento como “processo administrativo de chamamento público em que a Administração Pública convoca interessados em prestar serviços ou fornecer bens para que, preenchidos os requisitos necessários, se credenciem no órgão ou na entidade para executar o objeto quando convocados”.
Além disso, presentes os requisitos legais e a natureza do instituto, é possível a contratação direta por meio de dispensa ou inexigibilidade de licitação. Também existe a contratação por meio do processo tradicional de licitação, regra geral no direito brasileiro, normalmente utilizando a modalidade de leilão.
A participação complementar das instituições privadas de assistência à saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) terá caráter formal, sendo instrumentalizada por meio de contrato ou convênio, aplicando-se as normas de direito público.
A Portaria 2.567/16, do Ministério da Saúde, apresenta definições sobre os instrumentos convênio e contrato. Segundo a norma, convênio é o instrumento “firmado entre ente público e a instituição privada sem fins lucrativos, quando houver interesse comum em firmar parceria em prol da prestação de serviços assistenciais à saúde”, ao passo que contrato é o ajuste “firmado entre ente público e instituições privadas com ou sem fins lucrativos, quando o objeto do contrato for a compra de serviços de saúde”.
Não obstante, parece que, em regime complementar de saúde, o mais adequado seria o uso do contrato, em qualquer caso, e não de convênio, já que se trata invariavelmente de “compra” (contratação) pelo Poder Público em favor do usuário do SUS de prestação de serviços de saúde executados por instituição privada, que será remunerada para esta finalidade.
Seja por meio do convênio ou contrato, é imprescindível que o vínculo entre a entidade privada de saúde e o Poder Público, para fins de participação no SUS, obedeça aos princípios e regras de direito público.
Uma vez vinculadas ao SUS, as instituições privadas passam a submeter-se a um regramento próprio, que inclui a auditoria, fiscalização e avaliação do regulador, bem como o cumprimento de metas.
A remuneração das entidades privadas de assistência à saúde, com ou sem fins lucrativos, na hipótese de contratação por meio de credenciamento e chamamento público, normalmente é baseada na Tabela do SUS (§ 6º do art. 3º da Portaria 2.567/16), em valores que são pré-estabelecidos pelo Ministério da Saúde e aprovados pelo Conselho Nacional de Saúde (art. 26 da lei 8.080/90). Aliás, tem-se reconhecido a falta de atualização desses valores, o que tem gerado prejuízos financeiros às instituições privadas. Por essa razão, o Judiciário tem se debruçado sobre a questão.
Ressalta-se que, na forma do art. 197 da CF/88, as ações e serviços de saúde prestados, em caráter complementar, pelas instituições privadas no âmbito do SUS são de relevância pública.
A esse respeito, em relatório apresentado por Grupo de Trabalho da Comissão de Seguridade Social e Família, da Câmara dos Deputados, coordenado pelo deputado Federal Luiz Antônio Teixeira Jr.1, reconheceu-se a importância da participação da iniciativa privada no SUS:
O poder público, sozinho, não tem capacidade de atender toda a população, por ter serviços em número limitado, ou não especializados em todas as áreas necessárias. Aí que entra a participação da iniciativa privada no SUS, prevista na Constituição Federal, e na Lei Orgânica da Saúde.
Esta participação complementar pode ser contratada pelos gestores, desde que seguidas as normas técnicas e os princípios do SUS. É importante apontar que prestadores com fins lucrativos podem participar do sistema, porém as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos possuem preferência de contratação.
A relevância dos serviços privados é altíssima para a saúde pública, já que são responsáveis por grande parte dos atendimentos especializados do SUS. Na média complexidade, a participação de prestadores da iniciativa privada chega a cerca de 45%, percentual que sobe para 75% na alta complexidade.
As entidades filantrópicas, por exemplo, que são privadas sem fins lucrativos, disponibilizam quase 129 mil leitos para o SUS, o que representa 37,6% do total. Ademais, atendem a mais de 1300 municípios, sendo a única unidade hospitalar em 968.
Portanto, a participação das instituições privadas de assistência à saúde no âmbito do SUS, em caráter complementar, mostra-se extremamente relevante e oportuna. Essa colaboração permite, com capilaridade, a concretização do direito à saúde de maneira universal, igualitária e integral para milhões de pessoas em um país de dimensão continental.
1 Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/arquivos/relatorio-final-do-gt-da-tabela-sus. Acesso em 15/11/2022.