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A reclamação como forma de “recall” de decisões vinculantes

A reclamação é uma ação originária nos Tribunais prevista pela Constituição Federal e ampliada pelo CPC/15. Tornou-se mais frequente no STF e STJ, mesmo em situações não expressamente previstas. Apesar de restrições recentes, ainda é usada para adaptar e revisar decisões vinculantes, promovendo o diálogo entre casos concretos e precedentes.

22/4/2024

A reclamação é uma ação de competência originária nos Tribunais. A Constituição Federal prevê o seu cabimento perante o STF (art. 102, I, e art. 103-A, § 3º) e o STJ (art. 105, I, f).1

O CPC/15 alargou as hipóteses de cabimento da reclamação (art. 988, I a IV)2 e, com isso, a reclamação pode ser processada e julgada por todos os tribunais (art. 988, § 1º).

Ao longo dos anos, a reclamação foi ganhando densidade, não apenas no STF, mas também no STJ. Enquanto o STF passou a admitir a reclamação em hipóteses em que – nos estritos limites legais – não seria cabível (ex: contra decisões em controle difuso de constitucionalidade), o STJ passou a admitir, por exemplo, a reclamação contra decisões das turmas recursais cíveis, mesmo sem previsão legal expressa.

Por outro lado, a preocupação com o manejo desenfreado de reclamações estimulou, em alguma medida, os tribunais superiores a limitarem o seu cabimento. O STJ, por exemplo, passou a não admitir reclamação como mecanismo de controle da observância de acórdão proferido em julgamento de recursos especiais repetitivos (rcl 36.476, rel. min. Nancy Andrighi, Corte Especial, DJe 6.3.20), em aparente descompasso com o art. 988, § 5º, II, do CPC.3

Isso não impediu, porém, o contínuo elastecimento do cabimento da reclamação, que vem servindo, inclusive, como instrumento de interpretação, adaptação e revisão de decisões vinculantes (arts. 103 e 327 do RI do STF).

Nas palavras do ministro Dias Toffoli, “a reclamatória exsurge como instrumento de promoção do diálogo, nesta Suprema Corte, entre o caso concreto e os precedentes obrigatórios”, sobretudo quando há desrespeito à autoridade da decisão do STF, usurpação da competência da Corte ou necessidade “de revisitação dos fundamentos do precedente, tendo em vista a alteração do ordenamento jurídico vigente ao tempo do julgamento ou das circunstâncias fáticas históricas que impactaram a interpretação da norma, com possibilidade de sua superação (overruling)”.4

Nesse particular, o STF admite a reclamação para provocar a revisão de entendimentos firmados em controle concentrado e em repercussão geral, especificar entendimentos firmados em ações de controle concentrado, bem como interpretar os efeitos de modulação de decisão vinculante.

Por exemplo, na reclamação 4.374/PE, o STF reconheceu que a reclamação é “instrumento de (re)interpretação da decisão proferida em controle de constitucionalidade abstrato. (…) Com base na alegação de afronta a determinada decisão do STF, o Tribunal poderá reapreciar e redefinir o conteúdo e o alcance de sua própria decisão. E, inclusive, poderá ir além, superando total ou parcialmente a decisão-parâmetro da reclamação, se entender que, em virtude de evolução hermenêutica, tal decisão não se coaduna mais com a interpretação atual da Constituição”.5

Na mesma linha, na reclamação 25.236/SP, assentou-se que “deve ser viabilizada a revisão da tese firmada no RE 592.730, rel. min. Menezes Direito, a fim de permitir a adaptação da jurisprudência desta Corte às novas mudanças fáticas e constitucionais. (...) Eventual revisão da jurisprudência da Corte em sede de reclamação não é novidade neste Tribunal, haja vista o julgamento da Rcl 4.374”.6

Por sua vez, na rcl 29.303, o STF confirmou que, em razão de “modificações fáticas e legislativas supervenientes ao julgamento paradigma”, é possível o “excepcional conhecimento da ação reclamatória pelo E. Plenário para dar maior alcance ao conteúdo da decisão anteriormente proferida em sede de controle abstrato de constitucionalidade”.7

Nesse contexto, pode-se afirmar que a reclamação passou a ser uma forma de “recall” de decisões vinculantes, de modo a ajustá-las, adaptá-las, interpretá-las e até mesmo alterá-las.

Um ponto de atenção é que as reclamações no STF são, por regra, julgadas pelas Turmas, e não pelo Plenário, órgão que pode ter proferido o entendimento vinculante em debate na reclamação. Nesses casos, vale a reflexão de que, na hipótese de divergência no âmbito da própria Turma (isto é, voto divergente de um dos Ministros), o caso poderia ser afetado ao Plenário (at. 22, parágrafo único, “b”, do Regimento Interno do STF), garantindo-se que o órgão prolator da decisão originária possa conferir a interpretação autêntica à decisão vinculante, ampliando e qualificando a discussão.

Em suma, em um momento de consolidação do microssistema de precedentes e de respeito aos padrões decisórios vinculantes, não se pode negar a potencialidade da reclamação. Sua maleabilidade e plasticidade permitem que o instrumento seja adaptado de tempos em tempos, ora restringindo-se seu cabimento, ora elastecendo-se sua admissão, em busca de maior segurança jurídica e eficiência na prestação jurisdicional.

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1 Para uma visão geral da reclamação, ver CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. Recursos para os Tribunais Superiores. 5 ed. Brasília: Gazeta Jurídica, 2021.

2 A reclamação também pode ser utilizada para impugnar o silêncio do julgador. Sobre o tema, ver MAZZOLA, Marcelo. Silêncio do juiz no processo civil. 2 ed. São Paulo: JusPodivm, p. 168-174.

3 O STF entende que a norma contida no art. 988, § 5º, II, do CPC “merece interpretação restritiva quanto ao cabimento da reclamação para hipóteses em que se discute aplicação de tese em repercussão geral reconhecida”. De um modo geral, tem-se indicado dois critérios para o cabimento da reclamação: a) o prévio esgotamento dos meios recursais e b) a demonstração da teratologia da decisão reclamada. STF, Rcl 37.224/SP, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 04.11.2019.

4 Rcl nº 28.995/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 05.09.18.

5 “A oportunidade de reapreciação das decisões tomadas em sede de controle abstrato de normas tende a surgir com mais naturalidade e de forma mais recorrente no âmbito das reclamações. É no juízo hermenêutico típico da reclamação – no ‘balançar de olhos’ entre objeto e parâmetro da reclamação – que surgirá com maior nitidez a oportunidade para a evolução interpretativa no controle de constitucionalidade. Assim, ajuizada a reclamação com base na alegação de afronta a determinada decisão do STF, o Tribunal poderá reapreciar e redefinir o conteúdo e o alcance de sua própria decisão. E, inclusive, poderá ir além, superando total ou parcialmente a decisão-parâmetro da reclamação, se entender que, em virtude de evolução hermenêutica, tal decisão não se coaduna mais com a interpretação atual da Constituição. Parece óbvio que a diferença entre a redefinição do conteúdo e a completa superação de uma decisão resume-se a uma simples questão de grau. No juízo hermenêutico próprio da reclamação, a possibilidade constante de reinterpretação da Constituição não fica restrita às hipóteses em que uma nova interpretação leve apenas à delimitação do alcance de uma decisão prévia da própria Corte. A jurisdição constitucional exercida no âmbito da reclamação não é distinta; como qualquer jurisdição de perfil constitucional, ela visa a proteger a ordem jurídica como um todo, de modo que a eventual superação total, pelo STF, de uma decisão sua, específica, será apenas o resultado do pleno exercício de sua incumbência de guardião da Constituição.” Rcl nº 4.374/PE, Rel. Min. Gilmar Mendes, Plenário, Julgamento em 18.04.2013. Vale, ainda, conferir a RCL 66.772/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJ de 26.03.2024.

6 Rcl nº 25.236/SP, Rel. Min. Luis Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 10.10.2022.

7 Rcl nº 29.303/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, Plenário, julgado em 06.03.2023

Osmar Mendes Paixão Côrtes
Advogado do escritório Paixão Côrtes e Advogados Associados. Pós-doutor em Direito pela UERJ. Doutor em Direito pela PUC/SP. Mestre em Direito e Estado pela Unb. Diretor do IBDP. Professor do mestrado/doutorado do IDP.

Marcelo Mazzola
Pós-Doutor, Doutor e Mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Advogado e sócio de Dannemann Siemsen Advogados.

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