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No embate “Musk vs Moraes” quem perde é o Direito

A sociedade e o Direito perdem muito com decisões muito acaloradas e pouco fundamentadas.

20/5/2024

No início desse mês, os cenários jurídicos e políticos ganharam uma pauta interessante para debater. Os jornais nacionais noticiaram movimentação de parlamentares norte-americanos acerca de situação ocorrida entre o atual proprietário do “X” e um ministro da Suprema Corte brasileira. No início do mês passado, Musk; (i) direcionou investidas contra o ministro da Suprema Corte brasileira; (ii) alegou que iria retirar suspensão de perfis imposta por determinação de Alexandre de Moraes; (iii) que não acataria futuras ordens do ministro e; (iv) alegou que as ordens de bloqueio enviadas ao Twitter continham uma ilegal determinação de que os afetados não poderiam ser informados acerca dos reais motivos das suspensões.  Moraes, em resposta, incluiu Elon Musk em um dos inquéritos de longa tramitação perante o STF e determinou aplicação de multa diária de R$ 100.000,00 em caso de descumprimento das determinações impostas.

Revivido o tema pelos congressistas americanos, pela imprensa brasileira e pela repercussão nas redes sociais, parece adequado uma análise jurídica da decisão emanada pelo magistrado brasileiro.

Embora, para alguns, possa parecer correta a decisão (clicando aqui), uma análise jurídica e desapaixonada demonstra o contrário. Inicialmente, ao mencionar a possibilidade de não cumprir decisões futuras do STF, Musk faz uma especulação, portanto, não se trata de fato passado ou presente. De fato, se desconhece efetivo descumprimento de alguma decisão judicial (fato passado) ou descumprimento atual (fato presente), logo, qualquer investigação acerca dessa hipótese (“fato” futuro) implica, necessariamente, a admissão de investigação de possíveis eventos futuros. Isto é, algo incabível na tutela processual penal.

Na verdade, determinar uma multa para eventuais descumprimentos que sequer ocorreram aproxima a esfera processual penal (que rege o inquérito), em uma espécie de poder geral de cautela do processo civil, algo incompatível em âmbito processual penal.

Mas ainda que façamos a análise pela ótica de eventual obstrução de justiça, sustentada pelo ministro, e que seria a possibilidade mais palpável de ter ocorrido no contexto do que foi publicado pelo bilionário, ainda persistem problemas. Pois bem: a possível obstrução, se caracterizada por algumas publicações, como entende Moraes, seria fato determinado e específico. Vale dizer: a ocorrência daquilo que o próprio ministro entende como obstrução de justiça encontraria lugar certo e palpável, de modo a não deixar margem para outra atitude que não seja a instauração de inquérito específico para apurar a (in)ocorrência desse crime. Mas não a inclusão em procedimento cujos objetos envolvem fatos passados.

Até porque a obstrução, se confirmada, teria ocorrido no mês de abril/24 e não há época dos fatos sob investigação nos inquéritos 4.781, 4.874, 4920, 4921, 4922 e 4923. Mesmo que se entenda – e o ministro vê dessa forma – por uma conexão dessas manifestações com todo o contexto das milícias digitais, da tentativa de golpe, as palavras que caracterizariam obstrução ainda assim foram publicadas no presente e não no passado. De modo que a única posição adequada seria investigar apenas essa conduta em procedimento apartado dos demais, para evitar tumulto.

Não custa lembrar que o inquérito 4.784 já aniversariou 5 anos e não possui conclusão. Além de todo esse contexto problemático que orbita a atualidade das manifestações de Musk em contraste com os fatos já em investigação, a equação se torna mais longa e complexa quando se pauta a data de aquisição do antigo Twitter atual “X”, pelo estadunidense, qual seja, abril/22. Isto é, já estávamos próximos de presenciar o fim do mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, mandato esse marcado pelo início dos atos sob investigação nos diversos inquéritos já citados. Não há plausibilidade alguma em sustentar – e isso foi insinuado na decisão – alguma instrumentalização pelo atual dono da empresa, pois as milícias já operavam há muito tempo antes da aquisição da plataforma por Elon Musk.

Acaso a argumentação acima não seja convincente o bastante, o argumento legal não permite que haja dúvidas. Além da suposta obstrução de justiça, teria Musk praticado o delito de incitação ao crime. Pois bem: ambas as condutas são persecutidas por meio de ação penal de iniciativa pública. Portanto, há aplicação do art. 40 do CPP.

Determina o mencionado artigo:

Artigo 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia.

Bom, não parece haver dúvidas de que a atitude correta seria o encaminhamento das publicações ao MP para que ele tomasse as atitudes cabíveis. De fato, não há base legal para o próprio ministro agir de ofício e incluir pessoas nas investigações que estão sob seu comando.  O desrespeito ao art. 40 do CPP possui relevo especial, pois tal artigo, para ter sua incidência afastada, deveria ter sua constitucionalidade analisada com a consequente declaração de não recepção. Apenas dessa forma, seria legitimo deixar de lhe aplicar.

O constitucionalista gaúcho, Lenio Streck, citou Teori Zavascki, para explicar a ilegitimidade de afastar aplicação de lei que, não declarada inconstitucional, estaria hígida, portanto, insuscetível de não obediência, quando o falecido ministro do STF deixou de aplicar o art. 283 do CPP, sem, contudo, declarar de forma incidental sua inconstitucionalidade. Foram as lições do jurista gaúcho:

“Segundo: examinei o voto do ministro relator, Teori Zavascki e não encontrei sequer menção ao art. 283 do CPP. Também na declaração final do dispositivo lida pelo ministro presidente foi possível detectar qualquer coisa nesse sentido. Consequentemente, esse dispositivo continua hígido, correto? Para tanto, com toda a vênia, vou usar Zavascki contra Zavascki. Explico: é do ministro Teori Zavascki, quando ainda no STJ, o brilhante voto na recl. 2.645, que diz (e já citei no mínimo uma dezena de vezes essa bela passagem): não se admite que seja negada aplicação, pura e simplesmente, a preceito normativo “sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade”. Perfeito! Resposta correta: não se pode deixar de aplicar um texto normativo sem lhe declarar, formalmente, a inconstitucionalidade.”1

Temos, portanto, dois artigos de lei violados de uma vez, quais sejam, o art. 40 e o 3-A, ambos do CPP.

O art. 3-A - incluído pelo “Pacote Anticrime” - é expresso ao vedar iniciativas de ofício pelo juiz na fase de investigação. Não há margem para interpretação diversa. O dispositivo explicita em qual fase da persecução o juiz não pode agir de ofício, qual seja, a investigativa. Antes que alguém fundamente En passant que o STF emprestou interpretação conforme ao art. 3-A, a conclusão do Supremo não modificou em nada a vedação a iniciativas de ofício na fase de investigação. Bom, ao menos é o que está descrito na ementa do julgado em que a Corte apreciou a constitucionalidade do “Juiz das Garantias”. Nesse sentido, é a alínea “f” da ementa do acordão:

“(f) A legítima vedação à substituição da atuação probatória do órgão de acusação significa que o juiz não pode, em hipótese alguma, tornar-se protagonista do processo. Simultaneamente, remanesce a possibilidade de o juiz, de ofício: (a) “determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante” (art. 156, II); (b) determinar a oitiva de uma testemunha (art. 209); (c) complementar a sua inquirição (art. 212) e (d) “proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição” (art. 385)”. (Grifos nossos).

Embora a ementa seja suficientemente clara ao destacar que apenas na fase instrutória é que há permissão para, em casos pontuais, o juiz agir de ofício, o último item acerca do art. 3-A encerra toda discussão que orbite esse tema:

“(i) Nestes termos, o novo art. 3º-A do Código de Processo Penal, na redação dada pela lei 13.964/19, deve ser interpretado de modo a vedar a substituição da atuação de qualquer das partes pelo juiz, sem impedir que o magistrado, pontualmente, nos limites legalmente autorizados, determine a realização de diligências voltadas a dirimir dúvida sobre ponto relevante.”

Dúvida alguma remanesce acerca da vedação de atuações de ofício pelo juiz durante a fase de investigação. Além disso, o STF foi expresso ao permitir que as intervenções oficiosas ocorressem apenas em caso de dúvida. Vale dizer: sem dúvida, ficará ausente, mesmo na excepcionalidade, a permissão a atuações de ofício. Dúvida é algo que o ministro não demonstra ter, eis que vislumbra dolo, dois crimes em princípio e até mesmo os contornos dessas supostas infrações, logo, inviável, tecnicamente, sua atuação oficiosa.

Além disso, toda decisão que instaura uma investigação deve ser fundamentada no sentido da descrição do objeto crime, cuja observação do Estado recairá. De fato, embora o Ministro faça uma menção de tipo penal, não há precisão sobre como, em tese, teria ocorrido a incitação à prática de crime. Portanto, ocorreu violação ao dever de fundamentação das decisões judiciais insculpido no art. 93, IX, da CF.

A menção à obrigação de fundamentação contida nesse dispositivo deve ser lida no sentido de motivação adequada para cada tipo de decisão judicial existente no ordenamento. Ou seja: decisão judicial corresponde, obviamente, a um gênero do qual decorem suas espécies. E essas decisões devem obediência a uma argumentação correlacionada à sua espécie. No caso em apreço, a decisão emanada por um juiz que decide incluir um indivíduo em uma investigação deve obediência aos critérios de fundamentação que esse tipo de decisão (de inclusão) demanda.

E isso, de fato, não correu. Na verdade, tudo o que foi desenvolvido no despacho orbita a um tumulto atual e futuro ao funcionamento dos trabalhos da Corte Suprema relacionados à apuração do cenário caótico que ocorreu no país nos últimos anos. Mas isso tudo não induz incitação à prática de crime, nas publicações feitas pelo Elon Musk. Outro vício legal consiste na dedução, pelo ministro, de que haveria ocorrência de “(...) abuso de poder econômico, por tentar impactar de maneira ILEGAL a opinião pública(...)”, Elon Musk não é político eleito e nem sequer candidato, portanto, o único abuso de poder econômico que (em tese) poderia cometer seria aquele contido no decreto 52.025/63. Todavia, não há nenhuma conduta descrita naquela norma que se amolde às publicações feitas recentemente. Conforme o art. 2ª do mencionado decreto:

Art. 2º Consideram-se formas de abuso do poder econômico:

  1. dominar os mercados nacionais ou eliminar, total ou parcialmente a concorrência por meio de:
  1. ajuste ou acôrdo entre emprêsas, ou entre pessoas vinculadas a tais emprêsas ou interessadas no objeto de suas atividades;
  2. aquisição de acervos de emprêsas ou de cotas, ações, títulos ou direitos;
  3. coalizão incorporação, fusão integração ou qualquer outra forma de concentração de emprêsas;
  4. concentração de ações, títulos, cotas ou direitos em poder de uma ou mais emprêsas ou de uma ou mais pessoas físicas;
  5. acumulações de direção, administração ou gerência de mais de uma emprêsa;
  6. cassação parcial ou total das atividades de emprêsa, promovida por ato próprio ou de terceiros;
  7. criação de dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de emprêsa;

II. elevar os preços sem justa causa, nos casos de monopólio natural ou de fato, com objetivo de aumentar arbitrariamente os lucros sem aumentar a produção;

III. provocar condições monopolísticas ou exercer especulação abusiva, com o fim de promover a elevação temporária de preços por meio de:

  1. destruição ou inutilização, por ato próprio ou de terceiros, de bens de produção ou de consumo;
  2. açambarcamento de mercadorias ou de matéria prima;
  3. retenção, em condições de provocar escassez, de bens de produção ou de consumo;
  4. utilização de meios artificiosos para provocar a oscilação de preços, em detrimento de emprêsas concorrentes ou de vendedores de matérias primas;

IV. formar grupo econômico, por agregação de emprêsas em detrimento da livre deliberação dos compradores ou dos vendedores por meio de:

  1. discriminação de preços entre compradores ou entre vendedores ou fixação discriminatória de prestação de serviço;
  2. subordinação de venda de qualquer bem à aquisição de outro bem ou à utilização de determinado serviço, ou subordinação de utilização de determinado serviço à compra de determinado bem;
  1. exercer concorrência desleal, por meio de:a) exigências de exclusividade para propaganda publicitária;

b. combinação prévia de preços ou ajuste de vantagens na concorrência públicas ou administrativa.

Nem mesmo a razoável extensão do catálogo acima salva a decisão. Logo, recai sobre o despacho um total descrédito acerca de sua fundamentação. Cabe aqui o questionamento: como se entende como bem fundamentada uma decisão que determina investigação sobre fato cuja lei não tipifica como crime? Basta termos como parâmetro uma portaria de inquérito instaurada por Delegado de polícia de modo a investigar conduta não tipificada em lei.

Por conseguinte, outra dimensão que torna a decisão criticável é a violação da proporcionalidade, pois investigações interferem na liberdade da pessoa, indiciamentos lançam uma pecha de “culpado”, em razão desses fenômenos e mais alguns é que o ordenamento nacional impõe limitações as investigações. Vale dizer: não é porque a fase preliminar da persecução penal não imponha agruras tão severas ao indivíduo que o Estado possa incluir, sem critério solido, alguém em uma investigação. De fato; a) a decisão de indiciamento feita pelo delegado de polícia deve ser fundamentada; b) é possível impetrar HC contra indiciamento em inquéritos; e c) a lei de abuso de autoridade, em seu art. 27º, descreve como crime de abuso de autoridade a requisição ou instauração de procedimento investigatório à falta de qualquer indício da prática de crime (s).

Conclui-se facilmente que há limitações investigativas no Direito brasileiro. Portanto, é preciso ter cuidado ao proceder a esse tipo de decisão. Não por outro motivo – e aqui nasce a violação à proporcionalidade – as autoridades, ao receberem uma denúncia anônima (delatio criminis inqualificada), devem, antes de iniciar procedimento investigatório, apurar informalmente a veracidade da denúncia coberta pelo anonimato2. Ou seja, investigar alguém não se trata de “só” uma investigação. É algo sério, cujo zelo que marca legitimidade nasce desde a decisão técnica e bem embasada que inicia o procedimento. O que não ocorre no caso.

Por império dos contornos acima, é que a proporcionalidade restou agredida, a uma, porque seria muito menos danoso, portanto, proporcional uma simples notificação para que Elon Musk explicasse ou até apresentasse provas do que alegou. A duas porque se optou pelo caminho mais longo, mais invasivo e que mais causa descredito ao judiciário, pois diante da (provável) não apresentação das tais provas, o escarcéu feito pelo bilionário perderia eco diante da sociedade (ao menos boa parte dela), como bem pontuado por Victor Gabriel Rodriguez em excelente artigo publicado na Conjur.3

As conclusões prévias do ministro tornam mais robusta a ideia de necessário envio da documentação do ocorrido ao MP. Ou seja: (A) Se Moraes já entende que Musk agiu com dolo, não resta por que não remeter as informações ao MP; (B) O juiz que tomou conhecimento não tem dúvidas, resta saber o que o Parquet entende; (C) O verbo contido no artigo 40 do CPP está no imperativo “REMETERÃO”. É uma imposição!

Tal como aquela contida no artigo 37, caput da CF, acerca da necessária obediência da Administração Pública aos princípios constitucionais. Nem é dado aos administradores interpretarem uma opção onde está escrito “OBEDECERÃO”, nem o é ao juiz, cuja função precípua é a guarda da Constituição. Até porque as leis se presumem constitucionais e se esse mesmo juiz ou tribunal ao qual ele faz parte não declarou determinado artigo de lei como inconstitucional ou não lhe emprestou interpretação permitiva a agir dessa forma, resta evidente a violação da guarda precípua da Constituição, pois a lei cujo respeito não ocorreu está, em princípio, de acordo com aquela lei maior cuja guarda implica o respeito as demais que com aquela estejam de acordo. 

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1 STRECK, Lenio Luiz. Teori do STF contraria Teori do STJ ao Ignorar lei sem declarar inconstitucional. Conjur. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-fev-19/streck-teori-contraria-teori-prender-transito-julgado/ .Acesso em: 09 de maio de 2024.

2 (HC 106664, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, SEGUNDA TURMA, julgado em 27.8.2013, Dje 30.10.2014).

3 RODRIGUEZ, Gabriel Victor. Elon Musk em clave jurídica; o que o direito deve responder. Conjur 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-14/musk-em-clave-juridica-o-que-o-direito-deve-responder/.  Acesso em 09 de maio de 2024.

Thiago Rezende Rodrigues
Estagiário do juizado especial da comarca de Unaí/MG. Com participação na 2° edição do CONPEDI 2020:Direito, Pandemia e Transformação Digital: Novos Tempos, Novos Desafios?

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