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Um novo Código chega com velhos ritos?

Um novo código não se coaduna com velhos ritos de pouca abertura à cidadania. É tempo de respeito integral à sociedade e aos anseios cívicos.

7/5/2024

O Código Eleitoral atualmente em vigor, de 15 de Julho de 1965, foi, como se sabe, elaborado durante o período da ditadura militar1. Apesar dessa mácula, trouxe ganhos para o processo eleitoral2, e foi, de todo modo, ajustado aos valores democráticos com dispositivos que deixaram de ser recepcionados pela Constituição Federal de 1988. Além disso, a promulgação de normas posteriores (com natureza de lei complementar e ordinária) ajudaram a manter a atualidade da legislação eleitoral, ainda que de forma pouco organizada.

O ganho de importância do processo eleitoral na sociedade brasileira e o aumento da consciência sobre a necessidade de uma legislação mais sistêmica, atual e democrática, passaram a exigir a elaboração de um novo Código Eleitoral. A cidadania diversificada e dinâmica do século XXI não se coadunam com um Código da década de 60, e com a marca histórica do regime ditatorial.

Nesse contexto, vem sendo votado o Novo Código Eleitoral, que já tramitou pela Câmara dos Deputados3, e atualmente se encontra no Senado Federal. Ele é aguardado, claro, desde a Constituição de 88, tendo essa vontade ganhado corpo com o projeto do novo código, aprovado pela Câmara dos Deputados em 2021. Trata-se, portanto, de uma espera de anos.

Impressiona, porém, que depois dessa longa jornada, o Senado queira aprová-lo de forma célere, sem a audiência pública pela qual clama a sociedade4, pondo a perder o brilho democrático, com opacidade nos debates, empobrecendo discussões necessárias e cujo palco por excelência é o Parlamento.

A eficiência democrática não pode ser entendida apenas numa concepção de rapidez e agilidade, mas de legitimidade, com a elaboração de normas que tendam a ser mais aceitas, sujeitas a menos atrito social e a maior fluidez na sua compreensão, exatamente porque são mais debatidas pelo Parlamento e pela sociedade.

A falta de diálogo caminha no sentido oposto da verdadeira eficiência democrática, porque pode levar a mais desavenças e impasses. Não são apenas mais alguns atos ou procedimentos de interlocução com a sociedade, dentro do processo de aprovação do Novo Código Eleitoral, que irão prejudicar sua chegada. Não os realizar, porém, deixará como legado um simbolismo autoritário, em contraste com a Constituição que se esforça, sempre mais, para assegurar a democracia participativa5. Basta lembrar que o TSE, mesmo não tendo semelhante obrigação de representatividade e de abertura que as casas do Congresso, realizou amplo diálogo quando da elaboração das resoluções que disciplinam as eleições 20246.

A democracia é vivida em camadas na textura do tecido social. Por isso sua luz deve incidir por todas as frestas da estrutura do Estado e fundamentar o nascimento de cada nova norma. Um novo código não se coaduna com velhos ritos de pouca abertura à cidadania. É tempo de respeito integral à sociedade e aos anseios cívicos.

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1 Que tem como marco o dia 31 de março de 1964.

2 Luiz Fernando Casagrande Pereira, Maíra de Barros Domingues. Os 56 anos do Código Eleitoral: é hora de mudar, mas também de agradecer https://www.conjur.com.br/2021-jul-27/pereira-domingues-56-anos-codigo-eleitoral/

3 https://www.camara.leg.br/noticias/806576-camara-aprova-novo-codigo-eleitoral-com-previsao-de-quarentena-para-juizes-e-policiais/

4 Pacto pela Democracia. Manifesto pela participação na construção do novo código eleitoral.https://www.pactopelademocracia.org.br/blog/sociedadecivilecodigoeleitoral

5 Como se percebe do esforço empreendido pela Emenda Constitucional nº 111, de 28 de setembro de 2021. 

6 https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Janeiro/eleicoes-2024-audiencias-publicas-sobre-resolucoes-tiveram-quase-80-participacoes

Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil. Integra o Observatório de Violência Política contra a Mulher.

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