Migalhas de Peso

A rescindibilidade dos planos de saúde coletivos

Importantes e necessários esclarecimentos acerca das regras e condições de rescindibilidade dos planos de saúde.

4/6/2024

Recentes notícias têm sido veiculadas na mídia dando conta de que planos de saúde coletivos estariam sendo unilateralmente cancelados por grandes operadoras, afetando inclusive pacientes em tratamento e idosos. O assunto tomou tamanha repercussão que CPIs - Comissões Parlamentes de Inquérito estão sendo abertas para investigar essas ocorrências. Sem adentrar em casos pontuais ou concretos, o presente texto busca fazer breves comentários sobre esse polêmico tema (rescindibilidade de planos de saúde) e fazer, ao final, importante alerta.

Desde a criação da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, operadoras e planos de saúde são rigorosamente regulamentados e fiscalizados. Ainda que nas décadas anteriores pudessem existir abusos e ilegalidades, fato é que, desde o início dos anos 2000, a realidade é inteiramente outra. O sistema de saúde suplementar (ou seja, o mercado dos planos e seguros de saúde) situa-se entre as atividades econômicas que mais transformações sofreram nas últimas décadas. A fase sem praticamente nenhuma intervenção estatal deu espaço a uma era marcada por intensa regulação, em que praticamente tudo do setor é objeto de regulamentação e fiscalização pelo Poder Público.

Só no âmbito normativo são inúmeras as leis incidentes, com destaque para a lei Federal 9.656/98, a denominada LPS - Lei dos Planos de Saúde, e para a lei Federal 8.078/90, o CDC. Do ponto de vista infralegal, considerando apenas normas da ANS, são mais de 600. Entidades que de alguma forma fiscalizam esse mercado, também são muitas: além da ANS, pode-se citar a ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, os conselhos profissionais (como o Conselho Federal de Medicina e o Conselho Federal de Odontologia), o CADE, os Ministérios Públicos, as Defensorias Públicas, os Procons e as entidades protetoras independentes, como o IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, assim como o próprio Poder Judiciário. Todos esses órgãos atuam de alguma forma nesse setor e contribuem, direta ou indiretamente, para o resguardo dos direitos e interesses dos beneficiários-consumidores.

A suposta ausência de transparência informacional - questão frequentemente suscitada pelos críticos do setor - há tempos não passa de uma falácia. Por conta justamente da intensa regulamentação, as operadoras são obrigadas a permanentemente disponibilizar inúmeras informações relacionadas à sua atividade e aos seus planos, incluindo no que tange aos atendimentos realizados. Tudo é monitorado. A própria ANS divulga no seu sítio oficial enorme quantidade de informações e dados sobre o setor, inclusive sobre as operadoras em atividade e sobre os planos e seguros de saúde em comercialização.

Além disso, qualquer pessoa que se sinta minimamente lesada - seja com relação a coberturas assistenciais, reajustes ou qualquer outro aspecto envolvendo o seu plano privado de assistência à saúde - pode, de forma simples e gratuita, fazer uma denúncia, obrigando a sua operadora a, em poucos dias, tomar providências, fazer contato para prestar esclarecimentos e apresentar uma resposta formal a ser tecnicamente analisada pela ANS. E se identificado indício de infração às (incontáveis) regras regulatórias, é aberto processo administrativo que pode gerar punições severas, incluindo pesadas multas pecuniárias.

Tudo isso serve para evidenciar que a liberdade que pairava sobre o setor anteriormente ao marco legal estabelecido pela LPS há mais de vinte anos deixou de existir, dando lugar a um ambiente rigorosamente fiscalizado, regrado e monitorado pelo Estado.

Esse contexto, por si só, revela ser no mínimo prematuro presumir que grandes operadoras estariam, deliberadamente, cancelando contratos à revelia da legalidade. Ora, as normas regulatórias, em matéria de rescindibilidade dos planos privados de assistência à saúde, são extremamente rigorosas (e protetivas). Embora a teoria geral dos contratos seja clara ao respaldar, ao menos como regra geral, a possibilidade de resilição unilateral (além, é claro, das clássicas figuras da resolução em caso de inadimplemento ou onerosidade excessiva), o que se observa é que, atualmente, as hipóteses em que as operadoras podem rescindir seus planos e seguros de saúde são efetivamente limitadíssimas.

Cabe rememorar serem três os tipos de planos privados de assistência à saúde hoje existentes no Brasil: individuais/familiares, coletivos empresariais e coletivos por adesão. Essas três modalidades de contratação constam no art. 16, inc. VII, da LPS, sendo que o seu detalhamento se situa na Resolução Normativa (RN/ANS) 557/22 (a qual substituiu a RN/ANS 195/09). Conhecer e não confundir os diferentes tipos de contratos é importante, pois as regras de rescindibilidade variam conforme cada uma das referidas modalidades.

Planos individuais/familiares são aqueles contratados por pessoas naturais/físicas, com ou sem grupo familiar. De acordo com os dados mais atualizados da ANS, 8.8 milhões de pessoas são beneficiárias desse tipo de plano, o que corresponde a cerca de 17,23% da massa total de beneficiários de planos de saúde no Brasil (dados de 30 de abril de 2024 – Fonte: Dados Consolidados da Saúde Suplementar, disponibilizado pela ANS). Esse tipo de plano simplesmente não permite rescisão unilateral pela operadora de plano de saúde. A LPS, no art. 13, esclarece que esse tipo de plano só pode ser unilateralmente cancelado em casos de fraude ou inadimplemento, e desde que atendidos determinados critérios. Se o contratante cumpre com a sua parte (sobretudo no que tange ao pagamento das mensalidades), em tese esse tipo de plano não é juridicamente cancelável.  

Esse é um dos motivos pelos quais, há anos, esse tipo de plano deixou de ser comercializado por diversas operadoras. A impossibilidade jurídica de cancelamento, associada a um ambiente jurídico-regulatório complexo e tremendamente desafiador - vide, por exemplo, a limitação dos reajustes anuais ao índice fixado pela ANS - torna esses planos cada vez menos viáveis para muitas operadoras. Não por outro motivo, observa-se uma tendência de queda no número de beneficiários vinculados a esses contratos: desde março de 2014, a quantidade de beneficiários atrelados a essa modalidade está sistematicamente reduzindo.

Os planos coletivos, por outro lado, são aqueles contratados por pessoas jurídicas. Os planos coletivos empresariais são aqueles firmados por empresas para seus sócios, administradores e colaboradores. A grande maioria dos beneficiários - pouco mais de 70% - está vinculada a esse tipo de plano. E os planos coletivos adesão, por último, são aqueles firmados por entidades de classe, conselhos e associações em favor dos seus associados. Cerca de 12% dos beneficiários encontram-se vinculados a essa modalidade.

Diferentemente do que ocorre com os planos individuais/familiares, os planos coletivos, em teoria, podem ser “livremente” rescindidos pelas operadoras, desde que cumpridos determinados requisitos, alguns legais/regulatórios e outros oriundos da jurisprudência. O requisito mais elementar é o de que as regras (e as hipóteses) de rescisão devem estar previstas no contrato. Além disso, exige-se que as operadoras comprovadamente notifiquem, com a devida antecedência, as contratantes. Fora isso, todos os beneficiários devem ser comunicados acerca do direito de exercício de portabilidade.

Some-se a isso que a jurisprudência do STJ historicamente rechaçou tentativas de resilição unilateral de planos coletivos quando identificados beneficiários internados e/ou em meio a tratamento garantidor de sua sobrevivência. A recorrência desse entendimento restou inclusive consolidada, em junho/22, quando do julgamento do REsp 1.842.751/RS e do REsp 1.846.123/SP, do qual resultou o Tema 1.082, segundo o qual “A operadora, mesmo após o exercício regular do direito à rescisão unilateral de plano coletivo, deverá assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais prescritos a usuário internado ou em pleno tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou de sua incolumidade física, até a efetiva alta, desde que o titular arque integralmente com a contraprestação devida”.

A RN/ANS 593/23, programada para entrar em vigência em setembro/24, também inserirá, no arcabouço regulatório, essa proibição, ampliando-a, inclusive, para os casos em que a rescisão decorra de inadimplemento: “Durante a internação de qualquer beneficiário, titular ou dependente, de plano privado de assistência à saúde que possua cobertura assistencial hospitalar, é vedada, por qualquer motivo, a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato da pessoa natural contratante por iniciativa da operadora ou a exclusão do beneficiário que paga a mensalidade do plano coletivo diretamente à operadora”.

Fato é que não se pode presumir, com seriedade, que diversas operadoras, especialmente as de grande porte, espalhadas pelo Brasil, estejam deliberadamente agindo de forma ilegal. Não se está aqui a defender que a situação não deva ser investigada e que as irregularidades efetivamente constatadas não devam ser devidamente punidas (sempre, é claro, mediante o devido processo legal e o pleno o exercício da ampla defesa e do contraditório).

Todavia, o mais provável é que se esteja diante de um gravíssimo sintoma há muito alertado pelos estudiosos do sistema de saúde suplementar e que, em resumo, diz respeito à sua sustentabilidade. E essa nunca esteve tão em cheque. Muitas varáveis contribuem para isso: a implacável judicialização (que permanentemente amplia as obrigações das operadoras para além daquelas previstas pela regulamentação); a alta e crescente taxa de sinistralidade (em alguns casos superando os 100%, isto é, as despesas dos custos assistenciais superam o arrecadado pelas mensalidades); as fraudes bilionárias (vide os episódios dos pedidos de “reembolso sem desembolso”); as constantes ampliações do Rol de coberturas obrigatórias (quase que semanalmente acrescido de novos procedimentos e medicamentos); e o surgimento (e a incorporação) de tratamentos e medicamentos de alto e altíssimo custo (suportáveis apenas por poucas operadoras).

A esses fatores, some-se, especialmente nos últimos anos, o boom de casos de pacientes pediátricos com transtornos do espectro autista, muitas vezes acompanhados de prescrições para tratamentos cujos valores discrepam de qualquer previsibilidade e que são completamente incompatíveis com qualquer cálculo atuarial. Dizia-se, até recentemente, que os mais jovens custeavam os mais velhos. Hoje, muitas carteiras não conseguem dar conta nem mesmo dos custos dos próprios beneficiários mais jovens, que dirá dos custos dos mais velhos. Os prejuízos operacionais apontados nos últimos anos escancaram essas dificuldades. Não é por acaso que grandes operadoras, de um jeito ou de outro, estão saindo do mercado.

Nesse contexto, obrigar planos de saúde coletivos a manter contratos ad aeternum, especialmente quando comprovado por cálculos atuariais o desequilíbrio econômico, representará mais um passo para aquilo que muitos já dizem ser inevitável: o fim dos planos de saúde como hoje os conhecemos. Lidar com assistência à saúde sempre foi delicado e agora, mais do que nunca, qualquer análise ou manifestação sobre o tema deve ser feita de maneira séria, responsável e científica. Embora a proteção dos consumidores - verdadeiro direito fundamental - não possa ser jamais menosprezada, o que se deve almejar, acima de tudo, é a sua ótica coletiva, isto é, a proteção dos consumidores coletivamente considerados. Para tanto, é essencial evitar que mais e mais operadoras entrem em colapso, com consequências - como o constante encarecimento dos preços - para tudo e para todos. Afinal, o que está em jogo é a saúde suplementar, da qual mais de cinquenta milhões de brasileiros se utilizam.

Bernardo Franke Dahinten
Doutor e Mestre em Direito pela PUCRS. Advogado em Porto Alegre/RS.

Augusto Franke Dahinten
Doutorando e Mestre em Direito pela PUCRS. Advogado em Porto Alegre/RS.

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