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Do “super” cônjuge ao “mini” cônjuge: A sucessão do cônjuge e do companheiro no anteprojeto do Código Civil

A reforma do Direito Sucessório enfrenta desafios devido à diversidade de arranjos familiares. O STF julgou inconstitucional a distinção entre direitos sucessórios de cônjuges e companheiros, estabelecendo a igualdade de direitos conforme o art. 1.829 do CC/02.

25/4/2024

Um dos temas mais desafiantes quando se pensa numa reforma do Direito Sucessório é aquele relativo à sucessão hereditária do cônjuge e do companheiro. Isso porque não existe mais uma única forma de constituir família, o casamento não é mais indissolúvel e desde 1962 a mulher casada deixou o rol dos relativamente incapazes e pôde trabalhar e auferir os seus rendimentos sem qualquer interferência do consorte. Assim, o casamento “estável” e “até que a morte” separe o casal, há muito deixou de existir.

Diante disso, os arranjos conjugais revelam-se das mais variadas formas: há casamentos ou uniões estáveis longevas com e sem prole comum; há segudos, terceiros e diversos casamentos ou uniões estáveis contraídos pela mesma pessoa, com filhos ou sem filhos, dando origem às famílias recompostas; há vínculos conjugais que duram pouquíssimo tempo; há aqueles em que ambos os consortes são independentes financeiramente, outros nos quais comumente a mulher adbica da sua carreira profissional ou mesmo de trabalhar por mais tempo para ter melhores rendimentos ou de se aperfeiçoar na profissão em prol do cuidado com a família, entre outros. Diante dessa diversidade, não é tarefa simples definir o estatuto sucessório no casamento e na união estável.

Em relação a um ponto, a Comissão nomeada para a Revisão e Atualização do Código Civil já tinha um norte: os direitos sucessórios dos cônjuges e dos companheiros não poderiam ser diversos. Com efeito, à luz da solidariedade familiar que informa os laços familiares e da inexistência de hierarquia entre as entidades familiares, já que é a Família a base da sociedade, que tem especial proteção do Estado (CF/88, art. 226, caput), sem qualquer distinção em relação à forma de constituição da entidade familiar, o STF julgou inconstitucional o art. 1.790 do Código Civil, que estabelecia direitos sucessórios para os companheiros em desigualdade com aqueles dos cônjuges, fixando a seguinte tese de repercussão geral: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/02” (Tema 809)1.

Desde a entrada em vigor do CC/1916, os direitos sucessórios do cônjuge passaram por profundas mudanças: do terceiro lugar na ordem de vocação hereditária (CC/16, art. 1.603, III), podendo ser afastado da sucessão (CC/16, art. 1.725), o cônjuge foi alçado a herdeiro necessário em propriedade plena no CC/02, com cota mínima de ¼ da herança, passando pelo usufruto vidual a partir da lei 4.121/62.

De fato, no Código Civil, o cônjuge foi elevado à centralidade da ordem de vocação hereditária, concorrendo em propriedade plena com descendentes e ascendentes, sendo-lhe, ainda, preservada a quarta parte da herança se for ascendente de todos os herdeiros com quem concorrer. Além da reserva hereditária, ao cônjuge, em qualquer regime de bens, e sem qualquer ponderação quanto à sua situação econômica na própria herança ou pessoalmente, é garantido o direito real de habitação vitalício em relação ao único imóvel residencial que integre o monte, destinado à residência da família (CC, art. 1.831). Não há dúvida que também ao companheiro são estendidas todas essas garantias.

Realmente, se pensarmos na família do início da década de 70, quando o atual Código Civil foi concebido, seria possível afirmar que havia uma clara e evidente inferioridade feminina na família, em especial em virtude da ascendência econômica do homem em relação à mulher, pelo exercício profissional. Além disso, o casamento era indissolúvel e o modelo nuclear – pai e mãe casados e filhos – era aquele almejado socialmente. Nessa perspectiva, considerava-se imperiosa a garantia de uma melhor posição sucessória ao cônjuge, uma vez que, na família nuclear, o cônjuge é o único componente estável e essencial, já que os filhos, em determinado momento, se desprenderão daquela entidade familiar, formando a sua própria2.

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1 A equiparação da união estável ao casamento em relação aos regimes sucessórios foi considerada por parte da doutrina como o “fim” da união estável, ao argumento de que, com o julgamento em referência do STF, todos os direitos foram equiparados entre a união estável e o casamento, restando poucas diversidades entre as referidas relações familiares, relativas às formalidades de suas respectivas constituições. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Ainda existem diferenças entre casamento e união estável? São Paulo, maio 2019. Disponível em: http://www.rodrigodacunha.adv.br/ainda-existem-diferencas-entre-casamento-e-uniao-estavel/. Acesso em 19.09.2019. Deve-se indagar, com apoio em Maria Celina Bodin de Moraes e Renata Vilela Multedo: “estaria mesmo a jurisprudência “sepultando” a união estável, como normalmente se pensa? Não seria o caso de pesquisar se o que vem sendo atingido é o casamento?”. Isso porque, realmente, as pessoas praticamente obtêm os mesmos efeitos com o casamento e a união estável, mas o primeiro é repleto de regras para “o casar e o descasar”, havendo a completa ausência destas para a união estável. MULTEDO, Renata Vilela; BODIN DE MORAES, Maria Celina. A privatização do casamento. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 5, n. 2, dez. 2016. Disponível em: http://civilistica.com/wp-content/uploads/2016/12/Multedo-e-Bodin-de-Moraes-civilistica.com-a.5.n.2.2016.pdf.  Acesso em 19.09.2019, p. 4.

2 Mezzanote, Luisa. La sucessione anomala del coniuge; Napoli: ESI, 1989, p. 16. Marini, Annibale, "Transformazioni sociale e successione del coniuge", discurso proferido na inauguração do ano acadêmico 1884-1985 na Universidade de Macerata, in Inaugurazione anno accademico 1984-1985, Macerata, 1985, pp. 39-52, p. 49.

Ana Luiza Maia Nevares
Professora de Direito Civil da PUC-Rio. Doutora e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Vice-Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da Família do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro da Diretoria do IBDFAM-RJ, do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil) e do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Advogada.

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