No mês de outubro de 2023 foi instaurado no Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas - IRDR de nº 0005053-71.2023.8.04.0000 (a partir do processo 0762832-71.2022.8.04.0001), que trata sobre a aplicação – ou não – de indenização por danos morais em caráter presumido (in re ipsa), pela cobrança de cesta de serviços por instituições bancárias, quando estas não foram expressamente autorizadas pelos consumidores.
O IRDR é uma ferramenta processual destinada a uniformizar o entendimento jurisprudencial sobre questões unicamente de direito que apresentem repetição em múltiplos processos e emprestem risco de ofensa a isonomia e à segurança jurídica.
O mote, portanto, será o de trazer clareza e segurança jurídica para os consumidores e instituições bancárias, estabelecendo parâmetros sobre as consequências da não existência de contratos assinados pelos consumidores, autorizando expressamente tais cobranças, notadamente no que diz respeito à caracterização de danos morais presumidos (in re ipsa), gerando condenações dos fornecedores em tais hipóteses.
Os serviços bancários de cesta de serviços são oferecidos aos clientes das instituições financeiras, dentre outros momentos, no da abertura da conta. Nada mais são que os conhecidos pacotes de serviços/tarifas, que permitem vantagens econômicas pelo uso, ou seja, melhor contratar uma determinada cesta pagando um preço cheio menor, do que pagar mais utilizando serviço a serviço, de forma individualizada. A regulação específica do tema de cesta de serviços advém da Resolução 3.919/10 do BACEN.
O art. 1o da Resolução indica que ‘a cobrança de remuneração pela prestação de serviços por parte das instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, conceituada como tarifa para fins desta resolução, deve estar prevista no contrato firmado entre a instituição e o cliente ou ter sido o respectivo serviço previamente autorizado ou solicitado pelo cliente ou pelo usuário’.
Já o art. 2º da Resolução apresenta vedação à cobrança dos serviços denominados essenciais, descrevendo-os expressamente. Assim, ao serviço que, nos termos da Resolução, não for denominado essencial, é permitida a cobrança de tarifa bancária. Por exemplo, quanto aos saques, a aludida resolução prevê como essencial a realização de até quatro saques por mês em guichê de caixa. A partir do quinto saque, a cobrança de tarifa é permitida.
Contudo, o que se tem visto na prática são inúmeros casos levados ao conhecimento do Poder Judiciário em que consumidores alegam que não contrataram expressamente o serviço, requerendo a declaração de que as cobranças realizadas pelas instituições bancárias seriam indevidas e, em face disso, tem pleiteado consequentemente indenizações por danos morais.
Já há um Incidente de Uniformização de Jurisprudência – IUJ, no âmbito das Turmas Recursais do Estado do Amazonas que instituiu tese de que ‘o desconto indevido da cesta de serviços bancários não configura ocorrência de danos morais in re ipsa (dano que decorre do próprio fato), devendo a repercussão ser verificada pelo julgador no caso concreto’.
Ocorre que, seja no próprio âmbito dos Juizados Especiais (mesmo diante da existência do IUJ), seja nas Varas Cíveis, há divergências de entendimentos dos magistrados acerca do assunto. Uns entendem que a inexistência de contrato geraria dano moral in re ipsa, outros, não. Eis que o Tribunal Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, objetivando definir o tema, apresentou o seguinte ponto a ser enfrentado:
Quando reconhecida a ilegalidade dos descontos de tarifas em conta bancária do consumidor (pessoa natural) - seja pela ausência de norma editada pelo Banco Central do Brasil ou pela não autorização em termo contratual - o dano moral será considerado in re ipsa ou será necessário que o consumidor demonstre in concreto a violação a algum dos direitos da personalidade?”
O ponto nevrálgico parece ser uma antiga discussão que já percorre há tempos o mundo jurídico, versando acerca da obrigatoriedade – ou não - de realizar a comprovação das perdas e danos – em sentido lato – das ocorrências relacionadas aos vícios – e não aos fatos - dos produtos e serviços, que são exatamente as situações catalogadas nos arts. 18 a 20 do Código de Defesa do Consumidor.
É certo que, para as hipóteses de fato do serviço, que são aquelas que debitam contra a saúde e segurança dos consumidores, já se tem entendimento pacífico de que o dano moral se daria em caráter in re ipsa, mas, nos casos de vício, o dano necessita ser comprovado, já que a Teoria Objetiva não afasta a necessidade de demonstração do dano. Tal teoria afasta a comprovação de culpa, mas o nexo causal e o dano tem que ser demonstrados.
A grande questão prática a ser enfrentada e dirimida, nos casos em que se realizou uma cobrança de serviços – por vezes sem identificação/apresentação do contrato, é saber se há um ferimento na órbita subjetiva por si só, apenas pela cobrança, ou se seria imprescindível a real e efetiva demonstração do dano decorrente da conduta.
O Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas já deliberou entendendo que não haveria tal presunção, fundamentando que a mera cobrança indevida não ensejaria dano moral:
RECURSO INOMINADO. JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. CONSUMIDOR. ALEGAÇÃO DE COBRANÇA INDEVIDA. DANO MORAL IMPROCEDENTE. AUSÊNCIA DE INSCRIÇÃO EM CADASTROS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO. MERA COBRANÇA INDEVIDA NÃO ENSEJA EM DANO MORAL. JURISPRUDÊNCIA EM TESE N.º 74 DO STJ. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE VIOLAÇÃO A DIREITO DE PERSONALIDADE. SENTENÇA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS, POR SEREM IRRETOCÁVEIS. SÚMULA SERVIRÁ DE ACÓRDÃO. ART. 46, LEI 9.099/95. PRESENTES OS REQUISITOS
DE ADMISSIBILIDADE, CONHEÇO DO RECURSO E NEGO-LHE PROVIMENTO. TJ-AM - Recurso Inominado Cível: 0527943-41.2023.8.04.0001 Manaus, Relator: Jean Carlos Pimentel dos Santos, Data de Julgamento: 08/03/2024, 1ª Turma Recursal, Data de Publicação: 08/03/2024)
Essa linha de raciocínio – de ausência de comprovação de violação a direito de personalidade - possui sintonia com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que caracteriza os casos de dano in re ipsa: i) para as hipóteses de fato do serviço (negativa indevida de autorizações de atendimento por operadoras de saúde e compra (antes era ingestão) de alimentos insalubres); ou ii) quando o ato ilícito cometido, por si só, é de tamanha gravidade que gera repercussão social (negativação indevida e ausência de reconhecimento de diploma universitário).
O STJ, inclusive, possui firme entendimento no sentido de que “a configuração do dano moral pressupõe uma grave agressão ou atentado a direito da personalidade, capaz de provocar sofrimentos e humilhações intensos, descompondo o equilíbrio psicológico do indivíduo por um período de tempo desarrazoado” (AgInt no REsp 1655465/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/04/2018, DJe 02/05/2018).
Já para os casos de vício, como por exemplo o de atraso de voo, o STJ tem entendido pela necessidade de se comprovar efetivamente o dano que se diz ter sofrido, como foi observado no julgamento realizado no dia 21/05/2024, pela 4ª Turma do referido colegiado, no AREsp nº 2150150 / SP (2022/0180443-3).
Acredita-se, assim, que, pela distinção entre as hipóteses de fato e de vício do produto ou serviço, seguindo orientação do STJ e de acordo com os regramentos próprios do Código de Defesa do Consumidor e da Teoria Objetiva da Responsabilidade Civil, a tendência é que prevaleça a aplicação da necessidade de comprovação do dano, não podendo haver a presunção do mesmo.
Mais ainda quando, na prática, o que se vê nos processos levados ao Poder Judiciário são argumentos desprovidos de maiores consequências, tratando de valores reduzidos a título de desconto que dificilmente podem prejudicar os consumidores, principalmente quando tais costumam passar anos e anos sem nunca ter feito um único questionamento acerca das cobranças – muito embora tenha vários canais de comunicação para tanto – e, a contrário senso, se beneficiando das mesmas em várias situações (quando mesmo ausente o contrato, há uso de serviços bem acima dos limites essenciais definidos pela Resolução 3.919/2010 do BACEN.
Isso tudo desemboca num aspecto que vem sendo alvo de muitas discussões: se uma possível banalização das condenações por danos morais poderia ser uma porta de entrada de mais e mais demandas, nas quais se busca mais o chamado pedido consequente (os danos morais) do que o pedido principal, que seria a pacificação do conflito social.
O que está em discussão no TJ/AM, portanto, não diz respeito apenas ao assunto de cesta de serviços. O alcance parece ir mais além, já que, como se trata de um dos assuntos mais demandados junto ao Poder Judiciário do Estado, uma possível decisão do IRDR que afaste a presunção de dano moral in re ipsa pode, a um só tempo, aplicar as regras legais de acordo com a essência da Teoria Objetiva, seguir a orientação do STJ e ainda reduzir a quantidade de demandas idênticas distribuídas diariamente, as quais, ao que parece e como dito, buscam apenas – ou primordialmente – a condenação em danos morais, pouco se importando com a pacificação social.