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Do império à era digital: A reforma do CC/02 à luz das transformações sociais e tecnológicas

Após a independência do Brasil em 1824, surgiu a necessidade de um CC. O de 1916, influenciado por cursos de Direito e contextos sociais, vigorou por 86 anos até ser substituído pelo de 2002. Este, sujeito a mudanças, reflete as relações jurídicas do século XXI.

17/5/2024

Após a proclamação da independência do país, em 1824, ficou estabelecida a organização de um CC, “fundado nas sólidas bases da Justiça e Equidade”. Naquele instante, as relações cíveis no Brasil Imperial eram regidas pelas Ordenações Filipinas, uma compilação de normas jurídicas, sancionada em 1595, no reinado de Felipe II & I, momento em que Portugal e Espanha eram reinados simultaneamente por um único rei.

No Brasil, a criação dos primeiros cursos de direito, em 1827, influenciou fortemente o movimento de codificação das leis. A intensa produção legislativa decorreu da incipiente emancipação jurídica no País à época. Embora a previsão tenha sido instituída em 1824, o primeiro CC pátrio foi sancionado somente em 1916 e vigorou por 86 anos, tendo sido revogado pelo CC/02, que poderá sofrer alterações substanciais em razão das recorrentes alterações das relações jurídicas no século XXI.

Elaborado por Clóvis Beviláqua, o CC/1916 refletiu o contexto social e histórico do final do século XIX e início do século XX, influenciado pela forma como as relações individuais e coletivas se expressavam. Além disso, sofreu uma relevante influência da codificação civil alemã.

Não obstante, a contribuição do CC/1916 foi um marco para a codificação das relações civis brasileiras, em especial por ter sido utilizado como base para a elaboração do CC/02, que começou a ser elaborado em 1969, no Regime Militar, com tramitação no Congresso Nacional iniciada em 1975.

Com regência após a redemocratização, o CC/02 inaugurou nas relações privadas um novo paradigma constitucional, com forte influência do Estado Democrático de Direito defendido pela CF/88.

Contudo, embora avançado em relação ao diploma legal anterior, o CC/02 ainda deixa a desejar em vários aspectos, sobretudo aos relacionados à mudança digital sofrida nas duas últimas décadas e aos novos arranjos familiares e sociais.

Com isso, a necessidade de revisão e atualização do CC/02 é indispensável, motivo pelo qual, desde agosto de 2023, instaurou-se, por iniciativa do presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, Comissão de Juristas, com o intuito de atualizar a lei 10.406 e trazer maior correspondência entre o diploma legal que disciplina as relações civis e o novo contexto social.

A Comissão de Juristas, presidida pelo ministro do STJ, Luiz Felipe Salomão, contou com dois relatores gerais: Flávio Tartuce e Rosa Maria de Andrade Nery, ambos amplamente reconhecidos pelo profundo conhecimento do tema.

O anteprojeto foi oficialmente entregue ao Senado Federal, em uma sessão especial. A proposição será protocolada pelo presidente da Casa Legislativa, Rodrigo Pacheco, e a partir de então seguirá o rito previsto pelo RISF - Regimento Interno do Senado Federal.

A matéria receberá despacho para a oitiva de uma ou mais comissões permanentes, conforme o inciso X, art. 48 do RISF1. Certo é que a CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania será um dos colegiados a se manifestar, visto que a alínea “d”, inciso II, do art. 101, do RISF, prevê a manifestação desta Comissão sobre as matérias de competência da União, especialmente proposições que tratam de direito civil. É de se esperar que a matéria seja deliberada também no Plenário, ocasião em que todos os senadores poderão apresentar emendas e se manifestar sobre a matéria.

Aprovada no Senado, a matéria será despachada para a Câmara dos Deputados, ocasião em poderá receber despacho para quatro ou mais comissões. Conforme previsão do art. 34, inciso II, do RICD - Regimento Interno da Câmara dos Deputados2, em ocasiões como essas, deve ser instituída comissão especial, destinada a manifestar parecer para todas as comissões de mérito. Todavia, em ocasiões de relevância e por acordo dos líderes, o mérito da proposição pode ser votado diretamente em Plenário após a aprovação de requerimento de urgência.

Caso a Casa revisora realize alterações na proposição, a matéria retornará ao Senado Federal, que analisará as alterações promovidas pela Câmara. Sendo assim, o Senado Federal terá a prerrogativa de definir o texto final, momento em que encaminhará o projeto à sanção presidencial e o Poder Executivo poderá, ainda, realizar vetos ao projeto.

A Parte Geral do projeto se preocupa em aproximar a matéria civil dos princípios constitucionais, além de atualizar as novas concepções de capacidade civil. Tem-se, assim como em outros diplomas legais de matéria privada, a constitucionalização do direito civil.  

É nesse intuito que passam a expressar a nova concepção da pessoa com deficiência, alinhada à Lei Brasileira de Inclusão e às normas internacionais. Embora a própria LBI já tenha revogado tais dispositivos, a atualização do CC atribui, de forma expressa, os paradigmas instituídos a partir do novo entendimento das deficiências e sua percepção. Nesse sentido, mais do que garantir que a deficiência por si só não gera incapacidade civil, as atualizações resguardam o direito ao pleno exercício da capacidade civil.

Adiante, quanto aos Direitos da Personalidade, a atualização demonstra relevante preocupação na tutela da dignidade humana como um aspecto central da personalidade. Tal preocupação se revela pela vedação de qualquer tipo de discriminação quanto ao gênero, à orientação sexual ou a características sexuais. Ademais, a afetividade humana aos animais também se consolidou como um Direito da Personalidade.

Na parte especial, o livro de direito das obrigações atribui mais autonomia aos indivíduos, tendo como pilar o respeito aos princípios de eticidade, da socialidade e operabilidade.

O Livro de Contratos, passou a valorizar a autonomia privada nos contratos paritários e a necessária intervenção estatal nos contratos não paritários, de modo a evitar possíveis abusos.

No tocante ao livro de responsabilidade civil, cuidou-se, sobretudo, da contenção de comportamentos antijurídicos, valorizando as funções preventiva e pedagógica.

Quanto ao livro do direito das empresas, este objetivou o estímulo do empreendedorismo e o incremento de um ambiente favorável ao desenvolvimento dos negócios no país. Nesse sentido, os dispositivos buscam trazer segurança e previsibilidade para os agentes econômicos.

Ademais, o livro de direitos das coisas também sofreu alterações tendo como base a nova forma de compreensão das informações. Nesse sentido, o direito possessório sobre bens imateriais, como a herança digital, passa a ser uma realidade legalmente prevista.

Por conseguinte, as atualizações propostas no Direito de Família, Livro com maior percentual de mudança, visam adequar os dispositivos do tema às transformações sociais recentes. Em consonância à jurisprudência, quanto ao conceito de família, as alterações passaram a prever a união estável e o casamento como a união entre duas pessoas, não mais como a união entre o homem e a mulher, resguardando, portanto, a possibilidade do casamento e da união homoafetiva. Outra alteração relevante diz respeito à figura do instituto da antecipação de curatela. Nessa diretiva, o interessado poderá delinear como quer ser tratado no caso de perda de autonomia cognitiva.

Adiante, o livro de sucessões trouxe a equiparação sucessória entre cônjuges e companheiros. Por outro lado, apresentou um ponto controverso: a extinção de concorrência sucessória entre cônjuges/companheiros e ascendentes e descendentes, no caso de alguns regimes de casamento.

A justificativa para tal supressão é a progressiva igualdade entre os homens e mulheres, dada pelo ingresso feminino no mercado de trabalho. Contudo, embora a mulher tenha ganhado mais espaço no mercado de trabalho, continua exercendo dupla jornada ao se dividir entre a atividade doméstica não remunerada e a vida profissional. Além disso, a equiparação salarial entre gêneros ainda não é uma realidade no Brasil.

Finalmente, a criação do livro destinado a tratar do tema de Direito Civil Digital alinha as novas diretrizes civis ao mundo digital. A dependência aos dispositivos tecnológicos e a conectividade ininterrupta, são fatores que modificam a dinâmica das relações humanas e, consequentemente, exigem atenção da legislação brasileira.

As disposições gerais do livro de direito civil digital trazem conceitos, princípios e fundamentos importantes sobre o tema. O livro aborda conteúdos como: liberdade de expressão; responsabilização; segurança no ambiente digital; herança digital; proteção da identidade da criança e do adolescente; desenvolvimento e implementação de inteligência artificial; contratos celebrados digitalmente e assinaturas eletrônicas; e atos notariais eletrônicos.

Por fim, vale destacar a importância da jurisprudência para a reforma. Em tempo de descompasso entre os Poderes, ter uma reforma legislativa inspirada na jurisprudência, além da doutrina, demonstra a aproximação entre as relações institucionais, de modo a obter um dispositivo normativo convergente com a dinâmica jurídica e com a realidade quotidiana.

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1 BRASIL. Senado Federal. Regimento Interno. Resolução nº 93, de 1970. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/documents/12427/45868/RISF+2018+Volume+1.pdf/cd5769c8-46c5-4c8a-9af7-99be436b89c4. Acesso em: 10 de mai. de 2024.

2 BRASIL. Câmara dos Deputados. Regime Interno. Resolução nº 17, de 1989. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados/arquivos-1/RICD%20atualizado%20ate%20RCD%206-2023.pdf. Acesso em: 10 de mai. de 2024.

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BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil comentado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, v. 1, 1916.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 10 de mai. de 2024.

________. Lei nº 13.146, de 06 de Julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, DF, [2015]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm.  Acesso em: 10 de mai. de 2024.

________. Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Brasília, DF, 2024. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/68cc5c01-1f3e-491a-836a-7f376cfb95da. Acesso em: 01 de mai. de 2024.

REALE, Miguel et al. Anteprojeto de código civil. (No Title), 1973.

Tharlen Nascimento
Sócio do escritório Malta Advogados e Bacharel em Direito pelo Centro Universitário IESB.

Jeorginys Rocha
Sócio do escritório Malta Advogados; e Bacharel em Direito pela UnB - Universidade de Brasília.

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