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A arte da guerra: Oferecimento de denúncia junto ao Tribunal de Contas

Alternativas que fogem de medidas tradicionais já adotas potencializa resultados na recuperação do crédito consignado contra o Poder Público.

26/4/2024

A busca pela recuperação do crédito pode ser considerada uma arte. Uma arte da “guerra”. Cada vez mais, os devedores se utilizam de meios legais para blindar o seu patrimônio, utilizando-se de todas as regras para retardar ao máximo o cumprimento de sua obrigação.

Há alguns anos atuando na recuperação do crédito consignado contra o Poder Público, por muitas vezes tínhamos os olhos voltados apenas para a recuperação dos valores em si, buscando formas de aprimorar a tese jurídica e enfrentando teses contrárias.

Entretanto, ao parar para refletir sobre problema, foi possível encontrar outra medida que, em conjunto com as medidas tradicionais já adotadas, potencializa os resultados.

De forma resumida, o problema enfrentando é que o Ente Público celebra com determinada instituição financeira um convênio para concessão de empréstimos/financiamentos consignados aos seus servidores.

A obrigação assumida pelo Ente Público nessa relação é de promover a retenção e o repasse ao agente financiador do valor descontado da folha de pagamento de seus servidores a título de parcela do empréstimo consignado.

O problema ocorre quando o Ente Público deixa de realizar o repasse dos valores descontados nos contracheques de seus servidores para o agente financiador.

De modo geral, a discussão travada nas ações judiciais é se o valor descontado da folha de pagamento dos servidores se sujeita ao regimento de pagamento dos precatórios previstos no art. 100 da CF/881.

Mas esse não é o foco no momento, e, sim, se a conduta do Ente Público, possibilita a tomada de outras medidas visando pressiona-lo a cumprir com as suas obrigações. Ou seja, a utilização de novas estratégias de “guerra” para a recuperação dos valores.

Nos termos dos arts. 70 e 71 da CF/882 o controle externo deve consistir da fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da administração pública federal, e está a cargo do Congresso Nacional, que o exerce com o auxílio do Tribunal de Contas.

O controle externo visa comprovar a probidade da administração e a regularidade da guarda e do emprego dos bens, valores e dinheiros públicos, assim como a fiel execução do orçamento. Esse controle é, por excelência, um controle político de legalidade contábil e financeira.

Ainda, o art. 74, §2º, da CF/883 prevê que qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o TCU.

Com essa reflexão, surgiu a ideia de acionar os Tribunais de Contas para apurar se a conduta do gestor público – retenção dos valores descontados da folha de pagamento dos servidores - gera danos ao erário e, portanto, merece ser analisada.

Nesse contexto, somada a medida judicial já adotada, oferecemos Denúncia junto ao Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso do Sul4 para apurar se a ausência de repasse ao agente financiador efetivamente descontada da folha de pagamento para quitação de empréstimos consignados gera ilício grave.

Em sintonia com a nossa argumentação, o Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso do Sul entendeu que o gestor público, responsável por descontar valores direto da folha de pagamento dos servidores, sem, contudo, repassa-los à instituição financeira, tal qual obrigado, pratica ilícito grave.

Os Conselheiros discorreram que a: “retenção dos valores, sem o repasse devido, fere diversos princípios constitucionais, como a moralidade, legalidade e impessoalidade, atraindo, por consequência, a competência do Tribunal de Contas”.

E continuam: “Inquestionável, pois, que a atuação do controle externo visa à proteção das contas públicas, cabendo-lhe fiscalizar e julgar a atuação dos gestores e de todos aqueles que, na forma das Constituições Estadual e Federal, devam prestar contas de bens e valores públicos que lhe sejam confiados a qualquer título”.

Ressaltaram ainda gravidade da conduta do gestor público, citando o informativo 6.642 do C. STJ, que enquadrou tal fato como crime de peculato-desvio, previsto no art. 312 do Código Penal5.

Ao final, os Conselheiros votaram pela procedência da denúncia, ante a irregularidade praticada na execução do convênio firmados para a concessão de empréstimos aos servidores, consubstanciada na ausência do repasse ao agente financiador dos valores efetivamente descontados da folha de pagamento, aplicando multa de 200 UFERMS ao denunciado – valor equivalente à R$ 9.480,00 -, responsável pela irregularidade dos atos de gestão apreciados, nos termos do art. 21, inciso X, e art. 44, inciso I, ambos a Lei Complementar 160/12, sob pena de cobrança executiva.

Ao nosso ver, referida decisão gera um importante precedente no Tribunal de Contas, sendo uma nova “arma” que poderá ser utilizada pelos agentes financiadores que são prejudicados pelas condutas de maus gestores públicos.

Da mesma forma que os devedores se utilizam de todas as regras possíveis para retardar ao máximo o cumprimento de sua obrigação, compete aos credores, com uma dose de criativa, buscar formas de pressionar os devedores para que estes cumpram com suas obrigações.

Assim como na arte, a decisão acima explorada, demonstra que as possibilidades são amplas (e dependem de criatividade), mas certo é que a busca pela a adoção de diferentes medidas aumenta o “arsenal” que os agentes financiadores possuem nessa guerra travada aqueles que se apossam de seu bem/dinheiro.

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1 Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.   

2 Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I - Apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

II - Julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

III - Apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;

IV - Realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II;

V - Fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo;

VI - Fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município;

VII - Prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;

VIII - Aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

IX - Assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;

X - Sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;

XI - Representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.

§1º. No caso de contrato, o ato de sustação será adotado diretamente pelo Congresso Nacional, que solicitará, de imediato, ao Poder Executivo as medidas cabíveis.

§2º. Se o Congresso Nacional ou o Poder Executivo, no prazo de noventa dias, não efetivar as medidas previstas no parágrafo anterior, o Tribunal decidirá a respeito.

§3º. As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo.

§4º. O Tribunal encaminhará ao Congresso Nacional, trimestral e anualmente, relatório de suas atividades.

3 Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de: § 2º Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União.

4 TC/12190/2019/001

5 Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:

Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

§ 1º - Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.

Daniel Lagoa
Advogado especialista em Direito de Recuperação de Crédito.

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