1. Introdução
No mês de março de 2024, o STJ1 deu provimento a um agravo em recurso especial dirimindo uma contenda entre dois restaurantes especializados na venda de crustáceos, e que envolvia suposta (i) concorrência interdita2 (violação da titularidade de marca, nome de empresa e de nome de domínio) e (ii) a alegada prática de concorrência desleal. O feito originário do Estado potiguar polarizou relação jurídico-processual de grupo econômico denominado de CAMARÕES RESTAURANTE (Autora) e de outra sociedade empresária denominada CÔCO BAMBU (ré), outrora denominada CAMARÕES MUCURIPE.
Para sumarizar o resultado da demanda, a parte Autora foi vencedora de sua acusação sobre a imitação do trade dress dos seus cardápios, vestimentas de sua equipe de salão, e reprodução do modelo de negócio e sinais distintivos apenas no segundo grau de jurisdição. Por outro lado, a parte Ré se sagrou vitoriosa na persuasão de sua narrativa jurídica dos mesmos fatos em primeiro grau e na decisão ora comentada do STJ.
No entanto, o presente texto tem como enfoque não uma análise de resultados, mas um breve estudo sobre a integridade-coerência das premissas jurídicas ventiladas no Tribunal da Cidadania.
2. Polêmicas metodológicas na decisão
Em uma paella valenciana ou em um risoto de camarão, tão importante quanto saber se o prato foi bem temperado – é verificar se a receita foi seguida à risca, se os insumos foram bem lavados, enfim, se o prato final pode ser reproduzido um sem-número de vezes usando as mesmas premissas técnicas. No mundo do Direito há tal parecença com o ambiente gastronômico: além do resultado de uma decisão todo o processo hermenêutico é importante.
Na decisão em comento, três polêmicas permearam o voto do Julgador. A primeira delas foi na nomenclatura utilizada para discernir o tipo de força etimológica que as marcas em cotejo possuíam. Os subscritores deste texto estão de acordo com o entendimento do ministro relator de que palavras como “Restaurante” e “Camarôes” são descritivas para estabelecimentos comerciais gastronômicos que servem crustáceos aos seus clientes. Tendo em conta que a Língua Portuguesa é bem público cultural (art. 13 da CRFB e art. 99, I, do CC/02) e idioma oficial no Brasil, é impossível sua apropriação privada como marca (art. 124, VI, da lei 9.279/96 – doravante LPI).
Contudo, ao apontar a fragilidade na função de contraste, o Órgão julgador ventilou que tais elementos nominativos seriam despidos de originalidade3. Se singularidade e originalidade além de rimarem constituem gênero e espécie dos filtros qualitativos de uma criação intelectual, não se pode tomar o critério fundamental do Direito de Autor (lei 9.610/98) por aquele aplicável ao ambiente dos LPI - Sinais Distintivos – distintividade.
Isto é, dentro da lógica que rege o Sistema da Propriedade Industrial e, por consequência, os LPI, pouco importa se um sinal visualmente perceptível é original, mas sim se é suficientemente distintivo em relação às marcas anteriormente utilizadas e registradas no mesmo segmento mercadológico. Nesse sentido, ao requerer o registro de um sinal visualmente perceptível perante o INPI, o examinador avaliará se o sinal objeto do pedido de registro guarda suficientes traços de distintividade face aos sinais anteriormente registrados no mesmo segmento mercadológico. O servidor público não avaliará se a marca objeto do pedido de registro é original, por ausência de previsão legal que legitime tal requisito. E não estando o sinal compreendido em qualquer proibição legal, legítimo é o posterior registro (art. 122 da LPI).
A segunda crítica metodológica que se pode fazer à decisão não toca à atecnia de um conceito, mas a aparente disparidade na aplicação de um critério. Com base na doutrina de Tullio Ascarelli4, boa parte da academia no Brasil toma que no ambiente dos sinais distintivos bastaria a possibilidade de confusão ou associação para que uma determinada conduta competitiva pudesse ser sancionada. No voto do Ministro, o critério da mera possibilidade foi ventilado5, mas em seguida empenhou-se critério outro6 para dirimir a contenda: o da probabilidade.
Se toda probabilidade (considerável chance de incidência de um fenômeno) depende de uma possibilidade (consideração maniqueísta que tem como oposta a impossibilidade), nem toda mera possibilidade importará em probabilidade. Em outras palavras, apenas a frequência elevada de uma possibilidade será tida como probabilidade. A decisão judicial, assim, acabou por usar – simultaneamente – critérios divergentes de solução no mesmo conflito. Se isto foi proposital, pela fundamentação do voto tal não foi explicitado ou justificado.
O último problema metodológico da decisão cuida do emprego da expressão “concorrência parasitária”7. Conforme a melhor doutrina nacional8, não bastaria a cópia servil para incidir este “fenômeno composto” (concorrência + parasitismo), pois a emulação demandaria a sistematicidade (reiteração) e a suscetibilidade confusória (risco de gerar erro). Em outras palavras, o assassino de uma única oportunidade não é serial killer, tal como o concorrente desleal de feito singular não é um concorrente parasitário. Nos dois casos (art. 121 do CP ou abuso da liberdade de concorrer), basta um ilícito para que a Ordenação incida, mas não haverá concurso material ou formal por isso.
No curso do voto do ministro, nenhuma menção à sistematicidade da conduta da parte Ré foi feita e, ao final da decisão, ventilou-se a ausência do parasitismo como algo apto a “absolver” a conduta imputada. Na opinião dos autores do presente texto, a expressão foi empregada de forma retórica, como um obiter dictum bem longe da discussão concreta.
3. Acertos instrumentais na decisão
Feitas as críticas, há dois pontos positivos na decisão do Tribunal de instância superior. O primeiro elogio metodológico se destina à delimitação contextual da força de um registro de marca comum. Quando um ator mercantil obtém tal forma de propriedade-distintiva, o escopo geográfico de sua proteção é em todo território nacional, mas não contra qualquer sujeito de direito. A obtenção de um direito de exclusividade no ramo de ornamentação de flores, por exemplo, não precata o surfista de vender parafina para pranchas com o empenho do mesmo signo. Assim funciona a regra da especialidade da tutela (art. 124, XIX da LPI).
Os problemas surgem, entretanto, sobre uma forma expansionista com a qual certos atores discursam sobre a lógica da especialidade da tutela. Por exemplo, imagine-se que uma entidade desportiva internacional vá organizar jogos profissionais no Brasil, exerça sua influência no Congresso para a modificação da Lei de Licitações de modo a tornar expedito (ainda que menos seguro) o ambiente de construção de novos estádios e arenas desportivas. Se uma Universidade organizar um congresso de Direito Administrativo para criticar tal desiderato da entidade, e fizer uma filipeta de divulgação da palestra com a marca da entidade criticada – haveria violação à titularidade? Noções básicas sobre liberdade de expressão (art. 5º, IX, da CRFB) e uma interpretação razoável da propriedade sobre a marca indicam uma resposta negativa.
Contra eventuais discursos megalomaníacos de tal sorte, o argumento do voto do relator no STJ foi bem em reforçar a conexão entre a propriedade das marcas, e sua força no contexto do concorrente9. Fora da especialidade não deve haver a interdição. Parece óbvio, mas o Brasil do século XXI tem demandado a repetição de platitudes, para que um direito de propriedade intelectual não sirva de exclusão ineficiente e perversa.
O segundo acerto metodológico da decisão se correlaciona à causa de pedir da alegada concorrência desleal. Antes mesmo de se apurar a perfidez imputada, só haverá competição desleal quando concorrência se fizer presente. A concorrência, por sua vez, tem seus (a) elementos (contexto patrimonial, pluralidade de atores e disputa efetiva), (b) requisitos (identidade objetiva, simultaneidade e territorialidade), e (c) fatores (preço e qualidade). No caso concreto, entendeu o STJ inexistir o requisito (b) da sobreposição geográfica/territorial entre os restaurantes, os estabelecimentos de titularidade dos sujeitos processuais. Nas palavras do acórdão10, a distância de quinhentos quilómetros entre as casas gastronômicas impediriam a competição entre as partes.
O mercado alimentício de comidas quentes-perecíveis, de fato, é bem diferente do mercado relevante de streaming. Enquanto no último sociedades empresárias sediadas nos EUA e no Japão podem ser concorrentes em qualquer lugar do mundo com acesso à internet, no ambiente dos restaurantes, apenas na cercania da entrega à domicílio é que se pode encetar uma disputa por clientela. Raros são os casos de quem aprecia um bobó de camarão congelado ou de quem trafega entre Estados carregando uma moqueca “dormida”.
Os autores do presente texto concordam que a ausência de territorialidade comum no exercício da atividade empresarial das sociedades em contendo prejudica a aplicação das fontes normativas que tomam a concorrência como premissa. Tratando-se de fenômeno composto por dois fatos cumulativos (concorrência + deslealdade), antes mesmo de julgar se são idôneos ou inidôneos os meios de disputar clientela, é preciso avaliar, primeiro, se as sociedades efetivamente concorrem. Parece irrazoável supor, portanto, que lojas separadas a mais de 500km de distância e que exerçam a atividade de fornecimento de alimentos de consumo imediato estejam em relação de concorrência.
Assim, inexistindo identidade geográfica na disputa de clientela, não há concorrência a ser examinada para fins de lealdade ou deslealdade competitiva. Por tal razão, perde o sentido discorrer se houve ou não reprodução do “conjunto-imagem”, - i.e., se os layouts dos cardápios são parecidos, se os pratos são os mesmos ou se a arquitetura das lojas é similar - dado que tais objetos não são passíveis de apropriação por direito de exclusiva11.
Neste ponto caminhou bem a decisão em comento que enfatizou a ausência de territorialidade comum, no caso concreto, como impeditivo à constituição de relação de concorrência entre as partes.
Sem entrar no mérito se as lojas eram ou não parecidas; ou se os pratos tinham a mesma denominação e proporção de arroz, queijo e crustáceos; há de se destacar que se uma sociedade empresária do ramo de alimentação instantânea optou por não exercer a atividade empresarial em outros locais da federação brasileira (e por que não do mundo?) terá eventualmente de conviver com outros atores empresariais que fazem uso de elementos parecidos (não suscetíveis de apropriação por direito de exclusiva), no exercício da mesma atividade.
As fontes normativas de concorrência desleal não servem para impedir o surgimento de novos negócios, nos distintos rincões do mundo, que empenham elementos não apropriáveis. Talvez por essa razão existam tantas cafeterias minimalistas, com cardápios parecidos e preços igualmente elevados, cujas embalagens são instagramáveis e portam o nome do cliente com um sorriso ao lado, “característico” de um negócio iniciado no exterior. E como dizem por aí: “e está tudo bem”.
4. Conclusões
Quando os críticos gastronômicos fazem sugestões de melhorias ao chef, nem tudo está perdido na refeição. Se o jornalista não precisa dominar um grande repertório de receitas, organizar a equipe de cozinha e manter contato com seus fornecedores para realizar sua profissão; de outro lado, tampouco os mestres-cucas precisam dominar a arte da comunicação.
No mundo do Direito da Propriedade Intelectual as melhores hermenêuticas (produtos normativos) são erigidas quando Academia e Poderes Constituídos dialogam e se influenciam. Sem deferências excessivas e, muito menos, ouvidos herméticos.
1 STJ, 4ª Turma, Min. Raúl Araújo Filho, AREsp 1.303.548/RN, J. 04.03.2024.
2 Sobre as distinções de ambas as formas de concorrência ilícita, permita-se remissão ao BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024, p. 89 e seguintes.
3 "No caso em anunciação, deve-se destacar que a parte autora da ação, ora recorrida, almeja a exclusividade de uso de marca evocativa, porquanto, conforme consignado na r. sentença supra transcrita, os vocábulos "RESTAURANTE" e "CAMARÕES" possuem pouco ou nenhum grau de originalidade e distintividade, máxime na atividade empresarial explorada de fornecimento de serviço para consumo de refeições e bebidas no próprio estabelecimento, o que caracteriza a chamada marca fraca, ou seja, denominação que, embora registrável, admite mitigação da exclusividade de seu uso" STJ, 4ª Turma, Min. Raul Araújo Filho, AREsp 1.303.548/RS, J 04.03.2024.
4 ASCARELLI, Tullio. Teoria della concorrenza e dei Beni immateriali. 3ª Edição, Milão: Editore Dottore A. Giuffré, 1960, p. 479.
5 "Havendo a possibilidade de confusão entre os consumidores, caracterizado estará o conflito entre marcas" STJ, 4ª Turma, Min. Raul Araújo, AREsp 1.303.548/RS, J 04.03.2024.
6 "Logo, inexistindo probabilidade relevante de se confundir o consumidor, no sentido de desviar a clientela da parte ora agravada, não há falar em prática anticoncorrencial, tampouco em concorrência desleal" STJ, 4a Turma, Min. Raul Araújo, AREsp 1.303.548/RS, J 04.03.2024.
7 "Portanto, as circunstâncias narradas no v. acórdão recorrido e na r. sentença antecedente, além de afastar a confusão mercadológica, não denotam concorrência parasitária, sendo de rigor o julgamento de improcedência da pretensão indenizatória" STJ, 4a Turma, Min. Raul Araújo, AREsp 1.303.548/RS, J 04.03.2024.
8 BARBOSA, Denis Borges. Tratado da Propriedade Intelectual. Tomo I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 544.
9 " a marca (...) cuja finalidade é diferenciar o produto ou serviço de seus concorrentes" STJ, 4ª Turma, Min. Raul Araújo, AREsp 1.303.548/RS, J 04.03.2024.
10 "é possível verificar (...) a inexistência de concorrência desleal. Isso porque, embora autor e réu atuem no mesmo ramo de atividade, qual seja, fornecimento de refeições para consumo imediato e no próprio estabelecimento, esta se desenvolve em diferentes cidades e estados, buscando, por óbvio, a conquista de mercados consumidores distintos (...) Deste modo, apesar de existir exploração do mesmo ramo de atividade, o que normalmente é salutar e inerente ao sistema de livre empresa e livre concorrência adotado na Constituição Federal (art. 170), não há disputa de um mesmo mercado consumidor, haja vista que, conforme delineado no v. acórdão recorrido, os estabelecimentos comerciais em questão encontram-se em cidades muito distantes uma da outra, o que afasta a possibilidade de desvio de clientela. Data maxima venia, o senso comum não permite concluir que um restaurante de atuação tipicamente local, como é o caso da promovente, de legítimos méritos reconhecidos apenas entre frequentadores de seus estabelecimentos na bela cidade turística de Natal, possa se considerar gravemente prejudicado pela atuação de restaurantes situados em diferentes estados da Federação, como ocorre com a ré, cujos estabelecimentos, conforme registram as instâncias ordinárias, se distanciam em mais de quinhentos quilômetros, possuindo diferentes público-alvo, sem disputa de comum mercado consumidor" STJ, 4ª Turma, Min. Raul Araújo, AREsp 1.303.548/RS, J 04.03.2024.
11 Pelo mesmo motivo tem-se que desinfluente a prova utilizada pela 2ª Instância para aplicar as normas de concorrência desleal ao caso concreto, reproduzida no voto vencedor por maioria, de Relatoria do Des. Claudio Santos, qual seja, a opinião de um consumidor potiguar que compartilhou o entendimento de sua professora, residente de Fortaleza/CE: “merecendo destaque a assertiva de um dos consumidores, ao declarar que ‘(.) tive uma professora doutora lá de Fortaleza que passou essa informação para a turma, informando que não é o mesmo grupo mas que eles lá simplesmente copiaram quase tudo de vocês e isso é antiético até demais. STJ, 4ª Turma, Min. Raul Araújo, AREsp 1.303.548/RS, J 04.03.2024, fls. 1.256/1.259.