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O “recupera RS”: TCU e TCE-RS unidos em prol da população gaúcha

As enchentes no Rio Grande do Sul, atribuídas às mudanças climáticas, exigem medidas do Estado para proteger a população vulnerável. O TCU propôs o "Programa Recupera Rio Grande do Sul" para agilizar a reconstrução, garantindo legalidade e fiscalização.

20/5/2024

As recentes enchentes, provocadas por intensas chuvas, que atingiram a maior parte das cidades do Rio Grande do Sul, para além da grande e necessária mobilização da sociedade e do Estado, têm provocado, paralelamente, análises, ainda que precárias, direcionadas à identificação de suas causas em perspectiva mais geral, pelo risco de multiplicação de eventos desse porte no território brasileiro. Nesse sentido, estudos (e.g. ClimaMeter for Brazil Floods) apontam as mudanças climáticas resultantes da ação humana como fator determinante.

Em um contexto catastrófico, as medidas possíveis são paliativas, contudo, nos próximos meses e anos, o Estado (lato sensu) precisará agir em favor de toda a população, especialmente da mais vulnerável, investindo em diversos programas e ações, sem afastar-se das responsabilizações civil, penal e administrativa pela omissão estatal em relação aos danos causados.

O TCU, baseado nos mesmos fundamentos de excepcionalidade utilizados durante a pandemia da COVID-19, propôs o “Programa Recupera Rio Grande do Sul”. É um conjunto de medidas destinadas a facilitar a identificação, a análise e a tramitação de processos e ações relacionados à reconstrução do estado gaúcho, promovendo, dentro da legalidade e sem comprometer a fiscalização e o cuidado com os recursos públicos, a flexibilização da regular “burocracia”.

Na dinâmica de competência e atuação da Corte de Contas da União, mais uma vez fazendo uso da experiência trazida pelo enfrentamento das consequências da pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, foram tomadas duas providências principais e imediatas.

A primeira foi uma análise da necessidade de admitir-se um novo regime de contratação para atender as demandas urgentes da calamidade que afligiu a maior parte da população do RS. O entendimento foi de que a lei 14.133/21, NLLCA - Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, já apontaria um caminho procedimental que atende a situação anormal, pelo menos neste momento inicial.

O art.75 da NLLCA, que aponta situações expressas nas quais a licitação é dispensável, especialmente no inciso VIII, complementado pelo § 6º, in verbis:

VIII - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso;

§ 6º Para os fins do inciso VIII do caput deste artigo, considera-se emergencial a contratação por dispensa com objetivo de manter a continuidade do serviço público, e deverão ser observados os valores praticados pelo mercado na forma do art. 23 desta lei e adotadas as providências necessárias para a conclusão do processo licitatório, sem prejuízo de apuração de responsabilidade dos agentes públicos que deram causa à situação emergencial.

Outra ação determinada pela presidência do TCU foi a autuação de três processos de acompanhamento. Tais processos são instrumentos de fiscalização utilizados para dois propósitos, conforme o Regimento Interno do Tribunal, in verbis:

I – examinar, ao longo de um período predeterminado, a legalidade e a legitimidade dos atos de gestão dos responsáveis sujeitos a sua jurisdição, quanto ao aspecto contábil, financeiro, orçamentário e patrimonial; e II – avaliar, ao longo de um período predeterminado, o desempenho dos órgãos e entidades jurisdicionadas, assim como dos sistemas, programas, projetos e atividades governamentais, quanto aos aspectos de economicidade, eficiência e eficácia dos atos praticados.

Destarte, no contexto do “Programa Recupera Rio Grande do Sul” serão acompanhadas ações de reestruturação. Tarefa que se revela, a cada novo dia, mais desafiadora e até hercúlea.

Se na mitologia o herói Hércules conseguiu, sozinho, realizar os 12 trabalhos impossíveis, que lhe renderam honra e glória eternas, no Rio Grande do Sul, somente com muitos braços e corações, coragem, determinação, recursos e responsabilidade, o Estado se reerguerá.

Dos três processos de acompanhamento, o primeiro está a sob relatoria do ministro Vital do Rêgo e analisa as contratações em geral e as obras de infraestrutura. O segundo, que será relatado pelo ministro Jhonatan de Jesus, avaliará se as ações do Governo Federal mantêm conformidade com as normas de finanças públicas, observando, ainda os impactos fiscais das medidas tomadas. Por fim, o terceiro processo se dedicará às medidas e aos recursos aplicados para as atividades de defesa civil, sendo designado como relator o Ministro Augusto Nardes.

Sem prescindir do indeclinável zelo pelos recursos públicos, o que norteará a atuação do TCU é a solidariedade. Como dizia Franz Kafka: “A solidariedade é o sentimento que melhor expressa o respeito pela dignidade humana”.

Ainda no campo da cooperação interinstitucional, importante destacar as iniciativas de diálogo e parceria do TCU com os poderes Executivo e Legislativo da União, e, em especial, na garantia de suporte à atuação do TCE-RS - Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul.

O TCE-RS sofreu diretamente com as inundações que atingiram a capital do Estado, comprometendo, inclusive, sua estrutura física e seus sistemas de comunicação, ocasionando na suspensão dos prazos. Em um cenário de imensas incertezas, a Corte estadual de contas elaborou uma cartilha intitulada “Perguntas e respostas: calamidade pública nos Municípios do Estado do Rio Grande do Sul: eventos climáticos de chuvas intensas” para orientar gestores públicos gaúchos quanto aos instrumentos legais e procedimentos que podem ser utilizados no enfrentamento da crise.

Reconhecendo a insólita dimensão e a gravidade do problema, o TCE-RS admite que o material não é definitivo, podendo ser ajustado conforme a evolução da situação que se revelará após as chuvas e o recuo das águas.

A cartilha trata de importantes questões conceituais, ainda que básicas, como a diferença entre “situação de emergência” e “estado de calamidade pública”, bem como a classificação dos desastres em três níveis. Contudo, sem dúvida, há enorme interesse em questões práticas, como a base legal que respalda a contratação de bens e serviços nos casos de enfrentamento de emergências ou calamidades públicas, o já citado Art. 75, VIII, da lei 14.133/21. Mas o TCE-RS esclarece que:

[...] a contratação, nestes casos, deve se restringir à parcela mínima imprescindível para afastar a concretização do dano ou a perda dos serviços públicos executados, devendo a solução definitiva, em regra e conforme as peculiaridades de cada caso, ser objeto de licitação. Isso porque da redação dos dispositivos extrai-se que o Administrador não pode se valer de situação emergencial ou calamitosa para aquisições que transcendam o objeto necessário ao afastamento do risco.

E mais, quanto a possível dispensa das formalidades exigidas pela NLLCA, elucida que: “[...] a contratação emergencial precisa estar MINIMAMENTE INSTRUÍDA em processo administrativo que a respalde, haja vista que a flexibilização conferida às situações excepcionais não pode dar suporte a irregularidades e abusos”, informando, expressamente quais os elementos mínimos que se mantém obrigatórios.

O Guia coloca limites bem definidos. Por exemplo, se por um lado estão dispensados de licenciamento ambiental estadual as obras de reconstrução/reforma de infraestruturas de equipamentos públicos afetados pelas inundações, apenas para aqueles municípios declarados em situação de emergência ou estado de calamidade pública, no caso de “contratação direta para fins emergenciais”, não se justifica a ausência de pesquisa de preços.

Admite-se, baseado na Constituição Federal, a possibilidade de contratação de servidores temporários pela administração de municípios atingidos pelos eventos climáticos, mas não é prescindível a autorização concedida por lei específica, a não ser que o Poder Legislativo municipal esteja inoperante, situação na qual o Guia recomenda:

[...] que o prefeito, se for o caso, solicite comunicação formal do chefe do Poder legislativo, acerca da impossibilidade de deliberação de projeto de lei autorizativo da contratação temporária por excepcional interesse público. Além disso, nessa excepcionalíssima hipótese, que autorize mediante decreto as contratações necessárias, indicando a existência prévia de decreto de calamidade pública.

São, no total, 28 perguntas e respostas, todas de grande importância para o cotidiano da gestão pública municipal. Os esclarecimentos prestados auxiliarão os gestores públicos dos municípios gaúchos, que precisarão ser “administradores-hércules” nos próximos meses, para superar a crise atual e suas consequências futuras, a curto, médio e longo prazos.

Ao mesmo tempo que se revela um documento fundamental para os municípios do Rio Grande do Sul, deve servir de paradigma para outros entes federativos, visto que, os estudos indicam uma “realidade incômoda”: de diferentes formas e intensidades, mais cedo ou mais tarde, todo o território brasileiro estará sujeito a catástrofes provocadas pelas mudanças climáticas. 

Nossa solidariedade à população do Rio Grande do Sul. Parabéns ao TCU e ao TCE-RS pelas iniciativas!

Giussepp Mendes
Advogado especialista em direito administrativo público.

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