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O que a regra que bane cláusula de não concorrência com trabalhadores nos EUA pode sinalizar para as empresas no Brasil

FTC dos EUA proíbe cláusulas de não concorrência, impactando 30 milhões de trabalhadores, visando impulsionar novas empresas e renda.

3/5/2024

Em 23 de abril de 2024, mais de um ano após o fim da consulta pública,1 a FTC - Federal Trade Commission dos EUA votou por 3 a 2 para adotar uma regra que considera as cláusulas de não concorrência (“non compete”)2 com trabalhadores um método desleal de competição (unfair method of competition), nos termos da seção 5 da lei.3 Horas antes da publicação da regra, a FTC propôs duas novas ações em face de duas empresas pela imposição de cláusulas de não concorrência.4

Conforme debatido em artigo anterior, “Cláusula de não concorrência: interfaces entre antitruste e Direito do Trabalho no Brasil e EUA5, a FTC alega que as cláusulas de não concorrência afetam 30 milhões de trabalhadores, o que corresponde a 20% da força de trabalho norte-americana. Além disso, as estimativas da FTC à época do início da consulta pública indicavam que a proposta de proibição aumentaria em USD 300 bilhões os ganhos dos empregados por ano. Com a proibição, a FTC espera um crescimento anual de 2,7% no número de novas empresas, o que resultaria em 8.500 novas empresas por ano, bem como um aumento de USD 524 por ano na renda dos trabalhadores. A FTC ainda alega que a regra resultará em uma média de crescimento de 17.000 a 29.000 novas patentes por ano, nos próximos dez anos.

Esta interface entre antitruste e direito do trabalho não é nova, e tem atraído cada vez mais a atenção da doutrina e das autoridades de defesa da concorrência ao redor do mundo.6-7 Registre-se, desde já, que trabalhador é definido na regra de forma ampla e inclui qualquer pessoa natural que trabalhe ou tenha trabalhado em posições remuneradas ou não remuneradas, independentemente do cargo ou da classificação de trabalho sob a lei estadual ou federal. O termo abrange expressamente empregados, consultor ou prestador de serviço independentes e empresários individuais que prestam um serviço. O termo exclui franqueados nas relações entre franqueador e franqueado, mas não os empregados do franqueador ou do franqueado.

A regra final da FTC proíbe qualquer termo ou condição que “proíba um trabalhador de, penalize um trabalhador por, ou funcione para impedir um trabalhador de” trabalhar após o término do seu atual emprego. O uso do termo “penalize” potencialmente amplia o escopo da proibição além das cláusulas literais de não concorrência para incluir outros arranjos comuns de remuneração que criam desincentivos significativos para trabalhar para um concorrente (por exemplo, devoluções de remuneração, conhecidas como “compensation clawbacks”). A FTC esclareceu que os arranjos quarentena (“garden leave”, por exemplo, acordos em que o trabalhador ainda está empregado e recebe a remuneração e benefícios proporcionalmente) não estão sujeitos à regra.

Apesar de ampla, a regra da FTC prevê exceção para cláusulas de não concorrência existentes que vinculem um “executivo seniores”.8 Executivos seniores são definidos como pessoas que (1) ocupem uma “posição de formulação de políticas9 e (2) receberam uma remuneração anual total de pelo menos US$ 151.164 no ano anterior. Para esses indivíduos, os acordos de não concorrência existentes podem permanecer em vigor. No entanto, os empregadores não podem celebrar novos contratos de não concorrência com executivos seniores "a partir da data de vigência" da regra da FTC.

Ademais, a regra não se aplica a violações de uma cláusula de não concorrência que ocorreram antes da data de vigência da regra. Ainda, a regra isenta as cláusulas de não concorrência firmadas por uma pessoa em virtude de uma "venda de boa-fé de uma entidade comercial, da participação societária da pessoa em uma entidade comercial ou de todos ou substancialmente todos os ativos operacionais de uma entidade comercial" independentemente da porcentagem de participação societária da pessoa na referida entidade comercial ou ativos. Esta exceção reflete uma mudança significativa em relação à regra colocada para consulta pública, segundo a qual a exceção de venda de um negócio exigia pelo menos 25% de participação societária na entidade comercial sendo vendida. Na regra final, não há nenhum limite percentual (nem nenhum valor mínimo de vendas) para que esta isenção se aplique. As empresas ativas em estados que limitam as cláusulas de não concorrência sob a lei estadual (por exemplo, Califórnia) devem observar que a exceção na regra final que permite as disposições de não concorrência incidentais à venda de um negócio pode diferir em alguns aspectos de exceções semelhantes sob a lei ou jurisprudência estadual. Se uma lei estadual tiver uma exceção mais restrita à sua proibição das disposições de não concorrência, isso sobreviverá à regra da FTC, mas uma exceção mais ampla à proibição seria anulada.

Ressalte-se que a regra da FTC não terá o condão de alterar regulamentos federais ou estaduais que tratem das cláusulas de não concorrência no âmbito de suas respectivas competências (por exemplo, em contratos estatais ou trabalhistas). Ademais, a regra não prevê penalidades imediatas por violações. Ou seja, a FTC ainda terá que investigar e iniciar investigações, culminando, se confirmadas, em ordens judiciais para rescindir ou não aplicar as disposições contratuais. Somente se uma empresa violar essa ordem judicial é que seria possível aplicação de penalidades. Apesar disso, a existência da regra sinaliza a possibilidade de novas investigações, pela FTC, contrárias a tais cláusulas em contratos de trabalho, ainda pendentes de confirmação pelos tribunais norte-americanos, que poderão resultar em aumento de custos para as empresas.

Esta nova regra da FTC não se aplica a acordos de confidencialidade (os “non disclosure agreements” – “NDAs”), acordos de não solicitação (“non solicitation”) e as previsões contratuais referentes à necessidade de reembolsar treinamentos realizados (“TRAPs”), desde que tais acordos não proíbam ou penalizem um trabalhador por procurar um novo emprego ou começar um novo negócio.

Em termos de cautelas, as empresas serão obrigadas a fornecer aos trabalhadores afetados um aviso de que as cláusulas de não concorrência existentes não serão e não podem legalmente ser aplicadas.

De acordo com a regra, sua implementação se dará em 120 dias a partir da publicação. Apesar disso, a Câmara de Comércio dos EUA e outras entidades já ajuizaram ação judicial em que solicitam suspensão da proibição permanente da aplicação da regra da FTC que praticamente proíbe as cláusulas de não concorrência com trabalhadores. Caso seja concedida liminar e caso não seja revertida, a regra proposta pela FTC pode não entrar em vigor até que a disputa judicial se resolva.

Em termos pragmáticos, há que se reconhecer que a proibição se refere aos EUA, e não ao Brasil. Apesar disso, empresas brasileiras que possuem empregados nos Estados Unidos devem ficar atentas à eventual inaplicabilidade de não concorrência aos seus expatriados. Assim, cientes que a proibição se refere apenas a trabalhos e novos negócios nos Estados Unidos, é possível que sejam criadas cláusulas aplicáveis em outros países (incluindo Brasil), desde que excluam os EUA. Apesar disso, há que se acompanhar a aplicação em concreto da norma pelo FTC, para verificar se haverá eventual tentativa de aplicação expansiva da norma a cláusulas em contratações em outros países (como no Brasil), em casos cujo controlador tenha sede nos EUA.

Ademais, importante que as empresas que se utilizem de cláusulas de não concorrência com seus trabalhadores adotem algumas cautelas mínimas: (i) possuam um quadro global de quais trabalhadores, atuais e passados, estão sujeitos a cláusulas de não concorrência; (ii) garantam a existência de justificativas para a exigência dessas cláusulas; (iii) procurem assessoria jurídica em caso de dúvidas.

Além disso, de forma indireta e incidental, há que se atentar para a possibilidade de a autoridade brasileira da concorrência (Cade - Conselho Administrativo de Defesa Econômica), considerando a possível influência da decisão da FTC, considerar esse fato em sua política investigativa no futuro, bem como passar a solicitar a inclusão de cláusulas que proíbem cláusulas de não concorrência em ACC - Acordos em Controle de Concentração.

De modo geral, cláusulas de não concorrência são admitidas no Brasil, desde que observados alguns requisitos fixados, em grande parte, pela jurisprudência, quais sejam: (i) um escopo limitado e definido (que não proíba o exercício de qualquer atividade remunerada, mas apenas o que está dentro de tal escopo); (ii) um prazo razoável (geralmente de até dois anos quando acordado entre empregador e empregado); (iii) abrangência e território; e (iv) uma remuneração condizente com a restrição imposta (muitas vezes equivalente à remuneração fixa recebida pelo trabalhador). A possibilidade de se ajustar obrigações de não concorrência é expressamente reconhecida pela legislação brasileira também na venda de estabelecimentos pelo prazo de cinco anos (CC, art. 1.147).

Assim, é necessário um olhar atento aos desenvolvimentos que esse tema vai ter no Brasil. Há que se monitorar a necessidade de adequar os contratos de trabalho de empregados de empresas brasileiras que se encontrem nos Estados Unidos, bem como acompanhar eventual tentativa de aplicação expansiva da regra a empresas subsidiárias no Brasil cujo controlador seja norte-americano.

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1 A regra implementa a proposta publicada em consulta pública no dia 5 de janeiro de 2023.

2 A definição de não concorrência é ampla e inclui acordos que resultariam na perda de pagamento compensatório se outro emprego fosse obtido (incluindo indenizações por rescisão em certas circunstâncias) e, dependendo dos fatos e circunstâncias, também pode abranger acordos de confidencialidade e de não solicitação.

3 FTC: https://www.ftc.gov/system/files/ftc_gov/pdf/noncompete-rule.pdf

5 ATHAYDE, Amanda; PRATA, Manuela Mendes; CÚRCIO, André Peyneau. Cláusula de não concorrência: interfaces entre antitruste e Direito do Trabalho no Brasil e EUA. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-fev-14/clausula-de-nao-concorrencia-interfaces-entre-antitruste-e-direito-do-trabalho-no-brasil-e-eua/

6 ATHAYDE, Amanda; DOMINGUES, Juliana. MENDONÇA, Nayara. O improvável encontro do direito trabalhista com o direito antitruste, Revista do Ibrac, 2018. Vencedor do 3o lugar no Prêmio Ibrac-TIM. 

7 ATHAYDE, Amanda. DOMINGUES, Juliana Oliveira. SOUZA, Nayara Mendonça Silva. 10 anos da Lei 12.529/2011: os avanços no debate que resultaram na incontornável interface entre concorrência e trabalho. Revista de Defesa da Concorrência. Junho 2022.

8 A FTC explica que sua definição de "executivo sênior" foi baseada na definição de "diretor executivo" da Regra 3b-7 da SEC. Além disso, a FTC observa que, dentro dessa definição para o termo "executivo", adota a definição da SEC de 17 C.F.R. § 240.3b-213 para manter a consistência. A regra indica que é possível que um "executivo sênior" seja um executivo de uma afiliada ou subsidiária de uma sociedade empresária que faz parte de uma empresa do grupo, se o funcionário tiver autoridade para formular políticas para a empresa comum. A FTC esclarece, no entanto, que modificou alguns aspectos da Regra 3b-7 da SEC para definir o executivo sênior, incluindo (1) a remoção da frase "qualquer vice-presidente do registrante encarregado de uma unidade de negócios principal, divisão ou função" porque a regra se aplica a empresas não públicas, e (2) a opção por definir "autoridade de formulação de políticas" como "autoridade final para tomar decisões de política que controlam aspectos significativos de uma entidade empresarial e não inclui autoridade limitada a aconselhar ou exercer influência sobre tais decisões de política", que adotou da jurisprudência interpretando a Regra 3b-7. A FTC afirmou que seu objetivo com essa mudança foi evitar a aplicação excessivamente ampla da definição a trabalhadores de nível menos executivos.

9 Uma "posição de formulação de políticas" é definida como a presidência de uma sociedade empresária o diretor executivo ou equivalente, qualquer outro diretor de uma sociedade empresária que tenha autoridade para formular políticas, ou qualquer outra pessoa natural que tenha autoridade para formular políticas para a entidade empresarial semelhante a um diretor com autoridade para formular políticas.

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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

© 2024. Direitos Autorais reservados a PINHEIRO NETO ADVOGADOS.

Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.

André Peyneau Cúrcio
Graduando em Direito na UnB.

Maurício Fróes Guidi
Advogado. Sócio de Pinheiro Neto Advogados.

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