O STF acaba de escrever um novo capítulo de um debate que agita os corredores do sistema judiciário brasileiro há alguns anos: a legitimidade do Ministério Público para conduzir investigações policiais. Em que pese ter decidido em favor da existência de tal direito, sob uma análise atenta da Constituição Federal, surge a pergunta inevitável: de onde se tirou que procuradores e promotores podem investigar?
O fato é que não há disposições constitucionais que concedam explicitamente ao órgão esses poderes. O art. 129 da Constituição Federal, que delineia as funções do MP, não menciona tal atribuição. O mesmo vale para o art. 144, que trata da segurança pública e das responsabilidades de investigação.
Da primeira vez em que foi tomada, em 2015, a decisão não foi consensual. O então ministro do STF Marco Aurélio Mello, por exemplo, entendia que nossa Carta Magna não respaldava tal atribuição.
Revisitando a matéria, cujo julgamento foi concluído no último dia 2/5, o Supremo perdeu uma grande oportunidade de corrigir o que era necessário, optando por manter disfuncionalidade em vez de reconhecer a manifesta desconformidade, formal e material, do poder investigativo ministerial com o ordenamento jurídico.
O Ministério Público não tem poderes investigativos, tanto assim que foi necessário invocar a teoria dos poderes implícitos para justificá-los — e essa expansão de poderes, naturalmente, não é isenta de problemas. A sobreposição de atribuições entre o MP e as forças policiais vem comprometendo há anos a eficiência do sistema de justiça.
Apesar de alguns números ou alegações que pudessem ser apresentados no sentido de que investigações ministeriais justificar-se-iam, um olhar macro permite constatar o oposto: aumento da criminalidade nos últimos anos, especialmente a organizada, e avanço, com a mesma intensidade, da sensação de impunidade. A disfuncionalidade impera no nosso sistema, indicando que o estado de coisas inconstitucional vai muito além das unidades prisionais.
O modelo institucional concebido pelo CPP/41 destinava à autoridade policial a competência investigativa, visando evitar conclusões precipitadas e garantir uma análise completa dos fatos. Ao mesmo tempo, cabe ao MP, órgão imprescindível à administração da Justiça, funções próprias, entre elas a de promover privativamente a ação penal pública e a de exercer o controle externo da atividade policial.
A manutenção do posicionamento do STF, ainda que com pouquíssimos ajustes, não alterará a nossa realidade. A divisão de tarefas entre os órgãos de persecução penal é crucial para a eficiência da administração pública, e isso foi ignorado. As polícias Federal, civil e militar têm responsabilidades específicas que contribuem para o funcionamento harmonioso do sistema.
A especialização é uma característica essencial tanto na iniciativa privada quanto na esfera pública — e não deveria ser diferente com o Ministério Público.
Hoje, quase uma década após o precedente que concedeu poderes investigativos ao Ministério Público, é evidente que essa sobreposição de atribuições não trouxe os benefícios esperados. Pelo contrário, prejudicou a funcionalidade do direito e a especialização de cada órgão.
Lamentamos que a Suprema Corte tenha perdido essa grande oportunidade de devolver a funcionalidade ao nosso sistema.
_____________
*Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo dia 10/5/24 às 22h: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/05/o-stf-acertou-ao-manter-o-poder-de-investigacao-policial-ao-ministerio-publico-nao.shtml