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Impactos da reforma do Código Civil na pecuária

A possível alteração no Código Civil ainda não causa impactos imediatos na pecuária, mas pode conduzir a um novo momento na tutela jurídica dos bens dos animais, inclusive dado o mandado de legislação específica sobre o assunto

5/6/2024

Foi aprovado na Câmara, recentemente, o PL chamado de “Reforma do Código Civil”. O PL em questão foi elaborado por comissão instituída pelo atual presidente do Senado Federal Rodrigo Pacheco (PSD – MG) e liderada pelo ministro do STJ Luís Felipe Salomão. Dentre as alterações trazidas pelo PL chama atenção a nova regulamentação dos direitos dos animais, veja-se abaixo a redação dos dispositivos que atualmente constam do projeto.

Direito dos animais

Art. 19. A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa.

Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.

§1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais;

§2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade.

O objetivo deste artigo é explorar possíveis consequências práticas e concretas que tais alterações podem ter no setor pecuário. A Agropecuária é atualmente uma das principais locomotivas do país, correspondendo a mais de 20% do PIB brasileiro1 nos últimos anos. Portanto, é essencial compreender o impacto que qualquer legislação possa eventualmente ter em um dos setores econômicos que mais gera riqueza e contribui com a economia nacional.

A Pecuária, em específico, é bastante sensível a qualquer legislação que disponha expressamente sobre direitos animais, pelo fato de tais legislações terem a capacidade de impactar os mais diversos estágios da cadeia produtiva. Corriqueiramente quando se fala em direitos dos animais e pecuária pensa-se no abate e atividades de frigorífico, no entanto legislações sobre direitos dos animais podem impactar desde a inseminação artificial, cria, recria e engorda de animais de produção.

Os propostos arts. 19 e 91-A não trazem alterações substanciais de imediato, sendo que o art. 91-A § 2° mantém os animais na categoria de bens. Porém, é necessária uma preocupação específica em qualquer legislação que venha a complementar as leis que atualmente regulamentam a matéria como lei 9.605/98 que possui as previsões de crimes e infrações administrativas direcionadas a animais, a exemplo do crime previsto no art. 32 da referida lei.

Países com forte tradição na pecuária costumeiramente optam por desenhos legislativos que eximem, especificamente, animais de produção e de rebanho a exemplo do Animal Welfare Act § 2132 (g)2 nos Estados Unidos. O Brasil, no entanto, não possui isenção legal de normas de cuidados animais, apenas uma tutela diferenciada em relação a cães e gatos3.

No Brasil não temos precedentes relevantes de aplicação do tipo penal do art. 32 da lei de crimes ambientais a animais de produção, no entanto se restringindo a situações bastante graves como abandono de animais sem dessedentação como o RMS 70.075 SP no STJ de relatoria do ministro Paciornik ou envolvendo inseminação e legislações estaduais como a MC ADI 6.071 PB de relatoria do ministro Alexandre de Moraes.

O fato é que a possível alteração no Código Civil ainda não causa impactos imediatos na pecuária, mas pode conduzir a um novo momento na tutela jurídica dos bens dos animais, inclusive dado o mandado de legislação específica sobre o assunto, porém que isso seja feito tendo cuidado e atenção ao setor pecuário e considerando as peculiaridades do Brasil como o abate halal4 que possui relevância na pauta de exportação de proteínas para países árabes e consiste em métodos heterodoxos de abate de animais.

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1 Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/opiniao-cepea/afinal-quanto-o-agronegocio-representa-no-pib-brasileiro.aspx Acessado em 29/05/2024.

2 (g) The term "animal" means any live or dead dog, cat, monkey (nonhuman primate mammal), guinea pig, hamster, rabbit, or such other warm-blooded animal, as the Secretary may determine is being used, or is intended for use, for research, testing, experimentation, or exhibition purposes, or as a pet; but such term excludes (1) birds, rats of the genus Rattus, and mice of the genus Mus, bred for use in research, (2) horses not used for research purposes, and (3) other farm animals, such as, but not limited to livestock or poultry, used or intended for use as food or fiber, or livestock or poultry used or intended for use for improving animal nutrition, breeding, management, or production efficiency, or for improving the quality of food or fiber. With respect to a dog, the term means all dogs including those used for hunting, security, or breeding purposes.

3 Lei n° 9.605/1998. Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: (Vide ADPF 640)

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.       (Vide ADPF 640)

§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.     (Incluído pela Lei nº 14.064, de 2020)

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.  

4 Disponível em: https://www.investe.sp.gov.br/noticia/mercado-halal-no-brasil-movimenta-entre-us-5-bilhoes-e-us-6-bilhoes-por-ano/ Acessado em 29/05/2024

João Pedro Mendonça
Sócio do escritório Malta Advogados, especialista em Direito da Concorrência, Mestrando e pesquisador da FGV SP.

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