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Uma convenção satisfeita: a declaração de valor no transporte aéreo internacional de carga e a reparação integral pelo transportador

A Convenção há de ser fonte conciliadora de interesses e ponte de proteção de direitos fundamentais. Só não pode converter-se numa injustificada proteção a quem causa danos e age em desacordo com os protocolos de sua própria atividade.

6/5/2024

Defendemos uma tese que começa a ser acolhida por órgãos monocráticos e colegiados da Justiça: os documentos entregues ao transportador aéreo, especialmente a fatura comercial, dão-lhe ciência do valor da coisa confiada para transporte internacional, nos termos do art. 22.3 da Convenção de Montreal. Prevê essa norma que, quando o embarcador (carregador) declara o valor da coisa ao transportador, está garantida a indenização integral:

“Artigo 22 – Limites de Responsabilidade Relativos ao Atraso da Bagagem e da Carga

3. No transporte de carga, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a uma quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma, a menos que o expedidor haja feito ao transportador, ao entregar-lhe o volume, uma declaração especial de valor de sua entrega no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma quantia que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino.”

A jurisprudência começa então a se posicionar no seguinte sentido: da ciência que o transportador tem a partir dos documentos que acompanham o embarque, se pode concluir o mais perfeito cumprimento da norma da Convenção de Montreal. O que é correto e justificável. Essa compreensão serve a um imperativo ético-axiológico, além da boa ordem moral que reside na ideia de que todo aquele que causa danos e prejuízos tem o dever de os reparar integralmente.

O transportador conhece o valor daquilo que lhe entregam para transporte; não é razoável que a presença ou não desse mesmo valor num campo específico do Air WayBill, instrumento informador do negócio jurídico internacional, seja o fator determinante para se ter por satisfeita ou não a exigência normativa que garante a indenização integral.

Assim entendemos, e por dois fatores fundamentais: 1) em Direito, a forma é muito importante, porém jamais maior do que o conteúdo. Se o transportador foi de algum modo informado sobre o valor da coisa confiada para transporte, não há razão para não se ter por preenchido o comando normativo da declaração de valor; e 2) O transportador, dentro do controle que tem de sua atividade, é quem emite o Air WayBill, sendo o único responsável por preenchê-lo. Logo, impossível transmitir ao embarcador (carregador) o ônus de algo que lhe foge à alçada.

Diante disso, é certo dizer que, ao receber os documentos que dispõem sobre o contrato internacional de venda e compra, e os que se mostram necessários ao processo de transporte internacional, o transportador trava conhecimento da natureza e do valor da coisa, competindo-lhe a cobrança do frete devido.

Disso surge até alguma polêmica. Segundo os transportadores, a declaração de valor de que trata a Convenção de Montreal, e que afasta a limitação de responsabilidade (ou tarifada) – que reputamos incompatível com a hodierna mentalidade da responsabilidade civil e da defesa ampla e integral dos legítimos direitos e interesses das vítimas de danos – exige o pagamento, pelo interessado, de quantidade de frete maior, o chamado frete ad valorem.

Ocorre que não é o contratante que tem que indagar se haverá algo a mais a pagar como contraprestação ao serviço de transporte, além daquilo considerado como certo e, diga-se, já bastante caro. É o transportador que tem o dever de informar que deseja receber a mais. Não o fazendo, presume-se que o que for pago já compõe o rótulo de ad valorem.

Isso vai para muito além de um juízo negativo sobre o próprio frete ad valorem, o qual consideramos inadequado e até legitimamente duvidoso; por ele, o transportador quer receber a mais para transferir a quantia ao seu próprio contrato de seguro e, só assim, garantir o dever de reparação civil integral; deseja transferir ônus de riscos com o chapéu alheio e ganhar a mais para fazer aquilo que há de ser considerado básico, fundamental e moralmente ordenado: reparar danos e prejuízos na exata medida em que os causou.

Com efeito, estamos convictos de que a ciência do valor, deduzida de documentos idôneos, se alinha simetricamente à norma que lhe impõe a declaração, e de que o frete cobrado pelo transportador é, em nome da paridade, o que já foi calculado sob a dinâmica do ad valorem.

Essa ciência prévia e formal, aliás, é o fato-gerador do dever de reparação civil integral do transportador porque, desejamos insistir, ajusta-se bem ao que diz a Convenção de Montreal sobre declaração de valor, sendo mais do que certo de que o frete cobrado pelo transportador leva em conta o que externam e provam os documentos a ele entregues.

Norma é letra e espírito. Acreditamos que a norma que limite a responsabilidade é anacrônica; não faz sentido atualmente. A Convenção de Montreal a manteve ao sabor da antiga Convenção de Varsóvia. Muito aproveita lembrar que a Convenção de Varsóvia data do início do século passado, quando os riscos da navegação aérea eram muito maiores e sua indústria (construtores e transportadores) necessitava de proteção. Hoje esta é sólida, robusta, bilionária e os riscos reduzidos a praticamente a zero.

Faltas e avarias de cargas decorrem de desídias operacionais, incúrias administrativas e falhas procedimentais, não exatamente dos riscos. Por isso, o espírito da Convenção de Montreal há de ser interpretado de acordo com o olhar sistêmico do Direito, com a forma como é encarada a responsabilidade civil, com a preferencial proteção das vítimas de danos e a natureza objetiva da prestação de fazer dos transportadores.

A interpretação e aplicação da norma não podem ser escudo da ineficiência empresarial e ferramenta de defesa do causador de dano. Deve, antes, ser guiada por princípios fundamentais como os da razoabilidade, proporcionalidade, isonomia, equidade; respeitar a máxima justiniana de que a função primaz do Direito é a de dar a cada um o que seu e, ainda, evitar que o erro seja convertido em acerto.

Daí a defesa que fazemos de que os documentos de venda e compra da coisa, os de importação e/ou exportação, os que antecedem ao instrumento internacional de transporte (emitido apenas pelo transportador, repetimos), autorizam o conceito normativo de declaração de valor, porque de seu teor tem plena ciência o transportador, que cobra o frete de acordo com ele.

Com isso, embora importantes, outras discussões ficam em segundo plano, como a conduta temerária do transportador como causa-raiz de afastamento do benefício normativo da limitação de responsabilidade, e o fato de que essa mesma limitação ser aplicável apenas em casos de acidentes de navegação, desastres, não nos de danos operacionais, que invariavelmente defendemos como exegese do espírito da própria Convenção de Montreal.

Caso não se reconhecesse a ciência prévia do transportador, a seguradora sub-rogada — que não participa do contrato de transporte, mas tem de arcar com os prejuízos integrais de seu descumprimento — estaria pura e simplesmente impossibilitada de fugir à limitação tarifada.

O que é, naturalmente, um absurdo.

Importa lembrar que o art. 22.2 da Convenção de Montreal exige que o “expedidor” informe o valor da carga antes do transporte, eventualmente pagando uma taxa adicional, o chamado frete ad valorem, para exigir o reembolso integral de suas perdas.

À parte a interpretação de que a exigência já vem cumprida pelos documentos entregues a cada embarque, fato é que a seguradora não é expedidora de nada. Faltam-lhe, por completo, os meios de apresentar declarações de valor, ou de cumprir com a exigência; qualquer que seja ela. Desse modo, entendemos que o artigo não se destina à seguradora sub-rogada.

Entende-se que a Convenção fale de transporte de passageiros tanto quanto fale de transporte de cargas. Mas, supondo que a ciência inevitável do transportador não baste, os limites da Convenção, inclusive textuais, estão claros: a regra destina-se ao expedidor, dono da carga.

Caso se aplicasse indistintamente, e na literalidade da lei, à situação em que está, a seguradora não disporia de qualquer meio prático de fugir à aplicação dos limites previstos na Convenção. Em todo caso de transporte aéreo, ela receberia, pela via regressiva, apenas as migalhas daquilo que foi forçada a indenizar.

A seguradora não é sequer parte do contrato de transporte, nem da negociação, e por isso está, na prática e na teoria, totalmente impossibilitada de fornecer declarações de valor prévias ao transporte. De modo que ela não pode ser prejudicada por uma exigência que não tem como cumprir. A seguradora não tem meios de declarar pelo segurado o valor da carga que ele entrega ao transportador, nem tem como forçá-lo a isso; o contrato de seguro existe apenas para salvaguardar esses bens e, sem interferir na negociação de transporte, indenizar as perdas que podem advir de uma má prestação de serviços por parte do transportador. 

Ela só poderia teoricamente intervir na relação se já estivesse sub-rogada, momento em que incorpora direitos do segurado. Só que a sub-rogação é, como se extrai de uma de suas definições literais, um efeito do pagamento da indenização de seguro, e como tal, acontece só depois do sinistro, depois da execução frustrada do contrato.

Quer isso dizer que a seguradora só ganharia condições de intervir no contrato muito depois que ele já existisse e estivesse descumprido. A mera cronologia demonstra que lhe faltam até as armas para reagir e, portanto, para garantir para si um ressarcimento integral. Aplicando-se a limitação tarifada a casos como o dela, seria forçada a indenizar ao segurado a perda inteira, vendo um reembolso sempre inferior a esse mesmo valor.

Isso cria uma situação de óbvia injustiça — a conta não fecha.

Portanto, só há duas formas de interpretar com justiça o art. 22.2 da Convenção de Montreal, sem criar para a seguradora sub-rogada uma situação draconiana, na qual sempre lhe exigirão a indenização integral e lhe darão o ressarcimento parcial: ou a declaração de valor já vem cumprida pelo segurado no embarque (o que é verdade, já que o transportador sempre sabe ou pode saber do valor daquilo que transporta), ou a própria declaração, no caso da seguradora, não é exigível, e o seu direito de regresso fica atrelado ao exato valor que desembolsou.

A norma da limitação de responsabilidade não pode prejudicar a seguradora sub-rogada; seja pela ciência prévia e formal que o transportador tem do valor da coisa que transportará, seja porque, parte alheia ao contrato de transporte, a seguradora sequer tem os meios de pessoalmente declarar valores e, assim, cumprir o que, na Convenção, seria a exceção garantidora da indenização integral.

A Convenção de Montreal até pode reger litígios que envolvem transportes aéreos internacionais de cargas, mas a limitação de responsabilidade que ela prevê nem sempre (ou, melhor, quase nunca). Nesse sentido, pesam em favor da vítima do dano argumentos bem sólidos.

Para nossa alegria e ânimo na defesa da tese, importantes decisões judiciais têm aparecido no sentido dela, e com ótimos fundamentos:

“Apelação. Ação regressiva de indenização securitária. Sentença de procedência. Recurso da parte ré. Transporte aéreo internacional de carga. Mercadorias avariadas. Ação ajuizada em face da agenciadora da carga, contratada para agenciar o transporte. Ilegitimidade passiva afastada. Agente de carga que, conjuntamente com a transportadora, também assume a obrigação de transportar a mercadoria. Decadência. Não ocorrência. Alegação de ausência de reclamação. Carta de protesto não impugnada. Mantra de importação Siscomex, ademais, com indicação das avarias. Falha na prestação do serviço bem demonstrada. Documento de conhecimento de embarque (Air Waybill) indica que no momento do embarque as mercadorias estavam em condições adequadas, sem qualquer ressalva, e as avarias foram constatadas apenas no momento do desembarque. Convenção de Montreal. Aplicabilidade. Não cabe aplicação da indenização tarifada, pois declarado o valor total das mercadorias transportadas pelas invoices, romaneios de carga e declaração detalhada à Secretaria da Receita Federal. Sentença mantida. Recurso desprovido. (TJSP;  Apelação Cível 1012696-84.2019.8.26.0002; Relator (a): Elói Estevão Troly; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II - Santo Amaro - 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/12/2023; Data de Registro: 07/12/2023) 

Embargos de declaração. Ação Regressiva. Transporte aéreo de mercadorias. Avarias. Omissão. Esclarecimento prestado. Responsabilidade objetiva de todas as empresas que compõem a cadeia de transporte. Aplicação da Convenção de Montreal, conforme entendimento firmado pelo C. STF (RE nº 636331/RJ – Tema 210), sem a incidência, no entanto, da limitação do montante. Declaração de valor de carga no "Invoice". Embargos parcialmente acolhidos, sem efeito modificativo. (TJSP;  Embargos de Declaração Cível 1001249-51.2019.8.26.0115; Relator (a): Mauro Conti Machado; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Privado; Foro de Louveira - Vara Única; Data do Julgamento: 28/03/2023; Data de Registro: 31/03/2023) 

Apelação. Regressiva. Transporte aéreo internacional. Responsabilidade objetiva da transportadora. Aplicação da Convenção de Montreal, conforme entendimento firmado pelo C. STF (RE nº 636331/RJ), sem a incidência, no entanto, da limitação do montante. Declaração de valor de carga no Invoice, anotado no Conhecimento de Transporte Aéreo. Correta a condenação ao ressarcimento integral dos valores pagos à segurada. Sentença mantida. Majoração da verba nos termos do art. 85, §11º, do CPC. Recurso a que se nega provimento. (TJSP;  Apelação Cível 1059675-36.2021.8.26.0002; Relator (a): Mauro Conti Machado; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II - Santo Amaro - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/02/2023; Data de Registro: 05/02/2023)”

Tudo isso se justifica porque, além do fato de que o transportador sabe do valor daquilo que transporta, o direito de regresso da seguradora não deriva do descumprimento do contrato de transporte, mas da indenização de seguro que, por conta disso, ela tem de pagar ao dono da carga, vítima original do dano. Não se lhe aplicam as normas do Air WayBill e a limitação tarifada da Convenção de Montreal por essa razão; embora também haja outras.  

Sabemos que esse é outro assunto polêmico. Muito se discute na arena judicial em torno da sub-rogação gerar efeitos materiais, processuais ou a ambas as espécies; alguns defendem a tese de que o segurador sub-rogado tem de se submeter a tudo aquilo que o segurado pactuou, como se a sub-rogação legal não se distinguisse de uma simples cessão de crédito.

Disso sabemos e discordamos.

A questão é que o ressarcimento em regresso é fundamental para a saúde do negócio de seguro, que, por sua vez, é revestido de invulgar função social. Seu exercício, portanto, há de ser pleno e amplo, sem amarras, sob pena de ser ofender não apenas a ortodoxia do Direito dos Seguros, mas o próprio Direito Constitucional, dada a forma do Enunciado de Súmula 188 do Supremo Tribunal Federal [O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro.].

Ao buscar o ressarcimento em regresso, o segurador atende diretamente aos legítimos direitos e interesses do mútuo que representa (o colégio universal dos segurados) e, indiretamente, aos da sociedade, que vê no seguro algo inafastável do fomento de ambiente de negócios e de circulação de riquezas.

Por isso que a interpretação que aqui defendemos se avoluma e ganha mais importância. A ciência prévia e formal do valor da coisa, dada pelo embarcador por meio de não poucos documentos, insere-se bem no rol de deveres do transportador e ao sabor da role responsabiliy, não sendo lícito a ele dizer que não sabe de nada ou alegar que deixou de cobrar um valor maior para transportar.

Malgrado isso, no caso da seguradora a exigência mesma de declaração não cabe, considerando que, além de não poder informar os valores ela própria, pois não é parte do contrato de transporte, seu direito de regresso está vinculado à exatidão daquilo que indenizou em função do contrato de seguro. A própria Convenção não regula direito de regresso.

Em suma, por nada mais advogamos do que pelo justo uso da Convenção de Montreal com o devido reconhecimento do princípio da reparação civil integral. A Convenção há de ser fonte conciliadora de interesses e ponte de proteção de direitos fundamentais. Só não pode converter-se numa injustificada proteção a quem causa danos e age em desacordo com os protocolos de sua própria atividade.

Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

Rubens Walter Machado Filho
Advogado, administrador de empresas, diretor do IBDTrans - Instituto Brasileiro de Direito dos Transportes. CEO da MCLG Consulting & Recovery (USA). Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados.

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