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Análise da PEC 3/22 e a extinção dos terrenos de marinha

PEC 3/22 visa revogar dispositivos sobre terrenos de marinha. Audiência pública debateu seu impacto, com críticas à privatização das praias.

3/6/2024

A PEC 39 de 2011, aprovada em dois turnos na Câmara, agora tramita no Senado como PEC 03 de 2022, tem por objetivo revogar o inciso VII do art. 20 da Constituição Federal e o § 3º do art. 49 do ADCT, dispositivos que incorporam ao patrimônio da União os terrenos de marinha e seus acrescidos.

A PEC foi objeto de audiência pública no dia 27/5/24 e tem como relator o senador Flávio Bolsonaro. A proposta foi notícia em toda a imprensa nacional e nas redes sociais, sobretudo depois que viralizou um vídeo da ONG “euceano” que atribuía a privatização das praias como consequência da aprovação da PEC 03 de 2022.

Uma PEC é discutida e votada em dois turnos, em cada casa do congresso, e será aprovada se obtiver, na Câmara e no Senado, três quintos dos votos dos deputados (308) e dos senadores (49). No caso da PEC 39 de 2011, já foi aprovada em dois turnos na Câmara e agora tramita no Senado para votação e, se aprovada em dois turnos, segue para promulgação.

Em audiência pública, a posição do Governo Federal, representado por Carolina Gabas, representante da Secretaria de Gestão do Patrimônio da União, é que: “a PEC acaba favorecendo essa ocupação desordenada, ameaçando os ecossistemas brasileiros, tornando esses territórios mais vulneráveis aos eventos climáticos extremos, contraria o rumo da legislação de outros países, que vêm avançando na proteção dessas áreas, recomprando ou desapropriando essas áreas, favorece a privatização e cercamento das praias, intensificação dos conflitos fundiários[...]”.

Segundo a representante do Governo Federal, a União está acelerando o processo demarcatório dos terrenos de marinha e pretende em poucos anos chegar há quase 3 milhões de imóveis cadastrados sob seu domínio na SPU - Secretaria do Patrimônio da União.

A partir da PEC com o atual texto, se aprovada, as áreas definidas como terrenos de marinha e seus acrescidos passam a ter suas propriedades assim estabelecidas: Continuam sob o domínio da União as áreas afetadas ao serviço público federal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos, as unidades ambientais federais e áreas não ocupadas. Aqui não há o que se falar em ameaça à preservação ambiental, uma vez que as unidades ambientais federais continuam sob o domínio e gestão da União, assim como os imóveis afetados aos serviços públicos, como, por exemplo, os prédios e equipamentos públicos federais.

A PEC transfere ainda o domínio pleno dos terrenos de marinha e seus acrescidos aos Estados e aos municípios das áreas afetadas ao serviço público estadual e municipal. Hoje, a União já celebra instrumentos contratuais com estes entes públicos de destinação como cessão, permissão, doação e até aluguel de seus imóveis.

Com relação aos imóveis em terrenos de marinha e acrescidos ocupados por cessionários, foreiros e ocupantes regularmente inscritos na SPU, estes terão transferidos os respectivos domínios plenos a estes ocupantes que estejam regularmente inscritos na SPU até a data da publicação da Emenda Constitucional. 

Vale ressaltar que hoje já é possível ao ocupante em regime de aforamento fazer a remição do foro (extinção do aforamento), de acordo com as hipóteses legais. O art. 16-A da lei 9.636/98, com sua redação trazida pela lei 13.465/17 trouxe essa possibilidade. O novo art. 16-A trouxe a remição do foro e a consolidação do domínio pleno em favor do foreiro mediante o pagamento do valor correspondente ao domínio direto do terreno, que corresponde a 17% do valor da avaliação atualizada do imóvel, excluídas as benfeitorias. 

Assim, além do foreiro, a PEC traz a possibilidade do ocupante em regime de ocupação, desde que regularmente inscrito e sem débitos patrimoniais, de também consolidar o domínio pleno do respectivo imóvel. No caso dos ocupantes não inscritos na SPU, a PEC trouxe a possibilidade de aquisição do domínio do imóvel, de forma onerosa, desde que comprovem que a ocupação tenha ocorrido há pelo menos cinco anos da publicação da Emenda Constitucional. A PEC equiparou ao prazo prescricional da usucapião constitucional.  

Na legislação atual, já há possibilidades de aquisição de imóveis da União por ocupantes inscritos mediante a venda direta, no caso de leilão de imóvel fracassado (art. 24-A, da lei 9.636/98), em Reurb (regularização fundiária urbana), conforme a portaria 2.826/20 do MGI/SPU. 

A PEC desonera os ocupantes de terrenos de marinha, a partir da transferência do domínio pleno do imóvel, do pagamento das taxas anuais de foro (0,6%) e de ocupação (2%), além do pagamento da taxa de laudêmio (5%) que é pago por ocasião das transferências onerosas da titularidade desses imóveis.

Em relação as transferências de domínio pleno previstas na PEC, serão: De forma gratuita, nas áreas de habitação de interesse social, bem como as transferências realizas em favor dos Estados e municípios. Já nas transferências realizadas aos particulares, serão feitas de forma onerosa no prazo de até dois anos da publicação da Emenda Constitucional, conforme procedimento a ser definido pela União. A PEC ainda prevê, nas transmissões onerosas de domínio pleno, uma dedução dos valores pagos a título de taxa de foro e de ocupação dos últimos 5 anos pelos ocupantes regulares, corrigidos pela SELIC.

Por fim, a PEC exclui da Constituição Federal o inciso VII do art. 20 da Constituição Federal e o § 3º do art. 49 do ADCT, que trazem como bens da União os terrenos de marinha e seus acrescidos.

Hoje, as receitas patrimoniais decorrentes dos terrenos de marinha e dos seus acrescidos são da ordem de mais de um bilhão de reais por ano e podem aumentar em pelo menos em seis vezes após o fim do processo demarcatório da LPM 1831 (linha de preamar médio) de toda extensão do litoral brasileiro, segundo o ministério de Gestão e Inovação dos Serviços Públicos.

A PEC, diferentemente do que fora alarmado em vídeo que viralizou nas redes sociais da ONG “euceano”, não trata das áreas de praia, previstas em legislação própria, a lei 7.661/88. As praias são bens de uso comum do povo e não se confundem com os bens dominicais da União, como os terrenos de marinha e seus acrescidos. Os bens de uso comum do povo são aqueles bens acessíveis a todos e destinados ao uso geral da população, como rios, mares, estradas e praias. Legalmente, esses bens são inalienáveis e imprescritíveis, conforme estabelece o art. 20, caput, da Constituição Federal, e o art. 99, I, do Código Civil de 2002. O § 3º, do art. 10 da lei 7.661/88, define: Entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subsequente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema. Havendo sobreposição das áreas de praia com os terrenos de marinha e acrescidos, essas áreas não serão passíveis de ocupação pelo particular.

Do ponto de vista ambiental, a ocupação, seja mediante inscrição do particular em regime de ocupação, seja através do ingresso do particular em regime de aforamento, já tem restrições do ponto de vista ambiental. Não podem ser inscritas ocupações que comprometam a integridade de áreas de uso comum do povo, de segurança nacional, de preservação ambiental, ou necessárias à preservação dos ecossistemas naturais. O art. 5º do decreto-lei 2.398/87 conceitua no seu parágrafo único como de interesse do serviço público todo imóvel necessário ao desenvolvimento de projetos públicos, sociais ou econômicos de interesse nacional, à preservação ambiental, à proteção dos ecossistemas naturais e à defesa nacional, independentemente de se encontrar situado em zona declarada de interesse do serviço público, mediante portaria do secretário do Patrimônio da União. 

Uma vez pontuada a diferença das áreas de praia, o conceito dos terrenos de marinha remonta há um longo período histórico no Brasil, tendo suas origens nos tempos do Brasil Colônia. A ideia estava associada à necessidade de manter uma faixa de terra próxima ao mar sob o controle da Coroa Portuguesa, garantindo sua utilização para fins estratégicos, econômicos e de defesa. 

Com a independência do Brasil em 1822 e a subsequente Constituição Imperial de 1824, a responsabilidade pela gestão desses terrenos foi assumida pelo governo brasileiro. A regulamentação específica veio com a lei de terras de marinha de 1831, que estabeleceu a linha do preamar médio- linha, que representa a média das maiores marés do ano de 1831 (LPM 1831), como referência para a demarcação desses terrenos. A extensão de 33 metros (antigas 15 braças craveiras) para o interior, a partir desta linha, foi determinada para assegurar que a faixa de terra sob controle da União, na época Império, fosse suficiente para atender às necessidades de defesa e administração do patrimônio público.

Esse instituto permanece até hoje nos moldes originais, com legislação de regência que faz referência ao ano de 1831 e tem finalidade fundamentalmente de arrecadação patrimonial. A enfiteuse civil inclusive fora extinta no código civil de 2002 e permanece aplicada aos bens da União. Inúmeros hoje são os problemas jurídicos em relação a dualidade registral desses imóveis, que muitas vezes tem registro no cartório de registro de imóveis e na SPU. Muitos ainda são os problemas relacionados à ocupação dos terrenos de marinha: Falta de demarcação dos terrenos de marinha, dificuldade na transferência de titularidade, altos custos impostos ao particular, morosidade dos processos administrativos que tramitam na SPU, sobretudo pelo reduzido quadro de servidores, dentre outros.  

Em sua justificativa, A PEC traz que “que a instituição de tal instituto se deu há mais de cento e cinquenta anos e, como tal, remonta a uma situação que não mais se coaduna com a realidade brasileira. A defesa de nossa costa, por exemplo, não é mais uma justificativa cabível para a manutenção de tal instituto. Além disso, ao longo destes anos inúmeros municípios, alguns extremamente populosos, cresceram ao longo da costa e possuem grande parte de seu território assentados em terrenos de marinha. A consequência disso é a existência de inúmeras construções feitas sob a presunção de firmarem negócios jurídicos perfeitos, muitos deles financiados com recursos do sistema financeiro de habitação, sem que o proprietário saiba que se trata de terreno de marinha. Perdeu-se, com isso, o argumento de que apenas as pessoas mais abastadas eram penalizadas com as cobranças destas taxas. A realidade de muitos municípios mostra que isso não é a regra, pelo contrário, configura-se como uma exceção. A grande maioria dos que pagam estas taxas são pessoas de classe média e classe média-baixa. Tal situação tem causado uma série de prejuízos aos cidadãos e aos próprios municípios. O principal dano ao cidadão diz respeito a tributação exagerada, tendo em vista que aqueles que possuem ou vivem em imóveis situados em terrenos de marinha pagam o foro, a taxa de ocupação conjuntamente com o IPTU -Imposto Predial Territorial Urbano. Mas não é só isso. A atual legislação define, ainda, que se pague o valor das benfeitorias feitas pelo particular do valor do laudêmio. É uma situação clara de que a União está angariando recursos de algo que é de exclusiva propriedade do contribuinte.”

É certo ainda que a PEC precisa de muitos acertos, soluções técnicas e definições, para que não seja gerado um problema ainda maior que onere ainda mais os ocupantes/proprietários de boa-fé desses imóveis. A PEC que tramita desde o ano de 2011 sofre forte resistência política, sobretudo do governo federal, pela ameaça da perda de imensa fonte de receita e de patrimônio. Conclui-se, portanto, que muitas são as questões que ainda precisam ser sanadas, melhoradas e esclarecidas no texto da PEC e muito ainda deve ser feito no sentido de se levar a correta informação à sociedade em meio de tanta desinformação e sensacionalismo. É preciso buscar uma solução juridicamente segura e fundamentalmente justa, seja do ponto de vista do ocupante, seja do ponto de vista da União Federal.

Victor Ponte
Advogado formado pela Universidade Estadual Vale do Acaraú, com especialização pela ESMAFE RS, mestre pela Universidade de Lisboa, autor do e-book "Regularização de Imóveis em Terrenos de Marinha"

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