Entende-se que o investimento na indústria, inovação e infraestrutura está alinhado a um dos objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, uma vez que o avanço tecnológico se apresenta como uma das soluções para os desafios econômicos e ambientais. Nesse contexto, o Poder Judiciário brasileiro surge como um ambiente propício para a adoção de novas tecnologias, notadamente a Inteligência Artificial (IA). A atual situação, caracterizada por uma alta carga de processos e uma escassez de servidores judiciais, representa um desafio que demanda uma resposta ágil, pois a falta de solução pode comprometer a segurança jurídica.
Portanto, indaga-se sobre os potenciais riscos decorrentes da implementação da Inteligência Artificial nos tribunais brasileiros e quais medidas poderiam ser adotadas para enfrentá-los.
As iniciativas que fazem parte da estratégia da Justiça 4.0 incluem a implementação do processo judicial totalmente digitalizado, a introdução do balcão virtual, o desenvolvimento do projeto da plataforma digital do Poder Judiciário (PDPJ) para aumentar a automação dos procedimentos judiciais e a utilização da Inteligência Artificial (IA). Além disso, essas ações visam auxiliar os tribunais na melhoria dos registros processuais primários, na consolidação, implantação, tutoria, treinamento, limpeza e divulgação da Base de Dados Processuais do Poder Judiciário (DataJud), em conformidade com a Resolução CNJ 331/20. Também buscam colaborar na implementação do sistema Codex, que tem como principais funções alimentar automaticamente o DataJud e converter decisões e petições em texto simples para serem utilizados como dados de entrada para modelos de IA. Essas estratégias são implementadas pelo Conselho Nacional de Justiça, por meio do "Programa Justiça 4.0 – Inovação e efetividade na realização da justiça para todos", cujo propósito é facilitar o acesso à justiça através de ações e projetos voltados para a utilização colaborativa de produtos que incorporam novas tecnologias e inteligência artificial.
O objetivo de todas essas medidas é abordar um dos principais desafios enfrentados pelos tribunais brasileiros: a morosidade na entrega da justiça devido à sobrecarga de processos em andamento. Essa questão é frequentemente apontada como a principal queixa dos cidadãos, sendo atribuída à insuficiência estrutural do Poder Judiciário. Além disso, acrescenta-se a este contexto desafiador o fato de que muitos profissionais do direito ainda parecem estar desconectados das significativas mudanças nos métodos de produção de bens e serviços que caracterizam a era moderna, especialmente aquelas impulsionadas pelo uso de novas tecnologias, incluindo o foco deste estudo, a Inteligência Artificial.
Essas transformações foram consideravelmente impulsionadas pela pandemia da Covid-19, especialmente devido à necessidade inegável e obrigatória de distanciamento social, que exigiu uma adaptação, na medida do possível, para o trabalho remoto. Muitos especialistas até mesmo argumentam que estamos diante da era da revolução 4.0 ou da quarta revolução industrial. Portanto, o uso da inteligência artificial, juntamente com outras tecnologias e ferramentas originárias dessa nova era digital, surge como uma realidade iminente, e seus impactos no contexto jurídico não podem mais ser subestimados, especialmente considerando o vasto leque de possibilidades que trazem para a melhoria do serviço jurisdicional.
Destaca-se que a aplicação da Inteligência Artificial apresenta um grande potencial para contribuir significativamente para uma gestão pública eficaz, especialmente no que diz respeito à promoção da sustentabilidade. Isso ocorre através da redução do uso de recursos humanos, naturais e energéticos, seja pelo aprimoramento da qualidade de vida dos profissionais do sistema judiciário, seja pela oferta rápida e eficiente da jurisdição.
Além disso, é importante esclarecer que o termo Inteligência Artificial abrange uma variedade de técnicas, dispositivos e algoritmos computacionais, assim como métodos estatísticos e matemáticos, que têm a capacidade de reproduzir, simular, representar ou registrar algumas das habilidades cognitivas humanas. Esses recursos incluem, mas não se limitam a, aprendizado de máquina (machine learning), aprendizado profundo (deep learning), sistemas especialistas, heurísticas, redes neurais e métodos preditivos, entre outros.
Com base nessa ampla gama de funcionalidades proporcionadas pelo uso da Inteligência Artificial, Fabiano Hartmann Peixoto destaca que há várias capacidades dos sistemas de IA que podem ser benéficas para o campo do direito. Entre essas capacidades, estão a capacidade de reconhecer objetos/pessoas, converter linguagem/imagem em texto, extrair significado da linguagem e comunicar-se através de sentenças, organizar informações de maneira prática, combinar informações para chegar a conclusões e programar uma sequência de ações para execução. Dessa forma, sistemas de reconhecimento, classificadores, tradutores de perguntas-respostas, sistemas de diagnóstico, sistemas de recomendação e planejadores podem ser valiosos para abordar uma variedade de questões jurídicas.
Além disso, a Inteligência Artificial também influencia o campo jurídico por meio das diversas formas como pode ser empregada, incluindo sua contribuição consolidada na pesquisa jurisprudencial, na produção e avaliação de provas, na redação de petições e na análise da admissibilidade de recursos extraordinários. Uma dessas formas, em particular, tem gerado não apenas debates, mas também intervenções legislativas: trata-se da capacidade preditiva que o uso da inteligência artificial pode exercer sobre as decisões judiciais no contexto processual.
Em resumo, é inegável que o Poder Judiciário não pode mais ignorar a importância da Inteligência Artificial, dada a inevitável penetração da Era Digital na sociedade moderna. Nesse sentido, as observações do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, são pertinentes:
Para fazer frente à realidade da Era Digital, do processo eletrônico e de uma “sociedade em rede”, o Judiciário também precisa ser dinâmico, flexível e interativo. É preciso estimular a utilização de novas ferramentas tecnológicas: julgamentos virtuais de processos, comunicação processual por meio de redes sociais, programas de inteligência artificial, arquitetura de computação em nuvem, dentre outros. Chegou a hora de a Justiça aplicar a tecnologia no auxílio de magistrados e servidores; não pode haver tabu sobre esse tema. O investimento tecnológico não dispensa o investimento no capital humano. Pelo contrário, a informatização das rotinas de trabalho exige a requalificação dos servidores, os quais não mais precisarão desperdiçar tempo e energia com tarefas rotineiras e burocráticas, podendo focar nas atividades intelectuais necessárias para a célere e eficiente prestação jurisdicional.
De fato, em um momento crítico em que a humanidade enfrenta os impactos devastadores da exploração desenfreada dos recursos naturais, que resultaram não apenas em danos ambientais significativos, mas também em sérias consequências para a saúde humana, como evidenciado pela trágica pandemia da Covid-19, a Inteligência Artificial emerge como uma ferramenta estratégica para impulsionar o desenvolvimento sustentável na esfera da governança pública.
A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável inclui entre seus objetivos a construção de infraestruturas resilientes, a promoção de uma industrialização inclusiva e sustentável e o estímulo à inovação. Isso evidencia que o avanço de novas tecnologias, incluindo a Inteligência Artificial, desempenha um papel crucial na busca pela sustentabilidade global. Com base nessas reflexões, podemos concluir que o progresso das novas tecnologias, em especial da Inteligência Artificial, desempenha um papel fundamental no fortalecimento do desenvolvimento sustentável. Isso ocorre por meio da introdução de processos inovadores que oferecem abordagens alternativas e sustentáveis para a produção.
Quando consideramos os desafios e riscos associados à implementação da Inteligência Artificial no Poder Judiciário brasileiro, é importante analisar a questão a partir da morosidade judiciária no país. Essa morosidade está diretamente ligada ao tempo inativo, o período decorrido entre a realização de um ato processual e o retorno desse ato à coordenação do processo pelo juízo. No entanto, é crucial ressaltar que a principal razão para o tempo inativo é a escassez de servidores para impulsionar o fluxo de trabalho nos cartórios. Uma solução significativa poderia estar centrada nos servidores da justiça, que são uma equipe de auxiliares do juízo responsáveis por atividades destinadas a movimentar o andamento processual nos cartórios.
Além disso, é preocupante a falta de estrutura administrativa nas serventias, pois além da escassez de servidores, a baixa remuneração, a ausência de qualificação técnica e a falta de instalações adequadas para lidar com o grande volume de processos contribuem para prolongar o tempo inativo no processo. Vale ressaltar que esses problemas não são adequadamente reconhecidos no sistema do Poder Judiciário.
Diante dos desafios enfrentados pelo Poder Judiciário, é indiscutível que a Inteligência Artificial tem o potencial de ajudar a reduzir os gargalos de produtividade relacionados à prestação jurisdicional. Isso pode levar à otimização dos recursos humanos, fornecendo-lhes novas ferramentas e permitindo economia de custos ao direcionar seu esforço para tarefas que exigem intervenção humana. No entanto, simplesmente introduzir a Inteligência Artificial nas serventias judiciais não é suficiente, pois isso poderia resultar em esforços infrutíferos. É crucial, antes de tudo, aumentar o número de servidores judiciais e oferecer-lhes uma capacitação técnica adequada, juntamente com uma estrutura administrativa adequada para lidar com a enorme demanda processual.
Outro risco que pode surgir com a implementação da inteligência artificial é o uso não transparente de algoritmos no tratamento dos dados, o que pode reforçar estereótipos e preconceitos discriminatórios.A discriminação algorítmica surge quando algoritmos tratam um indivíduo com base em características generalizadas de um grupo ao qual ele pertence, ignorando suas características individuais. Nesse processo, a pessoa é vista apenas como parte de um conjunto específico, sem consideração pelas suas particularidades únicas.
Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu a Resolução 332, de 21 de agosto de 2020, que estabelece explicitamente a obrigação de respeitar o princípio da não discriminação no uso de ferramentas de inteligência artificial.
Os riscos mencionados anteriormente destacam os desafios que a Inteligência Artificial enfrentará ao ser implementada no Poder Judiciário. No entanto, por meio de práticas regulatórias sólidas, a Inteligência Artificial tem o potencial de trazer significativas contribuições para o funcionamento dos tribunais brasileiros.
Em conclusão, é preciso reconhecer que a implementação da Inteligência Artificial no Poder Judiciário brasileiro traz consigo riscos significativos e demanda cuidado extremo na provisão de estrutura e capacitação para os servidores da justiça, que são os principais usuários dessa tecnologia. Portanto, é insuficiente para o Poder Judiciário investir em inovação sem uma revisão cuidadosa e a resolução dos problemas inerentes à sua própria estrutura funcional, que inclui a escassez de servidores e a falta de treinamento adequado para lidar com a implementação de novas tecnologias.
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