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Shopping centers e os limites do negócio jurídico processual

A relação entre lojistas e empreendedores de shopping centers no Brasil é conturbada, com contratos de locação frequentemente defendidos com base na lei 8.245/91. Contudo, o Judiciário rejeita cláusulas abusivas. Os contratos são geralmente de adesão, com o locador detendo grande poder nas negociações.

18/5/2024

A relação entre lojistas e empreendedores de shopping centers no Brasil é tradicionalmente tempestuosa, especialmente no que diz respeito à negociação e aplicação dos contratos de locação de espaços nos centros comerciais.

É comum que os empreendedores, em juízo, defendam a validade dos instrumentos contratuais com base no art. 54 da lei 8.245/91,1 que determina a validade dos dispositivos estabelecidos nesta espécie de acordo comercial. O Poder Judiciário, todavia, corretamente considera que o permissivo legal não autoriza a inserção de cláusulas que ferem normas de ordem pública, como as que estabelecem multas abusivas em caso de rescisão antecipada da locação.2

De fato, os Tribunais brasileiros sequer encerraram a discussão acerca da natureza jurídica dos referidos contratos. Há decisões reconhecendo que estes acordos consistem em contratos de adesão,3 enquanto em outras se declara o oposto.4

É seguro afirmar, de todo modo, que os locadores de espaços em shopping centers possuem enorme poder na negociação que antecede a assinatura dos contratos de locação, uma vez que a maior parte das normas contratuais são previamente estabelecidas. Tais instrumentos, na prática, consistem em modelos de cláusulas pré-constituídas pelo locador, com algumas cláusulas móveis (como aquelas atinentes ao valor do aluguel e à atividade permitida no local): para além disso, o acordo é integrado por “normas gerais” e “regimentos internos” do empreendimento, também previamente estabelecidos pelo empreendedor.

Neste contexto, os locadores, a partir da entrada em vigor do CPC/15, passaram a utilizar sua vantagem negocial para estabelecer diversas espécies de disposições contratuais, sob a justificativa de praticar “negócio jurídico processual”.

O negócio processual, vale apontar, foi introduzido por meio dos artigos 190 e 191 do CPC/15.5 O objetivo da norma é permitir aos interessados promover mudanças no procedimento judicial para “ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo”, nos termos exatos do art. 190.

A lei autoriza que o negócio processual seja estipulado antes da existência de processo judicial, o que permite a inserção desta espécie de disposição em contratos. O Poder Judiciário, todavia, corretamente tem coibido abusos quando se estabelecem normas que dificultam a ampla defesa e o contraditório de um dos contratantes, ferindo os princípios constitucionais que regem o processo civil brasileiro6.

Não interessa a este estudo aprofundar os limites intrínsecos do negócio processual, à luz dos princípios constitucionais pertinentes ao processo civil; importa, todavia, estabelecer que estes limites existem, de modo que tais negócios sujeitam-se ao controle de validade do Poder Judiciário.

Ocorre que os locadores de espaços em shopping centers, a título de negócio processual, têm estabelecido dispositivos contratuais que ultrapassam os limites das normas de direito processual, e mesmo de direito material, pertinentes às locações comerciais.

É relevante observar que tanto a lei do inquilinato (lei 8.245/91) quanto o Código Civil Brasileiro, aplicável expressamente às relações locatícias,7 estabelecem limites ao poder de contratar por meio de normas de ordem pública, que não podem ser afastadas por disposição particular. Por outro lado, há certas disposições, atualmente inseridas pelos empreendedores de shopping centers com a designação “negócio processual”, que sequer têm por objeto a regulamentação do procedimento judicial a ser seguido entre locador e inquilino.

Entendemos, assim, que os negócios jurídicos processuais, a serem estabelecidos nos instrumentos que regem a relação entre lojistas e empreendedores de shopping centers, devem obedecer às seguintes diretrizes:

  1. Os negócios processuais não podem ofender normas de ordem pública estabelecidas na lei 8.245/91, a lei do inquilinato, sendo vedadas disposições que infrinjam os objetivos daquela lei, conforme o art. 45 do referido texto legal.[viii] São igualmente vedadas as disposições que infrinjam os preceitos de ordem pública estabelecidos no Código Civil, especialmente aqueles atinentes à função social da propriedade e dos contratos, nos termos do parágrafo único do artigo 2.035 daquela norma.8
  2. Não é possível, por este meio, ofender os princípios constitucionais que regem o processo civil brasileiro, criando dificuldades ao acesso à justiça, sob pena de ofensa aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, conforme expostos no art. 5.º, incisos LV e LIV da Constituição Federal.
  3. Finalmente, e por óbvio, os negócios processuais devem versar apenas sobre matérias que regulamentam eventual procedimento judicial a ser seguido em caso de demanda judicial entre inquilino e locador, e não podem tratar de assuntos de direito material.

Os parâmetros acima parecem claros à primeira vista, mas a realidade é que diversas normas contratuais atualmente estabelecidas pelos empreendedores de shopping centers, a título de negócio processual, na realidade consistem em disposições ofensivas a normas de ordem pública da lei do Inquilinato e do Código Civil, a serem afastadas pelo Poder Judiciário. Outras disposições podem ser total ou parcialmente válidas, mas não regulamentam normas procedimentais e, portanto, não sujeitam-se à disciplina de controle dos arts. 190 e 191 do CPC.

São inúmeras as disposições que infringem estas diretrizes, mas alguns exemplos podem elucidar os parâmetros acima expostos, de maneira a orientar o intérprete na análise de eventual invalidade da norma contratual.

Certas operadoras de shopping centers criam normas que impedem os lojistas de, em ações de execução, apresentarem defesa sob a forma de embargos à execução, se não garantirem antes o juízo por meio de depósito em dinheiro, ou por meio de fiança bancária. A norma contratual cria óbvio empecilho ao direito de defesa e de acesso à justiça do lojista, na medida em que o CPC atual não exige garantia para manejo dos embargos à execução; há a exigência de assegurar o juízo apenas para a eventual concessão de efeito suspensivo ao feito.10 Trata-se esta, portanto, de disposição contratual nula.

Outras operadoras buscam reduzir, em seu benefício, o prazo prescricional para que o lojista mova ação de exigir contas, no que diz respeito aos valores exigidos a título de despesas do empreendimento. Ocorre que a prescrição é matéria de direito material, regulada pelos arts. 205 e 206 do Código Civil,11 de maneira que a disposição não pode ser considerada norma processual em hipótese alguma.

Finalmente, algumas operadoras de shopping centers buscam limitar a indenização pela perda da loja, em caso de improcedência da ação renovatória de locação comercial, quando a improcedência decorre de melhor oferta de aluguel por terceiro interessado.

Ocorre que a lei 8.245/91 estabelece para tais hipóteses, em seu artigo 75,12 o dever de indenizar o inquilino, e não estipula limites para tanto, de maneira que a verba deve ser suficiente para ressarcir todos os prejuízos sofridos pelo lojista. A indenização, afinal, mede-se pela extensão do dano, conforme a definição do art. 944 Código Civil Brasileiro,13 aplicável ao caso com base no permissivo do art. 79 da lei do inquilinato; e existem meios contábeis para calcular o valor exato correspondente à perda de um estabelecimento empresarial em funcionamento.

Assim, não é possível ao empreendedor, com base em “negócio jurídico processual”, afetar direito material do lojista pré-estabelecendo uma indenização reduzida, quando a lei tem por objetivo a fixação de uma indenização plena. É neste exato sentido o entendimento de Sylvio Capanema de Souza14; a norma contratual ora analisada, portanto consiste em dispositivo nulo de pleno direito, à luz do art. 45 da lei 8.245/91.

Cabe trazer, por relevantes, as palavras do mesmo autor, conforme segue: “A criatividade humana imagina incontáveis fórmulas astuciosas para fraudar os objetivos da lei, fugindo às restrições por ela impostas. Inserem-se nos contratos cláusulas aparentemente inocentes, mas que violam os comandos legais, prejudicando, em geral, o locatário. (...) Como seria impossível prever todos estes expedientes maliciosos, elencando-os no texto legal, por mais casuístico que ele se tornasse, a solução foi criar uma regra genérica, uma espécie de “seguro contra fraudes”, e que fulmina de nulidade toda cláusula que vise a elidir os objetivos da lei”.15

A título de conclusão, é possível estabelecer que o negócio  processual, previsto no Código de Processo/15, não permite ao empreendedor de shopping center romper os limites legais à liberdade de contratar, assim como o artigo 54 da Lei do Inquilinato jamais permitiu. A locação de espaços em shopping centers é regulamentada por normas de ordem pública, e os direitos dos inquilinos podem e devem ser preservados em relação ao lado mais forte do contrato.

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1 Lei 8.245/91: “Art. 54. Nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center , prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei.”

2 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação n.º 1985513-75.2021.8.26.0100, julgamento 2/2/2023: “APELAÇÃO CIVEL – AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE MULTA – LOCAÇÃO EM SHOPPING CENTER – Pedidos julgados parcialmente procedentes – Apelo de ambas as partes. Rescisão antecipada do contrato - Abusividade da multa estipulada em contrato - Impossibilidade de afastamento integral da multa - Redução equitativa nos termos do art. 413 do CC e 3º da Lei 8.245/91 - Três alugueres que mostra-se compatível com a fixação em casos simulares. Redistribuição dos ônus de sucumbência, tendo em vista a sucumbência recíproca - Apelo da ré provido em parte e negado provimento ao da autor”

3 Exemplos de decisões que reconhecem a natureza adesiva dos contratos de locação de espaços comerciais em shopping centers: Superior Tribunal de Justiça– Recurso Especial 1259210/RJ, julgamento 26/06/2012; Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação 1021607-14.2021.8.26.0100, julgamento 16/3/2022

4 Exemplos de decisões que negam a natureza adesiva dos contratos de locação de espaços em shopping centers: Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial 1535727, j. 20/06/2016; Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação 1007864-27.2014.8.26.0602, julgamento 30/3/2022.

5 Código de Processo Civil: “Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.   Art. 191. De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso. § 1º O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais, devidamente justificados. § 2º Dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário.”

6 O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento relevante, estabeleceu o âmbito de atuação do Poder Judiciário no controle de validade dos negócios processuais, conforme segue (Superior Tribunal de Justiça – Embargos Declaratórios no Recurso Especial 1810444 – SP, julgamento 13/12/2021): “Esse controle, contudo, é complexo, pois não se limita somente à observância aos requisitos de validade apontados na legislação híbrida entre direito processual e civil, mas também, e principalmente, aos ditames constitucionais a regerem o processo civil. Nessa ordem de ideias, esta egrégia Turma concluiu, no que respeita à delimitação dos limites postos à negociação, que não poderão ser rompidos, ainda que considerada a ideologia progressista inspiradora do autorregramento, conforme até aqui demonstrado. Isso porque, de forma universal, "os limites atuam como um modo de pôr em câmera lenta o progresso, em áreas onde as inseguranças são muitas, e os riscos, grandes". Além do que, à efetividade, de inquestionável valor, não deve ser dada deferência cega em detrimento de outros escopos da jurisdição (BUCHMANN, Adriana. Op. cit.). Acerca desses limites, a isonomia se destaca como imprescindível ao desenvolvimento de uma atividade jurisdicional equânime, uma vez que sua falta "conduz ao aviltamento dos débeis". É que "a existência de fronteiras difusas, de uma desregulação generalizada, permite o desenvolvimento livre das forças, e, com isso, a concentração de grandes grupos" (LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: RT, 1998, p. 118). No rumo desse entendimento, importa realçar que o contraditório, na qualidade de assegurador do poder de participação da parte no processo, garante efetiva influência do sujeito que dele se vale na formação do convencimento do magistrado, integrando o próprio conceito de processo, de modo a redundar a sua absoluta indispensabilidade à órbita processual. Nessa ordem de ideias, concluiu esta Turma que o objeto de negociação investigado neste recurso merecia reprimenda também pelo fato de transigir atos de titularidade judicial. Ademais, conforme demonstrado, a definição dos limites impostos às partes na elaboração do negócio jurídico processual é eminentemente casuística, havendo, no entanto, premissas “universais” a serem respeitadas, invariavelmente. Nessa linha de intelecção, no que respeita ao caso concreto, é possível afirmar que, todas as vezes que a supressão do contraditório conduzir à desigualdade de armas no processo, o negócio processual, ou a cláusula que previr tal situação, deverá ser considerado inválido.”

7 Lei 8.245/91: “Art. 79. No que for omissa esta lei aplicam-se as normas do Código Civil e do Código de Processo Civil.”

8 Lei 8.245/91: “Art. 45. São nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem a elidir os objetivos da presente lei, notadamente as que proíbam a prorrogação prevista no art. 47, ou que afastem o direito à renovação, na hipótese do art. 51, ou que imponham obrigações pecuniárias para tanto.”

9 Código Civil Brasileiro: “Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”

10 Código de Processo Civil: “Art. 919. Os embargos à execução não terão efeito suspensivo. § 1º O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando verificados os requisitos para a concessão da tutela provisória e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes.”

11 Código Civil: “Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor. Art. 206. Prescreve: (...)”

12 Lei 8.245/91: “Art. 75. Na hipótese do inciso III do art. 72, a sentença fixará desde logo a indenização devida ao locatário em conseqüência da não prorrogação da locação, solidariamente devida pelo locador e o proponente.”

13 Código Civil: “Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.”

14 Capanema de Souza, Sylvio. “A Lei do Inquilinato Comentada”, Forense: Rio de Janeiro, 10ª Edição, 2017, comentários ao artigo 75, página 438: “A obrigatoriedade de indenização do fundo empresarial, em casos tais, tem o evidente propósito de proteger o locatário, desmotivando a resistência à renovação. E o expediente tem produzido excelentes resultados, já que são raros os exemplos em que a pretensão renovatória é julgada improcedente, em razão de proposta melhor de terceiro. A indenização a que alude o dispositivo ora comentado abrangerá, como é óbvio, a integralidade do fundo empresaria, incluindo-se aí a perda ou redução da clientela, das instalações e estoques, bem como as despesas de mudança.”

15 Op. Cit., comentários ao artigo 45, páginas 202-203.

Francisco dos Santos Dias Bloch
Mestre e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É advogado formado pela PUC/SP e atua em São Paulo, no escritório Cerveira, Bloch, Goettems, Hansen & Longo Advogados Associados, nas áreas de Direito Contencioso Cível e Direito Imobiliário.

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