Quando da pandemia de Coronavírus (2019-nCoV, COVID-19 ou ainda SARS-coV-2), a partir da declaração da ESPIN - Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional pelo Ministério da Saúde em 3/2/20 (vide Portaria 188/20) surgiu um verdadeiro “regime jurídico excepcional de emergência sanitária” que, em sede de licitações e contratos, foi norteado pela lei 13.979/20.
A lei 13.979/20 trouxe diversas flexibilizações para as regras que tutelavam à época as contratações públicas (no caso, a lei 8.666/93, pois a lei 14.133, a Nova Lei Geral de Licitações e Contratos - NLGLC/21).
Diante do quadro de devastação (que inclusive é difícil de descrever com palavras) provocado pelas severas chuvas que vêm atingindo o RS desde o final de abril - outra excepcionalidade que, a exemplo da pandemia, traz inúmeros desafios para o Poder Público - foi publicada no dia 17/5, em edição extra do D.O.U, a MP 1.221/24 que dispõe sobre medidas excepcionais para a aquisição, por parte dos órgãos e entidades governamentais, de bens e a contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública.
E, assim tal como a lei 13.979/20, a MP 1.221/24 também traz diversas flexibilizações excepcionais ao regime geral das contratações públicas.
Este regime excepcional de contratações pela administração em caso de calamidade pública trazido pela MP 1.221/24 será aplicado apenas às medidas extraordinárias a serem adotadas para o enfrentamento das consequências decorrentes do estado de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, de obras, de serviços, de equipamentos e de outros bens, públicos ou particulares.
O estado de calamidade pública referido na medida provisória é definido, nos termos do art. 1º, VI da lei 12.608/12, como a “situação anormal provocada por desastre causadora de danos e prejuízos que implicam o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido, de tal forma que a situação somente pode ser superada com o auxílio dos demais entes da Federação”.
Nos termos da MP, as medidas excepcionais para a aquisição de bens e a contratação de obras e de serviços precisam ser precedidas de dois documentos formais, o primeiro é a declaração ou reconhecimento do estado de calamidade pública pelo Chefe do Poder Executivo do Estado ou do Distrito Federal ou pelo Poder Executivo federal e o segundo é o ato específico do Poder Executivo federal ou do chefe do Poder Executivo do Estado ou do Distrito Federal, com a autorização para aplicação das medidas excepcionais e a indicação do prazo dessa autorização.
E aqui cabe já cabe um comentário, em que pese a lei 12.608/12 conferir também aos municípios a competência para declarar o estado de calamidade pública, a MP 1.221/24 só admite a declaração ou reconhecimento do estado de calamidade pública quando emitida pelo chefe do Poder Executivo do Estado/DF ou pelo Poder Executivo federal. Assim, em caso de eventual conversão em lei, sendo mantida a atual redação da MP, é possível vislumbrar algum questionamento judicial por parte dos Municípios.
Outro comentário inicial: em seu art. 1, § 3º, a MP 1.221/24 não incluiu as empresas estatais (sociedades de economia mista e empresas públicas) entre os que estão autorizados a flexibilizar seu regime de licitações e contratos por ocasião da ocorrência de calamidades. Considerando que além das estatais que exploram atividade econômica, há também as que prestam serviços públicos (e que, na prática, atuam como autarquias), sugere-se, numa eventual conversão em lei, um maior debate sobre o tema no Congresso Nacional para averiguar se tal exclusão das estatais de fato faz sentido.
A MP traz 7 grandes eixos de flexibilização das regras usuais que regem as licitações e contratos administrativos:
- simplificação das etapas e procedimentos da fase preparatória das licitações;
- ampla possibilidade de contratação direta, que é praticamente tratada como regra geral e dotada de presunção legal quanto às hipóteses de sua incidência;
- redução pela metade dos prazos mínimos para a apresentação das propostas e dos lances, nas licitações ou nas contratações diretas com disputa eletrônica;
- prorrogação dos contratos para além dos prazos estabelecidos na lei 8.666/93 e na lei 14.133/21, por, no máximo, doze meses, contados da data de encerramento do contrato;
- possibilidade de celebração de contrato verbal no valor de até R$ 100.000,00, nas hipóteses em que a urgência não permitir a formalização do instrumento contratual;
- adoção de um regime especial para a realização de registro de preços e;
- cláusulas e prazos diferenciados tanto para os contratos firmados durante a calamidade quanto para os que já estavam em vigor.
O primeiro eixo dispensa a elaboração do ETP (estudo técnico preliminar, que é, nos termos da NLGLC, o documento constitutivo da primeira etapa do planejamento de uma contratação que caracteriza o interesse público envolvido e a sua melhor solução e dá base ao anteprojeto, ao termo de referência ou ao projeto básico a serem elaborados caso se conclua pela viabilidade da contratação) “quando se tratar de aquisição e contratação de obras e serviços comuns, inclusive de engenharia” e só exige o gerenciamento de riscos da contratação somente durante a gestão do contrato (e aqui lembramos que a NLGLC estabelece que as contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos).
O primeiro eixo também simplificou o termo de referência, o anteprojeto e o projeto básico estabelecendo que eles conterão a declaração do objeto; a fundamentação simplificada da contratação; a descrição resumida da solução apresentada; os requisitos da contratação; os critérios de medição e de pagamento; a estimativa de preços (que, por exemplo, admite que contratações similares feitas pela administração pública sejam utilizadas, dentre outros, como parâmetro) e a adequação orçamentária.
Ou seja, se na NLGLC temos um rol taxativo de parâmetros e elementos descritivos do termo de referência, na MP, há um rol alternativo e que ainda suprime elementos como o modelo de gestão do contrato.
Consta ainda do primeiro eixo que, nos casos em que ocorrer restrição de fornecedores ou de prestadores de serviço, a autoridade competente, em caráter excepcional e mediante justificativa (ou seja, motivação), poderá dispensar a apresentação de documentação relativa às regularidades fiscal e econômico-financeira, e delimitar os requisitos de habilitação jurídica e técnica ao estritamente necessário à execução do objeto contratual adequada.
No segundo eixo, a MP 1.221/24 declara expressamente que a Administração Pública está autorizada a dispensar a licitação para a aquisição de bens, a contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia.
O laconismo, a redação direta do texto e a sua localização topográfica na norma, não nos deixam dúvidas, para o regime excepcional de contratações pela Administração em caso de calamidade pública, a contratação direta é a regra, e a licitação é a exceção.
Reforça tal conclusão o fato de o segundo eixo estabelecer que, nas contratações diretas desse regime jurídico específico, a ocorrência do estado de calamidade pública; a necessidade de pronto atendimento da situação de calamidade; o risco iminente e gravoso à segurança de pessoas, de obras, de prestação de serviços, de equipamentos e de outros bens, públicos ou particulares; e a limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de calamidade são todos legalmente presumidos.
Tal presunção é uma repetição da fórmula adotada pelo art. 4º-B da lei 13.979/20, razão pela qual cabem aqui na MP 1.221/24 os mesmos comentários que foram feitos sobre o regime extraordinário de licitações e contratos que incidiu na pandemia, a saber: “Na prática de um ato que tem presunção de legitimidade em relação ao atendimento das condições, significa dizer que não é necessário que o agente da Administração Pública demonstre o atendimento; deve apenas referir o art. 4-B da lei 13.979/20 e o analista do ato e o controlador tem o dever de presumir que as condições, todas as condições, estão presentes. Se o analista ou o controlador entender de modo diverso, ficará com o ônus de provar que as condições não estavam presentes. A presunção atua de dois modos: dispensando a demonstração e invertendo o ônus da prova1”.
Em seu terceiro eixo, a MP estabeleceu uma redução nos prazos mínimos para apresentação de propostas e lances, contados a partir da data de divulgação do edital de licitação.
Mencionada redução foi a seguinte: na aquisição de bens de 4 dias úteis, quando adotados os critérios de julgamento de menor preço ou de maior desconto e de 7 quando adotados os critérios de julgamento de melhor técnica ou conteúdo artístico; técnica e preço; maior lance, no caso de leilão e maior retorno econômico.
Já, no caso de serviços e obras, serão de 5 dias úteis, quando adotados os critérios de julgamento de menor preço ou de maior desconto, no caso de serviços comuns e de obras e serviços comuns de engenharia; 12 dias úteis, quando adotados os critérios de julgamento de menor preço ou de maior desconto, no caso de serviços especiais e de obras e serviços especiais de engenharia; 30 dias úteis, quando o regime de execução for de contratação integrada; 17 dias úteis, quando o regime de execução for o de contratação semi-integrada; 7 dias úteis para licitação em que se adote o critério de julgamento de maior lance e 17 dias úteis para licitação em que se adote o critério de julgamento de técnica e preço ou de melhor técnica ou conteúdo artístico.
O 4º eixo da MP 1.221/24 precisa de um melhor refinamento quando de uma eventual conversão em lei, pois, ao aludir à lei 8.666/93, dá-se a entender que há uma conexão com o 7º eixo, em especial a regra do art. 16, e que, desta forma, a prorrogação dos contratos para além dos prazos estabelecidos na lei 8.666/93, seria apenas e tão somente para os casos em que haja contratos em vigor regidos pelo antigo (e revogado) regime legal das contratações públicas.
Mesmo para os casos em que haja contratos em vigor regidos pela NLGLC, o 4º eixo da Medida Provisória também carece de uma maior reflexão, vez que a lei 14.133/21 prevê prazos de 10 (arts. 108 e 110); 15 (art. 114) e 35 (art. 110) anos, de modo que não nos parece razoável que, mesmo por conta de uma calamidade, simplesmente promover uma prorrogação dos contratos para além destes dilargados prazos estabelecidos na NLGLC.
Mas, por enquanto, cabe o que está escrito, de modo que, contratos em vigor quando da calamidade, sejam regidos pelo antigo ou pelo novo regime das contratações públicas, podem ser prorrogados, para além do prazo legal, por, no máximo, doze meses, contados da data de seus encerramentos.
A MP traz em seu 5º eixo um instrumento que, dada a situação atual do RS, certamente será amplamente utilizado: o teto de até R$ 100.000,00 para celebrar contratos verbais.
Perceba-se, entretanto, que a MP faz referência ao art. 95, § 2º da NLGLC que, por seu turno, assevera que “é nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras ou o de prestação de serviços de pronto pagamento, assim entendidos aqueles de valor não superior a R$ 10.000,00”.
Assim, pela redação da medida provisória, a contratação verbal de até R$ 100.00,00 será válida para pequenas compras ou prestação de serviços de pronto pagamento nas hipóteses em que a urgência não permitir a formalização do instrumento contratual.
Como o art. 95, § 2º da NLGLC, na prática, trata do regime de adiantamento de despesas e de suprimento de fundos, sua menção no texto da MP associado a um valor de até R$ 100.00,00, pode redundar em paradoxos, uma vez que “é de realçar que o regime de adiantamento de despesa ou de suprimento de fundos deve ser aplicado excepcionalmente, para contratos realmente de pequeno vulto ou eventuais, diante de situações que não se subordinam ao processo normal de aplicação de despesa2”.
Para finalizar, a contratação verbal, mormente num valor tão elevado, mesmo na situação de calamidade, precisa naquilo que for possível, ser devidamente comprovada (v.g. apresentação de nota fiscal3), até porque a presunção legal de validade prevista no 2º eixo da medida provisória, não abarca a prestação de contas dos dinheiros públicos.
Sobre aquilo que chamamos de 6º eixo da MP 1.221/24, destaquemos que, nesse regime especial do SRP - Sistema de Registro de Preços aplicável em casos de calamidade, ao contrário da NLGLC, onde há restrição de utilização de SRP em contratações diretas apenas para bens ou serviços por mais de um órgão ou entidade (art. 82, § 6º), há no “SRP da Calamidade” a possibilidade de promover contratações diretas de serviços de engenharia.
O 7º eixo da MP traz um microssistema contratual que repete algumas diretrizes das normas excepcionais da pandemia, como a que preconiza que “na situação excepcional de, comprovadamente, haver apenas uma fornecedora do bem ou prestadora do serviço, será possível a sua contratação, independentemente da existência de sanção de impedimento ou de suspensão de contratar com o Poder Público”.
E aqui cabe um esclarecimento: a medida provisória faz menção à fornecedores que foram punidos com a sanção de “impedimento ou de suspensão de contratar com o Poder Público”, de modo que, os que tiverem sido punidos com a declaração de inidoneidade para licitar e contratar, não poderão ser contratados.
O microssistema traz ainda regras tanto para os contratos administrativos firmados por decorrência da calamidade, quanto para os que estavam em vigor antes da calamidade.
Os contratos firmados por causa da calamidade terão prazo de duração de até um ano, prorrogável por igual período, desde que as condições e os preços permaneçam vantajosos para a administração pública, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento da situação de calamidade pública (já especificamente sobre os contratos de obras e serviços de engenharia, eles terão o prazo de duração de, no máximo, três anos, mas que será automaticamente prorrogado quando seu objeto não for concluído no período firmado no contrato).
Tais contratos poderão ainda conter cláusula que estabeleça a obrigação dos contratados de aceitar, nas mesmas condições contratuais iniciais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, limitados a cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato.
Já os contratos que estavam em vigor antes da calamidade poderão ser alterados (em percentual superior aos limites previstos no § 1º do art. 65 da lei 8.666/93, e no art. 125 da lei 14.133/21, limitado o acréscimo a cem por cento do valor inicialmente pactuado) desde que atendidos todos os seguintes requisitos: motivação com a apresentação da justificativa; concordância do contratado e manutenção do objeto da contratação.
Num geral, a MP 1.221/24 aparenta trazer, numa primeira leitura, diversas ferramentas bastante úteis para facilitar, naquilo que é pertinente às licitações e contratações, o atendimento do interesse público. Contudo, não há prejuízo de seu texto vir a ser incrementado quando dos debates no Congresso Nacional.
1 Fernandes, Jorge Ulisses Jacoby; Fernandes, Murilo Jacoby; Teixeira, Paulo Roberto e Torres, Ronny Charles L., Direito provisório e a emergência do Coronavírus: ESPIN – COVID-19: critérios e fundamentos: Direito Administrativo, Financeiro (Responsabilidade Fiscal), Trabalhista e Tributário: um mundo diferente após a COVID-19, Belo Horizonte: Fórum, 2020, págs. 76/77.
2 Niebuhr, Joel de Menezes, Licitação pública e contrato administrativo, 5ª. ed., Belo Horizonte: Fórum, 2022, pág. 969.
3 “Quer então a lei dizer que uma compra de R$9.000,00 ou um serviço de R$9.500,00 pode ser contratado verbalmente, de boca como se diz, com um fio de barba como garantia e o sinal polegarino de positivo reciprocamente trocado entre as partes? Não existe porventura, em hipóteses assim, nenhum documento formalizador e obrigacional do negócio? É o que a lei parece dispensar ... O texto, que está na L 8.666 e esta lei apenas repetiu, faz duvidar da higidez mental do legislador. Parece piada. Sabe-se, no entanto, que não é assim que ocorre na prática diuturna dos negócios públicos e que mesmo a compra de uma deliciosa paçoquinha, seja açucarada, seja diet, exige ao menos a nota fiscal de compra que evidencie a existência de um contrato de compra e venda. Sem essa nota, o adquirente deverá ser responsabilizado pela despesa que não formalizou e, ainda que não se trate de paçoquinhas, o mesmo se dá relativamente a qualquer negócio, de qualquer valor. Assiste razão, uma vez mais, ao ensinamento bíblico segundo o qual não se pode fiar na letra, que mata ...” (Rigolin, Ivan Barbosa, Lei nº 14.133/2021 comentada: uma visão crítica, Belo Horizonte: Fórum, 2022, págs. 330/331)